domingo, agosto 07, 2016

O que Manoel de Barros me ensinou sobre o nada
[Que coisa mais estranha: não fui eu que escrevi isto...]






Conheço pessoas que sabem tanto, tantas coisas. Lembram-se, instantaneamente, de nomes de autores, de nomes de livros, de excertos desses mesmos livros. Não é por acaso nem por magia. É porque se dedicam de corpo e alma à tarefa da leitura: lêem com todo o cuidado, não descuram as anotações em letra pequenina, aprofundam conhecimentos até ao ponto em que sentem que já sabem tudo o que há para saber. Conhecem várias traduções do mesmo livro, lêem a obra na língua original. e memorizam tudo. E acham que a vida não é a mesma sem passar pela experiência de saber tudo sobre tudo. Se um autor lhes agrada superlativamente e se não sabem a língua para o poderem ler na versão nativa, então aprendem a língua e, quando dão por ela, conhecem para cima de uma dúzia de línguas. 

Admiro genuinamente pessoas assim. Tendo a admirar pessoas capazes de proezas que eu sei que jamais alcançarei. E sei de certeza absoluta porque não sinto essa vontade, nem essa necessidade.


Não é que, se tivesse a certeza que viveria para todo o sempre, também não quisesse saber tudo. Mas não tenho. Intuo que a minha vida é finita. Por isso, reservo sempre espaço para o tempo do nada, seja escrevendo aqui sobre coisa nenhuma, seja vendo vídeos ao acaso ou lendo bobeiras, seja contemplando o rio ou o mar, seja estando de olhos fechados recordando aqueles de quem gosto e que não posso ter perto de mim, seja ouvindo música, lendo ou fotografando ou brincando com as fotografias que tirei. E reservo também sempre tempo para o amor. A minha vida perderia qualquer sentido se eu não tivesse contacto aqueles que o meu coração ama ou se não tivesse a quem dirigir o meu afecto.

Por isso, se às curtas horas do dia eu retirar aquelas em que trabalho, aquelas em que estou no trânsito, aquelas em que me perco com pequenos nadas, aquelas, poucas, em que durmo, sobra-me uma exiguidade que eu faço por dilatar, enchendo-as com o pouco de que muito gosto. Não sobra tempo para frescura, para anotação, para aprofundamento. Fica apenas tempo para ligeireza, para flanação por sobre as montanhas de informação e conhecimento, baixando a minha atenção sobre um ou outro ponto de luz que chama por mim.


Nestas minhas novas andanças, porque acho que o primeiro passo é conhecer as pessoas, falei com cada uma. Para meu espanto, depois da conversa mais profissional, quando eu perguntava o que mais gostavam de fazer e, talvez porque a pergunta inesperadamente fazia romper um dique, frequentes foram as vezes que ouvi falar de desilusões, de um certo cansaço e descrença e várias vezes ouvi justificar a desmotivação com o facto de já terem vivido mais de metade da vida, querendo agora reservar o curto tempo que falta com o que realmente interessa. Às tantas pedi que não dissessem mais isso, senão ainda iria sair dali a sentir-me velha já que sou mais velha do que várias pessoas que disseram isso. 
Ao dizer isto, lembro-me do que voz entendida me disse: uma coisa são os anos vividos e outra é a velhice. A pessoa pode ser velha, as células envelhecidas, a mente esvaída, apesar de ter poucos anos de idade ou, pelo contrário, pode ter vivido muitos anos e ter umas células jovens e uma mente de criança. Eu acho que me encaixo neste último grupo (acho, disse eu - não sei se medicamente será mesmo assim).
A verdade é que não penso nisso, de já ter vivido mais de metade da minha vida. Sei lá se não vivo até aos 200. Mas penso sempre que a vida é curta e que pode ser tão boa. Para quê desperdiçá-la aprofundando à exaustão algumas coisas e deixando mil coisas boas por viver? Ou para quê desperdiçar tempo de afectos e doçura a aprofundar conhecimentos sobre o Ulisses? E quem diz o Ulisses diz outra coisa qualquer. Posso ser muito primária mas, na verdade, é mesmo assim que sou. Para mim, cada dia tem que valer a pena. Se o dia é longo e cansativo, então que cada minuto sobrante seja bom, solto, leve. E se o dia é longo e descansado, então para quê cansar a mente?

Bom, bom mesmo, é estar sempre disponível para a surpresa, para o maravilhamento, para a descoberta de um mundo sempre novo.

Como disse Manoel de Barros, quem acumula muito informação perde o condão de adivinhar. E eu gosto mesmo é de adivinhar. Acho que ser sabichão não tem graça nenhuma. Por isso, não quero memorizar para não formatar a minha mente. Quero que ela conserve a plasticidade infantil de perante tudo se encantar.
[E isto é o que eu penso, já aqui o confessei mil vezes. Ora estava eu aqui, preguiçosa, estendida no sofá, a televisão a mostrar-me um programa alemão em que andam todos nus, Adão e Eva em várias versões, na praia, todos apaixonados, e eu também à fresca, a passear pela net -- quando dou com um texto que diz, quase pelas mesmas palavras, o que eu penso. 
O texto tem o título que coloquei em epígrafe e foi escrito por Flávia Bechtinger para a Obvious. Transcrevi uns excertos que podem ser lidos a seguir, em itálico]


Bom mesmo é desaprender. Bom mesmo é se colocar como espectador de um mundo que você ainda não conhece e está deslumbrado olhando. Bom mesmo é olhar um rio e imaginar que é uma cobra de vidro mole. Bom mesmo é inventar cores, nomes, paisagens. Bom mesmo é entender que as respostas podem existir, podem não existir, podem qualquer coisa. E que tudo depende de como você quer escolher naquele momento.

Somos o que estamos. Isso foi outra coisa que aprendi. E se quero brincar de encontrar imagens nas nuvens ao invés de reclamar das contas que não param de chegar na minha casa, eu posso fazer isso. E posso ser chamado de uma pessoa insensata, mas com certeza, estarei mais feliz do que quem passa o dia reclamando, pelo menos no meu entendimento do que é ser feliz.

Manoel de Barros fala de despropósitos, do que talvez não faça muito sentido para muita gente. A mensagem parece ser sempre que não existe resposta certa, que o certo é buscar o que te faz bem. A mensagem parece ser sempre a mesma: olhar para a vida com olhos de quem está descobrindo. Olhar a vida como se a gente não soubesse de nada ainda.


Uma parte de mim ainda se assusta com essa forma leve e colorida de ver o mundo, mas a outra se perde entre tantas cores, brilhos e fantasia. E essa parte hoje comemora a vida todos os dias. E ri, brinca, pula, canta, dança e está feliz a maior parte do tempo, até quando está triste.

Manoel de Barros fala sobre o nada quando fala de despalavra, despropósito, desaprender, desfazer, desatar. É tudo sobre levar uma vida com mais leveza, com menos cobrança, com menos palavras, com menos promessas ou expectativas. Com menos.

E agora eu acredito que só existe uma forma de ter todas as respostas: esquecer todas as respostas. A melhor forma de aprender mesmo é desaprender e olhar o mundo com olhos de quem nunca viu. Todos os dias.

(Texto completo aqui)

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Uma vez mais aqui, o meu Mestre:

Manoel de Barros - O Livro das Ignoranças, Mundo Pequeno e Autorretrato



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Lá em cima era Aurora interpretando Through The Eyes Of A Child. 
Fiz as fotografias no Ginjal e há bocado estive entretida a saturar-lhes as cores.

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Por aí abaixo há mais dois posts: um a propósito dos Jogos Olímpicos e outra a propósito do 50ª aniversário da ponte 25 de Abril

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2 comentários:

P. disse...

Ao ver as fotos de barcos que aqui deixou, não resisti em mencionar um belo passeio de barco, que hoje fizemos, com uns amigos velejadores, entre Lisboa e Cascais. Embora o vento estivesse fraco, a coisa fez-se com boa disposição, para nos aliviar do calor que se fazia sentir. A quantidade de pessoas que enchiam as praias da marginal! Compreensível tendo em conta o calor que se fazia sentir.
P.Rufino

Anónimo disse...

Olá UJM, já pensei muito assim e acho que ajo um pouco com a despreocupação que é retratada aqui no post. Mas também acho que cada um de nós deverá perseguir aquilo que nos dá prazer, e essa capacidade de deslumbramento com o mundo que nos faz feliz tanto pode ser alcançada estando, como sendo, como lendo e sabendo tudo sobre coisa pouca ou pouco sobre quase tudo. Rita