terça-feira, abril 07, 2015

Ainda ninguém a conhecia. Sabia-se apenas que vivia retirada em práticas piedosas.








Era uma multidão de soldados empurrando-se uns aos outros. Já não tinham medo. Recomeçavam a beber. Os perfumes que lhes escorriam das testas humedeciam-lhes com grandes gotas as túnicas em farrapos e, apoiados nos dois punhos assentes nas mesas que lhes pareciam oscilar como navios, passeavam os grandes olhos ébrios, para devorarem com a vista o que não podiam agarrar. Outros, caminhando pelo meio das travessas sobre as toalhas de púrpura, partiam a pontapé os escabelos de marfim e os frasquinhos tírios de vidro. As canções misturavam-se com o estertor dos escravos que agonizavam no meio das taças partidas. Pediam vinho, carnes, ouro. Gritavam por mulheres. Deliravam em cem línguas. Alguns julgavam-se nos banhos públicos, devido à humidade que flutuava à sua volta, ou então, vendo a vegetação, imaginavam-se à caça e corriam atrás dos seus companheiros como se eles fossem animais selvagens. Passando de uma para outra, o incêndio atingia todas as árvores, e os altos maciços de verdura donde se escapavam longas espirais brancas pareciam vulcões que começassem a fumegar. O clamor redobrava de intensidade; os leões feridos rugiam na sombra.

O palácio iluminou-se de repente no terraço mais alto, a porta do meio abriu-se, e uma mulher, a filha de Amílcar em pessoa, coberta de vestes negras, apareceu no limiar. Desceu a primeira escadaria que ladeava obliquamente o primeiro andar, e depois a segunda, e a terceira, e parou no último terraço, ao alto da escadaria das galés. Imóvel e de cabeça baixa, contemplava os soldados.





Atrás dela, de ambos os lados, dispunham-se duas longas teorias de homens pálidos, envergando vestes brancas com franjas vermelhas que lhes caíam a direito até aos pés. Não tinham cabelo nem sobrancelhas. Nas mãos faiscantes de anéis tinham enormes liras, e todos cantavam numa voz aguda um hino à divindade de Cartago. Eram os sacerdotes eunucos do templo de Tanit, que Salammbô muitas vezes chamava a casa.

Por fim, ela desceu a escadaria das galés e os sacerdotes seguiram-na. Avançou pela avenida de ciprestes, e caminhava lentamente por entre as mesas dos capitães, que recuavam um pouco ao vê-la passar.





O cabelo polvilhado de uma areia violácea, e apanhado em forma de torre em conformidade com a moda das virgens cananeias, tornava-a mais alta. Tranças de pérolas coladas às têmporas desciam-lhe até aos cantos da boca, rosada como uma romã entreaberta. No peito trazia um conjunto de pedras luminosas, que imitavam na variedade das cores as escamas de uma moreia. Os braços, ornados de diamantes, saíam-lhe nus da túnica sem mangas, estrelada de flores vermelhas num fundo todo preto. Trazia entre os tornozelos uma correntinha de ouro para lhe regular a marcha, e arrastava atrás de si a grande capa de púrpura escura, feita de um tecido incomum, que formava a cada um dos seus passos uma larga vaga que a seguia.

De vez em quando os sacerdotes dedilhavam nas liras uns acordes quase abafados; e nos intervalos da música ouvia-se o débil ruído da correntinha de ouro com o estalido regular das sandálias de papiro.

Ainda ninguém a conhecia. Sabia-se apenas que vivia retirada em práticas piedosas. 





Alguns soldados tinham-na avistado de noite, no alto do seu palácio, de joelhos diante das estrelas, no meio dos turbilhões dos incensórios acesos. Fora a Lua que a tornara tão pálida, e qualquer coisa dos Deuses a envolvia como um vapor subtil. Os olhos pareciam fixos no longe, para além dos espaços terrestres.





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A primeira pintura que ilustra o texto é Salammbô de Adrien Henri Tanoux, datada de 1921

A segunda é Salammbô de Alfons Mucha,1896

A terceira é Salammbô de Gaston Bussiere, 1907

As ilustrações de Salammbô são de Lobel Riche


O texto é um excerto do Capítulo 1: O Festim, de Salammbô de Gustave Flaubert numa tradução de Pedro Tamen.


Lá em cima, Dame Kiri Te Kanawa com a London Symphony Orchestra and Chorus interpretam "Aria from Salammbo"


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Para quem não for dado à literatura e prefira rapazes nus a dançarem com uma toalhita acrobática é só descer até ao post seguinte. Uma graça.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira. 


1 comentário:

Anónimo disse...

Segundo a História, quando no ano 332 antes de Cristo, Alexandre Magno cercava Tiro, acabou por capturar, na ocasião, os enviados de Cartago, que traziam consigo a tributo anual pago a Melqart, Deus de Tiro e venerado pelos “Púnicos”, ou Cartagineses. Alexandre veio a dedicar o navio sagrado dos tais enviados Cartagineses à divindade “Heracles”(ou Hercules, na terminologia Romana). Tiro veio, em consequência, a perder liberdade política, embora tal não impedisse uma quebra dos laços com Cartago e, como tal, o habitual tributo continou a ser entregue a Melqart, até á destruição de Cartago, por Roma, por ocasião da III Guerra Púnica. Os rituais de origem Fenícia continuaram deste modo a ser praticados em Cartago, até essa altura. Cartago possuía um santuario aberto, à época, onde eram enterrados embarcações com as cinzas de crianças e animais que tinham perecido. Aquele santuário, conhecido por “Thophet”, termo de origem hebraica, provavelmente não era usado pelos Cartagineses. Uma confusão que hoje é feita ao designar o tal local por “Salammbô”, embora seja tão só o nome romântico dado pelos arqueólogos, em 1922, em homenagem à heroína de Flaubert. Os Romanos na altura, por ocasião das Guerras Púnicas, montaram uma propaganda sem precedentes contra Cartago, acusando os Cartagineses de sacrificarem crianças nos altares dos seus Templos (o que não correspondia à verdade). O sanctuário de “Salammbô” era suposto conter as cinzas dessas crianças e animais, como oferendas aos seus Deuses (na óptica Romana). Séculos depois, a França, que a partir de 1830 começou a levar a cabo objectivos estratégicos político-militares no Magrebe, as histórias (resultantes da tal propaganda Romana da altura) da crueldade e decadência Cartaginesa, abundantemente descritas pela historiaografia Greco-Romana da época, foram recuperadas e projectadas sobre os árabes que então viviam e habitavam as regiões daquele passado histórico. De algum modo, a França portava-se como se fosse uma nova Roma naquelas paragens. E Flaubert, através da sua obra Salammmbô, acaba por, de algum modo, servir essa “visão”, criticando os tais “excessos de crueldade, sadismo sexual e luxúria, enfim, o estereotipo que existia nas mentes ocidentais de então, relativamente à “decadência Oriental”. Este tema, ou melhor, Post, que aqui nos trouxe é fascinante. A obra de G.Flaubert, nesse sentido, ainda mais interessante se torna, de ler (ou voltar a ler), embora, como se sabe, não contenha veracidade histórica. Mas que importa? Quanto ás obras (pinturas) que foi buscar são excelentes, da autoria de grande artistas. Um Post que me entusiasmou!
P.Rufino