segunda-feira, setembro 19, 2016

O que viam os que não viam. Maria Theresia von Paradis e Jorge Luis Borges.
O que viam os que viam todas as cores. Monet e Bukowski.
E um improvável encontro. Polina Semionova, Vladimir Malakhov, Bjork e Caravaggio





Finalmente a aceitar que estou de volta aos dias normais, a mala desfeita, a roupa arrumada, outra a lavar, a sopa feita, escolhida a toilette para a rentrée, as coisas no sítio e os livros amontoados ali a olharem para mim, fazendo-me sentir em porto seguro, em paz comigo e com o mundo, sento-me aqui e de tal forma estou em estado zen que não faço ideia do que hei-de escrever.

Na cozinha, um mistério. Ouve-se um grilo. Se estivessemos no campo seria natural. Aqui é inédito. Já o procurámos e não o descobrimos. Como chegou ele até cá, não sabemos. Terá vindo com os figos?

Parece que estou num hiato, suspensa entre dois mundos. 

Acabei de receber um mail de trabalho. Alguém diz que sabe que estou a regressar de férias e quer lembrar-me um assunto. A minha primeira reacção foi enviar-lhe uma resposta torta. Mas depois deu-me vontade de rir. A isto chama-se não brincar em serviço e já me apetece é enviar um mail irónico. Mas nem para isso agora tenho disposição. Amanhã logo vejo o que lhe digo até porque o interesse em falar com ele também é meu. Mas é quando estiver a trabalhar, não na véspera em que ainda estou aqui a ambientar-me à ideia.

Entretanto, a minha mente vagueia por um mundo suave, habitado por música, cores, flores, águas refletindo imagens gentis, palavras inteligentes e irónicas, vozes que me dizem poemas, corpos que se envolvem entre cores, evocações, acordes e uma voz que canta -- e não consigo preocupar-me em encontrar coerência entre o que me ocorre. Tomara que não haja. Ou que seja tão secreta que ninguém a descubra.

E penso, mas com leveza. Quase como num sonho bom penso, sobretudo, naqueles a quem quero bem. Quero que estejam bem. Gosto de os saber bem. Gostava que estivessem sempre bem. 

Não consigo pensar em frases muito elaboradas ou em raciocínios bem desenhados para agora aqui escrever.

De propósito, nem espreito as notícias não vá alguma despertar-me deste estado de doce encantamento em que me encontro, ouvindo melódicos acordes ou a voz rouca e pesada que diz poesia. Gostava que todos os dias fossem dias bons para todos.


Frases de Borges 
(algumas de entre algumas desconcertantes)


A gente publica para não passar a vida corrigindo o que escreve. A verdade é que se publica para se libertar do livro e pensar em outro. Quanto a mim, reli muito pouco do que escrevi. Ainda que de vez em quando me releiam passagens do que escrevi e às vezes elas me agradam. E digo: de onde tirei tudo isto? Na certa deve ser plágio, porque é bom.

Não releio, esqueço facilmente, mas tudo o que publico supõe dez ou doze versões, sendo que a última acrescendo um descuido evidente para que pareça espontâneo.

Não sou modesto, apenas fico assombrado por ser conhecido. Deixei de ser um homem invisível aos cinquenta anos, e pode-se descobrir a qualquer momento que sou um impostor.

Ulisses: não foi escrito para ser lido, foi escrito para alguma coisa muito superior, foi escrito para que o autor ficasse famoso, fosse analisado, figurasse na história da literatura.

O aborrecimento é mais terrível do que a violência.

Todos falam dos supostos benefícios que a saúde traz ao indivíduo, mas eu acho que a saúde é um estado precário que não pressagia nada de bom.

Ironia: uma coisa que aprecio e reconheço, e de que sou totalmente incapaz.






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Lá em cima, no violoncelo, Lynn Harrell interpreta de Maria Theresia von Paradis a Sicilienne

As imagens mostram pinturas de Claude Monet.

Encontrei as frases de Borges na Revista Bula

Tom O'Bedlam diz Roll the Dice de Charles Bukowski

Polina Semionova e Vladimir Malakhov dançam Caravaggio coreografado por Mauro Bigonzetti, aqui ao som de Prayer Of The Heart numa interpretação de Bjork

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