quinta-feira, abril 14, 2016

A mon seul désir


Depois de, no post abaixo, ter falado no Dia do Beijo pela falta do qual não dei (mas sem problema -- porque beijos há sempre que um apaixonado quer), aproveito a boleia e vou dar um passeio pelo tema. Mais ou menos.

Com vossa licença.




As mulheres deverão falar de roupas, de perfumes e sapatos, de arrumações e de penteados, de frustrações e desencantos, de jardins ou dos filhos. As mulheres deverão dizer mal dos homens ou deverão fazer humor umas com as outras, irmãzinhas da internet, almas gémeas para o resto da vida. De vez em quando falarão de livros, da espessura dos personagens, compararão escrevinhadores, retribuirão conselhos. Mas, geralmente, deverão brincar com personagens blogosféricos, desejavelmente machos alfas, elas mocinhas excitadas, lolitas après la lettre. Poderão ainda soltar uma solidária lágrima na mão de um ou outro que se faça de sensível ou deixar conselhos ou risos feitos de letras, muitas letras, na caixa de comentários de uns ou outros, consoante uns ou outros simulem uma ou outra situação.

A uma, em particular a uma, tolerar-se-á que fale do corpo inteiro e das ansiedades da vida. A outras achar-se-á graça que simulem ser livres no verbo e licenciosas nos hábitos mas, lendo-se, logo se percebe que aquilo é muita prosa e pouco amor, ou pouco mundo (que vai dar quase no mesmo). De resto, as mulheres deverão ser figurinhas alinhadas, bem comportadas, bem arrumadas junto à mediana. E, se não for isso, as mulheres desalinhadas arriscar-se-ão a ingressar no indistinto exército das mulheres sem cabeça, sem saber, sem querer.

Pois bem. Não aqui.

Aqui mora uma mulher que é mulher de corpo inteiro, uma mulher que não rejeita nem ignora nenhuma parte do seu corpo, do seu espírito, da sua vontade.
Por isso, meus Caros, vamos lá.


A mulher despiu-se. Ia tomar banho. Viu-se ao espelho. Sorriu. Tinha tirado a maquilhagem, tinha apanhado ao de leve o cabelo. Estava nua em frente de si própria. Com que olhos os outros a vêem quando a olham e ela vestida, com o seu 'costume'? Tentarão imaginá-la assim como está, nua?

Encostou-se à parede e deixou-se ficar a adivinhar-se. Os seios pequenos, as ancas generosas. O olhar malicioso. O gosto pela sedução. A mulher conhece-se.

Entrou  na banheira, a água lavou-a, a água percorrendo o seu corpo maduro, o seu corpo de mulher muito amada. 

Depois saíu, de novo em frente do espelho. O aquecimento sabe-lhe bem, o jacto de ar quente varrendo-lhe o corpo. Tão bom.

Então ele entrou.

Ela protestou, 'Abre a porta sem pedir licença... Além disso, entra ar frio. Não devia'. Ele disse: 'Protesta sempre'. Ela respondeu: 'Pois, estou aqui a arranjar coragem para pôr um creme, o creme está mais frio, e você entra, ainda me arrefece mais'.

Então ele diz: 'Vá, diga lá: onde é que está o creme?'. Liga o aquecedor de parede, encosta o creme para que fique quente e começa a tirar pequenas porções, a passar o creme pelo corpo da mulher. De vez em quando aproxima-se mais, torna-se abusador. Ela zanga-se: 'Oi! Que é lá isso? E esse profissionalismo...? Ai.'. O homem diz que é muito profissional, que ela já vai ver, que esteja calma.

Ela sorri, baixa o tom de voz, diz que sim, que ele lhe mostre. E ele mostra - cada vez melhor.

Então ela diz: 'Mas isso qualquer um faz.' Ele continua a passar o creme sobre o corpo da amada. Ela insiste: 'Um massagista ao domicílio... e só faz isso?'.

Ele diz que pode fazer mais. Ela diz 'Então vá, faça'.

Ele fala-lhe, então, naquela fotografia que antes tinham estado a ver. ´Desde que eu não caia'. Ele responde, a voz segura, ''Não vai cair. Vai subir ao céu' e começou a preparar as cordas. 


Quando ela estava assim, mas não tão alta, ele aproximou-se, encostou os lábios à sua pele, passou-lhe as mãos por todo o corpo, aspirou o perfume que dela se soltava, e disse, sussurrando. 'Gosto desse creme, a pele fica macia. E cheira bem, tem um toque de canela'. Ela, então, disse que sim, e sorriu. Depois, com malícia, disse que as especiarias tornavam o seu corpo mais apetitoso, ele que experimentasse. Ele obedeceu, aproximou-se ainda mais. Ela fechou os olhos e pediu 'Mas espere, ainda não, ainda falta uma coisa'. Ele protestou 'Mau...'. Ela não cedeu 'Falta, sim. Baixe o som à música'. Ele baixou. E ela, então, acrescentou 'Baixinho, bem baixinho, ciciando, a voz rente à minha pele, diga-me um poema'. Ele disse 'Ah, já cá faltava. ...Agora?'

Ela, firme 'Agora'.  Ele rendeu-se 'Vá. O que é que eu não faço por si...? Qual?'. Ela, de olhos fechados, disse: 'O que quiser. A votre seul désir'.

E ele disse. 'The cinnamon's peeler' enquanto ela se balouçava, perfumada e disponível. 


Depois cheirou-a. Longamente. Com vagar.

No fim, com cuidado soltou-a, pegou-a ao colo. Abraçada, ela aninhou-se.

Depois, irónica e suave, disse-lhe: 'Olhe, esteve bem. Hei-de contratá-lo mais vezes'. E ele disse: 'Obrigado. Ainda bem que correspondi. Mas espere, ainda falta uma coisa.'. Ela riu-se 'Ainda...? Puxa...!'. Ele beijou-a na boca. Depois disse: 'É que hoje é o Dia do Beijo'.

E ela, então, disse, 'Ora bem, assim sendo, chegue-se que agora é a minha vez'.

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As fotografias que aqui puderam ver e que me inspiraram são de Nobuyoshi Araki e fazem parte de um conjunto de 400 que vão estar patentes na exposição

Araki -- Musée Guimet, Músée National des Arts Asiatiques, em Paris, disponível  desde este 13 de Abril até 5 de Setembro 2016

Lá em cima, o violoncelista russo Vladimir Tonkha interpreta uma Chaconne de Tommaso Vitaly 

De novo trouxe aqui o poema de que tanto gosto,"The Cinnamon Peeler" de Michael Ondaatje (lido por Tom O'Bedlam).
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E, caso estejam para aí virados, queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde falo de beijos e do que importa nesta vida onde tantas vezes se esquece que todo o prestígio do mundo não vale uma noite de amor.


2 comentários:

Rosa Pinto disse...

Um beijo.
Todos os dias são bons!!

Um Jeito Manso disse...

Olá Rosa Pinto, bom dia,

Tem razão. Todos os dias são bons para serem vividos em grande estilo (ou em pequeno, se for esse o caso), e certamente para dar ou receber um beijo.

Um abraço, Rosa!