domingo, janeiro 24, 2016

Janis: Little Blue Girl





Na terça-feira passada teria feito 73 anos. Talvez nos aparecesse como aquelas artistas que a gente vê já com o peso dos anos em cima, pesadas, feições envelhecidas. Talvez conservasse ainda a rebeldia dos verdes anos e nos aparecesse com um ar vagamente desconcertante, cabelos compridos e fracos, pulseiras e anéis em excesso, talvez rindo-se como uma adolescente fora de tempo. 

Há pessoas que, pensando bem, parece conservarem-se melhor junto a nós se as tivermos assim, perto de nós mas de forma remota,  nós lembrando-nos delas como se paradas no tempo, para sempre imobilizadas num sorriso, num gesto, num requebro de voz. Não assistimos aos momentos de imperfeição, ao ruir do corpo, ao ruir da nossa ilusão.

Quando me encantei pela Janis Joplin já ela fazia parte do grupo das vítimas de overdose.

Não sendo eu dada a ter ídolos, nunca o fui, se me tivessem perguntado quem, na música, era a minha heroína eu teria respondido, sem pestanejar que era ela, Janis, uma heroína derrotada pela heroína aos vinte e sete anos.

No entanto, não sei porquê, eu pensava nela como estando viva.

Ainda hoje, 46 anos depois do seu desaparecimento, se a ouço, ouço-a como se ainda por aí andasse, igual ao que era, tal como eu a via na capa dos LP's. Aparecia com coletes bordados com brilhantes, túnicas coloridas, jeans, cabelos soltos, plumas coloridas sobre o cabelo que quase faziam parecer que tinha o cabelo cor-de-rosa ou verde, óculos exorbitantes. Gostava imenso de a ver assim, diferente de tudo o que se tinha visto até então.

Identificava-me com esse look.

Nunca fui de me arranjar à punk, mas usar cabelos soltos, túnicas coloridas ou jeans justinhos, pulseiras, isso sim, gostava. 

Mas não era aquele aspecto moderno, que parecia não conhecer fronteiras ou limites, nem aquele sorriso alegre, divertido ou ternurento, nem a irreverência que a mim mais me seduziam: era a voz. A voz de Janis, desde sempre, foi um grito de sensualidade, de vida, de força, de rotura. Sempre foi a forma quente, ousada, ilimitada com que ela se entregava ao momento que me prenderam. Cantava como se estivesse a nascer, a ter um filho, a entrar num mundo incandescente. Não sei explicar.

Quando era adolescente, especialmente a partir dos meus 13 anos e com intensidade crescente até aos 18, entrando depois num regime mais moderado, eu, que fazia parte de um grupo de uns cerca de 10 amigos fixos (e mais uns quantos que iam e vinham), tinha todos os fins de semana festas. Ou eram festas de anos, ou convívios que o liceu organizava, ou festas de garagem, ou fosse do que fosse. Sempre tive namorado e, portanto, essas festas exerciam sobre mim vários apelos: era o ambiente da festa em si, era a toilette, era o lanche, era a música e eram, sobretudo, horas e horas interinhas de dança. Ou dançávamos todos, freneticamente, em grupo ou eu dançava, in love, gostosos slows com o meu namorado (que começou por ser um, depois passou a ser outro; e, por fim, quando passou ao último, acabaram-se os bailaricos já que dançar não é, nem nunca foi com ele). E nessas gloriosas tardes dançantes (que, quanto muito, iam até às dez da noite), sempre que Janis entrava a rasgar, nós desatávamos todos, em uníssono, a cantar, alto e bom som, uma energia comum, uma emoção que nos electrizava o corpo e a alma. Quando a música se proporcionava, o meu namorado arrancava-me ao grupo, tomava-me nos braços e juntos celebrávamos a aprendizagem do prazer a dois, sentindo o corpo de um encostado ao corpo do outro.

Mais tarde, já com o meu desportista pé-de-chumbo, muitas vezes dancei eu, com ele a ver. E. algumas raras e gloriosas vezes, consegui puxar por ele e, a custo, dançar um dos tais gostosos slows.

A voz de Janis, aquelas canções, a forma explosiva, rasgada ou quente como as interpretava ainda me parecem actuais. Há intemporalidade naquele excesso, naquela transcendência.

Sei agora que aquele furacão que a invadia quando se encontrava em palco, a deixava vazia a seguir. Sentia-se muitas vezes sozinha. Ficava no hotel à espera que algum amigo aparecesse ou telefonasse. Enquanto eles não vinham, e muitas vezes não vinham, bebia, drogava-se. Na noite em que morreu, ninguém apareceu. Quando a encontraram, no quarto do hotel, estava caída, sem vida. Pensa-se que a heroína seria mais concentrada que o habitual. Pensa-se também que a sobredosagem, em conjunto com o álcool, aconteceram porque sim, porque eram uma forma habitual de compensar a ausência de adrenalina do quarto, ou talvez a solidão. Mas não terá havido vontade de morrer, terá sido um acidente como tantos que aconteceram nesses loucos anos.

Mas a vida é sábia. Parece haver uma lógica que muitas vezes nos escapa mas que, anos depois, se apresenta como razoável, talvez, até, justa.

Aquela voz extraordinária que arrancava uma força vinda sabe-se lá de onde -- porque daquele corpo menineiro não devia ser -- não conseguiria manter-se assim por toda a vida. Nem ela, pássaro louco e escandalosamente colorido, saberia viver como uma aquietada senhora de meia idade.

Partiu cedo, e, se calhar, partiu na altura certa, levando consigo o fulgor dos seus verdes anos.

Tomara que o filme/documentário Janis: Little Blue Girl, que saíu há cerca de mês e tal nos EUA, cá nos chegue. A sua vida foi reconstituída a partir das suas cartas, de entrevistas a amigos, dos filmes que existem, do que se conhece da sua curta e eterna vida -- e eu gostava muito de a conhecer um pouco melhor.



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Lá em cima, no primeiro vídeo, cantando 'Cry Baby', ela não sabia, ninguém podia saber mas Janis estava numa das suas últimas actuações, em 1970, a poucos meses de morrer.

Mas o fantástico é que não morreu: aqui está, no Um Jeito Manso, e a sua autora, como sempre, está encantada a ouvi-la, com vontade de cantar com ela, de dançar ao som da sua vibrante e poderosa voz.


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E daqui a nada vou votar. E vou votar esperançada de que haja segunda volta. E vou contente porque está quase a chegar a hora de nos vermos livres da múmia que se aboletou em Belém, não se sabe bem a fazer o quê. E vou a pensar que, com sorte, irá para lá alguém que dignifique o meu país e não o atraso de vida que nos últimos dez anos pareceu apreciar mais os mercados, as vacas e as cagarras do que os portugueses.

Tinha ideia de escrever ainda qualquer coisa mas já não vai dar. Cheguei agora a casa, tarde e más horas, já domingo, e, portanto, vou mas é para a caminha e amanhã há mais. 
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo. 
E, please, please, please, vão votar. Ficar em casa, no bem bom, é que non.

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