domingo, junho 25, 2017

Indócil, não me permito
sossegar no rumor
nem fugir da minha vida

ignorando o fulgor


Pela primeira vez desde há algumas semanas, Lu resolveu sair de casa. Arranjou-se, pegou em livros, na máquina fotográfica, no portátil, meteu alguns alimentos num saco térmico e foi para o campo.




Voltou a gostar da sensação de conduzir. Na estação de serviço olhou para as primeiras páginas dos jornais. Receava ver alguma coisa. Não, só o expectável. Quase lamentou. Inconscientemente, era como se preferisse que o que acontecesse não fosse de sua responsabilidade.

Quando chegou a sua casa, surpreeendeu-se com a altura dos arbustos junto à vedação. Floridos, as cores quentes do verão, aquele perfume doce e intenso de que tantas vezes sentia saudades.


As árvores, enormes. Tudo parecia ter crescido de uma forma inusitada. Um bosque tal como ela tinha sonhado quando o terreno não passava de uma matagal raso no meio de um terreno pedregoso.

Quando abriu a casa reconheceu aquele cheiro tão característico. A casa parecia guardar todo o ano a memória das noites de lareira. Sorriu como que agradecida. O ambiente mantinha-se familiar apesar do abandono a que ela ultimamente o tinha votado.

Quando saíu à rua pareceu-lhe ver passar, no chão, um pequeno vulto. Foi ver melhor e não viu nada. Talvez uma ilusão de óptica.

Saíu pelo campo, câmara fotográfica, disponibilidade para o encantamento de antes. Aproximava-se, baixava-se, redescobria o prazer de captar as quase invisíveis belezas que a natureza guarda apenas para os olhares mais atentos.


Enquanto ia andando, aspirando o ar limpo e perfumado e sentindo o canto dos pássaros, ia recordando todas as vezes recentes em que lá tinha ficado com ele.

No período em que tinha vivido com o outro, aquele a quem os pais tratavam como um filho e de quem sempre esperaram que viesse a vir um neto, ficavam lá todos os fins de semana e, por vezes, no verão, toda a semana. Mas ele era demasiado boa pessoa para a prender. Dele apenas vinha acalmia, compreensão, ternura, uma vida previsível, e ela queria fogo, desafio, desequilíbrio. Mal se separaram, no dia seguinte, já ela estava a reatar com aquele a quem mentalmente tratava por traste. Não era amor, não era desejo, era sobretudo o gosto pelo risco, por pisar o risco. E, a partir de certa altura, percebe agora, a vontade de o destruir.


As idas ao campo voltaram a ser mais esporádicas. Ele era casado, tinha uma agenda familiar, e ela não gostava de lá estar sozinha. Contudo, ambos tinham deslocações frequentes ao exterior pelo que era normal, para ele, dizer em casa que tinha que ir para fora mas que estaria de regresso um ou dois dias depois. Lu aceitava bem que assim fosse e tinha o cuidado de que ele, na medida do possível, não lesasse o equilíbio familiar. Por vezes, parecia que era maior o cuidado dela pela família dele, do que dele próprio. Ali, na casa de campo dela, ele sentia-se em casa. Dizia-se um homem do campo.
Aliás, dizia-se mais do que isso, dizia-se um agricultor. Mas ela dava desconto pois, mitómano como era -- mitómano ou megalómano, que, entre uma coisa e outra, ela nunca tinha conseguido optar pela classificação mais adequada -- ele achava que tinha alma de tudo, de empresário, de camponês, de nobre, de homem do povo, de marchand de arte, de benemérito, de intelectual, de connaisseur de mulheres, de vinhos e de rosas. Claro que com o dinheiro que tinha possuía herdades onde se fazia vinho, possuía obras de arte para dar e vender, era patrono de cinquenta mil organizações que a companhia ou a fundação a que presidia ajudavam. Mas ele, ele mesmo, era pouco mais do que um narciso contemplando-se no espelho da comunicação social, das redes sociais e, até, no site da empresa e, mesmo, na intranet onde fazia com que se cultivasse um verdadeiro culto de personalidade em torno do extraordinário senhor presidente.
Estar no campo sozinha, ficar lá à noite, era, pois, experiência nova para Lu. Mas estava a agradar-lhe.


Maravilhada pelas pequenas flores do campo, pela natureza em estado quase selvagem, Lu sentia-se sempre mais livre. Fotografava tudo, encantada com a luz, com o efeito de halo luminoso que parecia rodear as flores.

Lembrou-se: ali mesmo, naquele caminho em que ia, ele a olhar para ela, a pedir-lhe que se virasse em contra-luz, queria fotografá-la no meio das flores. Depois, como tantas vezes o fazia, pediu-lhe que se despisse. Fotografou-a assim, nua, banhada pela luz do cair da tarde. Lu, lembra-se de, naquele momento, ter dito: Já não vou poder ter um filho, já é tarde demais. E não me desculpo por isso. Não sei como deixei passar o tempo, não sei que prioridades foram as minhas, não sei como cheguei a este ponto. Ele olhara-a, perplexo: 'A que propósito vem agora isso?'. Ela continuara: Um acabei com ele, outro na prática também. E agora dava tudo para ter um e tenho medo de tentar, é tarde demais. Ele abraçara-a: 'Não penses nisso'.  Com distanciamento, ela respondera: Tens filhos, tu. Não sentes falta de mais. Aliás, pouco ligas aos que tens. Eu não tenho nem vou poder ter. Ele protestara: 'Não digas isso. Claro que ligo. Adoro os meus filhos. Mas esquece. Tens uma vida plena, Lu'. Ela não respondera. Só uma pessoa muito desprovida de muita coisa poderia achar que ela tinha uma vida plena. Tinha uma vida vazia, isso sim. E não mais deixara de ter esse pensamento sempre presente. 

E ia andando, fotografando, olhando a bela e protectora serra ao longe e pensando que, à noite, no computador que felizmente não se tinha partido, ia escrever sobre isso. E ia também contar a discussão terrível que tiveram no escritório na véspera do dia em que ela tinha acordado com um formigueiro nos dedos e vazia, ausente, quase se deixara cair num poço sem fim. Ia contar como tinha descoberto o esquema, como o confrontara com isso, como o ameçara, como negara que sempre tivesse sabido, ia contar como, quando ele insistira que ela sabia, que sabia desde sempre, lhe dera uma bofetada e de tal forma violenta a bofetada que os óculos dele tinham voado, que, quando ele se preparava para lhe devolver a bofetada, ela lhe tinha atirado à cara um monte de papéis, de como o tinha visto, furioso mas meio perdido, sem óculos, o chão pejado de papéis. Ia descrever, com pormenor, a forma habilidosa como, durante anos, as contas foram falseadas.

E, enquanto ia pensando em tudo isto, Lu ia caminhando, fotografando. As flores, os frutos.


Ao regressar a casa, já lusco-fusco, de novo um pequeno vulto branco correndo. Assustou-se. Procurou. Não viu nada. Quando estava quase a entrar em casa, a mesma sensação, de novo um pequeno vulto correndo, sem deixar marcas. 


Ficou parada junto à porta a olhar. Quase a anoitecer. Os pássaros quase silenciosos. E, de repente, a impressão de estar a ser observada. Olhou em redor. E, então, ao fundo, não um mas dois, dois pequenos vultos brancos. Aproximou-se devagar. Fugiram na direcção da vedação. Foi ver.


Do outro lado, no meio do mato dois gatinhos brancos. Pequeninos. Olhavam-na, ar assustado. Lindos. Ela fez bssschh, bschhsch, gatinhos, gatinhos lindos. E ali ficou a olhar para eles e eles para ela. Certamente filhos da gata branca que, furtivamente, por lá via passar de vez em quando.


Uns bebés tão lindos. Goastava de lhes poder fazer uma festa.

Quando regressou a casa, as lágrimas corriam-lhe pela cara. Talvez emoção por ver que tinham nascido lá, filhos daquela sua amada casa, uns gatinhos tão bonitos. Mas também talvez tristeza pela sua vida tão vazia.

Depois percebeu que tinha acabado de tomar uma decisão e, conhecendo-se bem como julgava conhecer-se, sabia que era uma decisão sem retorno.

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O título do post foi extraído do poema de 'Indócil' de Maria Teresa Horta in 'Poesis'

Excepto obviamente as de Kate Moss, as restantes fotografias foram feitas por mim, este sábado, in heaven.

Amira Willighagen, com a condução de André Rieu, interpreta O Mio Babbino Caro de Puccini

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Este texto, que acabo de escrever, vem na continuação de:
Num excesso sempre incontido de perda e perdição

E continua em 'Lu, a mulher infiel' que também encerra este folhetim.

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