sábado, março 07, 2015

La vie en rose


Este é o quarto post desta noite. Abaixo há duas anedotas oh la la, depois uma dúvida existencial para entendidos e, a seguir, uma cábula para ajudar a decidir em quem votar nas próximas presidenciais. Tudo enviado por Leitores a quem muito agradeço. Aconselho a que não deixem de consultar pois vale mesmo a pena.

Mas isso é a seguir. Agora, aqui, vou ver se consigo escrever qualquer coisa por mim em vez de andar só à boleia das palavras dos outros.

A noite passada acho que não dormi. Fui para a cama mais cedo para ver se conseguia dormir qualquer coisa mas, como ainda não estava com sono, quem é que diz que eu adormecia? Depois comecei a ver que, não tardava, tinha que me levantar. Depois já estava mesmo quase na hora e temi que, se adormecesse, não desse pelo despertador. Resultado, às 5 e picos estava a pé e em branco. Quando saí, ainda era de noite e a lua cheia estava muito branca. Na véspera, ao chegar a casa à noite, a lua estava ainda cheia de luz quente, amarela. Achei graça à mudança de cor da lua da noite para a madrugada. E estranhei os pássaros, cantavam muito. De dia não se ouve tal chilreio nas cidades.

Depois foram aquelas centenas de quilómetros do costume mas, felizmente, não fui a conduzir. Contudo, com a conversa, não dormi nem para cima nem para baixo. Nem sequer dormi na reunião. Depois, à chegada, a entrada em Lisboa toda bloqueada, um trânsito do além, filas compactas. Perdida de sono e aquilo a não desenvolver. Entretanto, foi-se-me a carga no telemóvel, nem os mails consegui ir lendo para tentar manter-me acordada. Por isso, ó meus amigos, quando cheguei a casa, troquei de roupa, deitei-me no sofá, tapei-me com uma mantinha, liguei a televisão e foi tiro e queda. Foi só uma hora mas foi o suficiente para agora aqui estar pronta para esta minha empreitada nocturna.

Enfim. Vamos lá, então. Hora de rêverie.






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Supõe que a minha pele é branca, que tenho olheiras de uma noite mal dormida e que tenho que me preparar para sair para um dia de trabalho. Supõe que não conheço nem laços nem limites e que, indiferente ao efeito que produzirei nos outros, resolvo cobrir-me de flores. Penso: que melhor pode haver para ouvir falar de planos de acção, de indicadores, de desafios e dos vermelhos e amarelos dos scorecards (os verdes não contam) do que ter a cabeça cheia de flores?

Sento-me então em frente ao espelho e disfarço as sombras da insónia, pinto os lábios de um carmim escuro que disfarce os meus lábios que são carnudos e, portanto, impróprios para tratar de coisas sérias. O vestido é florido e flores são também os brincos e o colar, toda eu um excesso de primavera. Coloco então umas gotas de chanel nº5 na nuca, nos pulsos e no decote e, enquanto o faço, penso: mas que imprudência, ainda corro o risco de alguém me dizer que não há consistência entre cortar uns pontos no orçamento e exalar o odor das flores do pecado. Mas depois penso: vá lá, juízo, quem é que ali iria produzir um raciocínio tão poético? 

Quando vou a sair, penso que ainda é noite, que está frio, será preferível agasalhar-me e, então, calço umas luvas. Escolho umas brancas para condizerem com a lua que está tão branca.




Deixa que te conte agora: a reunião correu na forma do costume, momentos altos e baixos, momentos de tensão e momentos de diversão.

Depois almoçámos, nestes dias temos sempre um belo almoço. Deixa que te conte ainda: podes não acreditar mas a reunião tem lugar num solar, uma casa apalaçada muito bonita, com grandes pés direitos e tectos trabalhados, portas que são obras de arte. Nessa casa há um terraço de onde sai uma escada que desce até ao jardim.

Como não repito uma toilette, na carteira, em vez de transportar um ipad ou outras inutilidades, transporto um pequeno vestido que troco para usar à tarde. Como está calor, trouxe um pequeno vestido em flores incendiárias. Talvez seja por isso que um dos meus colegas me disse: no doubt you drink from the firehouse.

Não liguei, estava com sono. Fui então descansar nos degraus, junto à buganvília que este ano floresceu mais cedo, encarnada, escandalosa. Para não ficar excessiva - less is more - tirei então o chapéu de flores. Lá em cima alguém tinha colocado a Melody Gardot que fazia questão de me lembrar
when you press me to your heart
I'm in a world apart
a world where roses bloom

e a sua voz e o rendilhado das sombras da buganvília cobrindo o meu corpo fizeram-me saudades, saudades de romances que nunca acontecerão. 

Não dormi mas descansei.

Iniciei, então, o caminho de regresso. Calor, sono, música, conversa. Até que, finalmente, cheguei a casa.




Depois de descansar, preparei-me, então, para a noite. Claro que troquei de vestido. Para a noite um vestido longo e, se ia escrever ao som de La Vie en Rose, contigo aí,

and when you speak, angels sing from above
everyday words seem
to turn into love songs

então teria que me cobrir de pétalas en rose. Abri o roupeiro, escolhi o vestido, soltei o cabelo, despi-me toda e, ah deus meu, tentei enfiar-me dentro da obra de arte que, tempo atrás, tão bem me assentava.

Não consigo fechá-lo mas, que interessa?, aqui só estou eu e tu que me lês, e tu és discreto, não espreitas, e, se calhar, até finges que eu sou a outra que imaginas e não eu.

Olho-me ao espelho, o vestido não me cabe mesmo, e eu pergunto-me: mas terei comido demais ao almoço? será que não deveria ter cedido à tentação dos doces? mas como, se tenho tanta dificuldade em resistir a doces tentações? 

A noite vai alta, percebo que já estou sozinha. Os anjos que me visitam enquanto escrevo uma vez mais desapareceram sem deixar rasto, esfumaram-se, devem estar agora a voar em volta daquela lua branca que tenho aqui na janela a iluminar as minhas palavras.

E estou com sono, o meu corpo pede que me renda. Para quê então o esforço de me tentar estreitar para caber no vestido das pétalas de rosa se nem estás aqui para me ver? Não. Vou tirá-lo. Só os sapatos é que não, gosto de andar nua com sapatos altos. 




Sento-me então sobre um céu azul e olho-te nos olhos. Precisava de um ramo de rosas para te mostrar como fico bem assim, nua, com um bouquet de rosas a cobrir-me o ventre mas levaste as rosas contido e a esta hora já não consigo inventar jardins e, por isso, colho as que nascem das minhas palavras.

Mas não estás aqui para ver as minhas flores, não estás. Olho-me então no espelho para perceber que mulher é esta que aqui sozinha se inventa e cujo cabelo se tingiu da cor da lua dourada, cujos lábios a esta hora já são tão impróprios e cujas mãos se escondem para que ninguém descubra que é das suas mãos que as flores brotam. E vejo que não é uma mulher, é mais que uma, uma na luz e outras secretas, esperando que as sombras se vão, esperando que o dia se ilumine ou que os anjos que às vezes a visitam apareçam de novo e, então, se eles vierem, ah e eu quero tanto que venham, então dançaremos todos, eu, as múltiplas mulheres que me habitam, tu, os suaves anjos, todos enleados, inocentes, sedentos, unidos pela perigosa teia que a sedução tece na nossa imaginação. 

Give your heart and soul to me
and life will always be
la vie en rose

......

E é isto por hoje. Todas as fotografias são de Tim Walker excepto a primeira que mostra rosas que provêm da florista Tearose de Milão. 

Relembro que, a seguir ao sonho, hoje vem o humor: anedotas, conselhos para as eleições, fotografias, crochet e as respectivas dúvidas existenciais e talvez mais algumas coisas de que já não consigo lembrar-me.

....

Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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2 comentários:

Vitor disse...

Lindíssimo e Fino texto, estimada UJM !
Belas fotografias .
Vitor

Rosa Pinto disse...

Des yeux qui font baisser les miens,
Un rire qui se perd sur sa bouche,
Voilà le portrait sans retouche
De l'homme auquel j'appartiens.


La Vie En Rose
Édith Piaf