De vez em quando são lançados temas para a opinião pública e aí ficam eles, larvares, sempre presentes, nem vivos, nem mortos, nem compreendidos, nem esquecidos.
Um dos temas refere-se às Parcerias Público Privadas, vulgo PPPs. Não conheço os contratos de nenhuma delas nem teria competência para os analisar por mim, em toda a sua extensão.
Mas percebo o conceito e acompanho o assunto com o detalhe possível na comunicação social, em particular na mais especializada, e, portanto, tenho muita dificuldade em diabolizar, em abstracto, o conceito, como se PPP fosse sinónimo de extorsão ao erário público.
O facto de alguns contratos poderem conter clausulado menos favorável para o Estado do que para a empresa ‘parceira’ (chamemos-lhe assim) não significa que o conceito PPP seja, só por si, mau – apenas significa que o contrato não foi feito de forma equilibrada, provavelmente por menor competência da parte que se considera lesada.
Mas primeiro falemos então, em traços largos, do que significa o conceito e para que se usa.
Se o Estado quer investir numa infraestrutura dispendiosa que vai servir ao longo de anos, das três uma:
1. Ou o Estado entra com o seu próprio dinheiro (caso seja um Estado superavitário) para realizar o investimento inicial e, depois, tenta recuperar o investimento através da exploração futura; ou
2. arranja um financiamento e arranja forma de, com a exploração futura, amortizar o investimento junto do financiador; ou
3. arranja alguém que assuma, por si, todo o processo, cingindo-se, contudo, às regras definidas pelo Estado.
As PPPs são a consubstanciação da terceira alternativa.
Exemplo 1: o Estado quer fazer um hospital mas não tem dinheiro para o fazer nem quer esgotar linhas de financiamento ou prejudicar alguns rácios de endividamento e, portanto, contrata uma empresa para o fazer, isto é, contrata uma empresa privada para ser ela a avançar com o dinheiro, fazer a obra, e, seguidamente, gerir o hospital.
Exemplo 2: o Estado quer fazer uma estrada mas idem, não tem dinheiro nem quer endividar-se directamente junto de entidades financeiras e contrata uma empresa que investe, construindo e explorando a dita estrada.
Um dado genérico para quem não acompanha estes assuntos: quando alguma empresa ou entidade, em geral, pede um empréstimo a uma ou mais entidades bancárias para financiar uma infraestrutura de longa duração, é feito um plano através do qual se analisa qual a melhor forma de amortizar um empréstimo. Geralmente para ser exequível, terá que ser um financiamento de longo prazo, que acompanhe a utilização da infraestrura ao longo da sua vida útil. Pode ser, por exemplo, um empréstimo para ser amortizado ao longo de 20 ou mais anos.
Vejamos agora, para começar, o exemplo 1, o do hospital. Suponhamos que o Estado contrata a empresa XPTO.
A empresa XPTO, como todas as empresas neste país, não nada em dinheiro. Portanto, começa por se endividar fortemente para ter verbas para fazer um hospital (que é obra de milhões de euros). Para saber de quanto precisa, fez o projecto de acordo com o caderno de encargos que recebeu: tantas camas, tantos doentes nas urgências em média, tantas cirurgias, etc. Suponhamos, para facilitar, que o custo estimado é 1000.
A seguir faz a obra. Entre o concurso, o projecto e a execução, passa muito tempo. Durante esse tempo a realidade por vezes altera-se e, vamos supor que, em vez de ser para aqueles pressupostos, o Estado pede que seja para mais. Logo aí, o investimento passa para 1100, por exemplo. Não é má gestão, muito menos corrupção, é apenas um ajustamento face a alterações de pressupostos. Mal seria não o fazer (então sabendo-se que teria que passar a assistir mais doentes, não se ia adequar a sua construção e equipamento a isso…? Não faria sentido)
Se o hospital fosse mesmo da dita empresa privada, XPTO, e não do Estado, ela a seguir geri-la-ia de acordo com o normal: far-se-ia pagar a preços de privados as consultas, cirurgias, internamentos, ou faria acordos com seguradoras. Assim, como o hospital se destina a prestar um serviço público, apenas haverá lugar à cobrança de taxas moderadoras. Ora a empresa XPTO não vive do ar, tem encargos com os bancos que financiaram o projecto, tem encargos com médicos, enfermeiros, etc. Ou seja, tem que receber uma renda do Estado. Seriam custos que o Estado teria de uma forma ou de outra, em qualquer das alternativas de financiamento pois foi opção sua ter um hospital público.
Neste caso, ao ter optado por uma parceria com uma empresa privada, admite-se que a empresa privada fará uma gestão apertada pois não quererá perder dinheiro e, portanto, o que o Estado pagará, será sempre menos do que pagaria se tivesse tido do ónus de se auto financiar e de gerir e pagar ele todos os recursos.
Mas, suponhamos agora que, em vez de ter que acorrer ao número de doentes acordados (mais coisa, menos coisa, porque isto funciona por intervalos), por terem fechado outras unidades hospitalares nas redondezas, ou por outro motivo, os números de doentes disparam. Nesse caso a entidade gestora, a empresa XPTO, terá que contratar mais médicos, fazer obras para ter mais camas ou mais blocos operatórios, adquirir mais equipamentos ou coisa do género. Nesse caso, uma vez que não vai receber dos doentes, terá que ser ressarcida do Estado.
Uma vez mais, não há má gestão, gestão danosa, favorecimento: há apenas um ajustamento decorrente da alteração de pressupostos.
Claro que as ditas rendas pagas pelo Estado obedecem a fórmulas que têm como base muitos factores de custo e, naturalmente, alguma margem de lucro para a empresa privada. É do lucro que as empresas vivem. Se tiverem prejuízo, não conseguem fazer face às suas despesas e acabam por fechar. Desejavelmente os lucros serão depois reinvestidos em novas actividades. E é assim que funciona uma economia saudável. Além disso, quanto mais lucram, mais as empresas pagam impostos. Ou seja, uma empresa ter lucros é o normal, não é caso para ser diabolizado. Pelo contrário, uma empresa que tem prejuízos é uma empresa que não paga impostos, que tem dívidas e que dificilmente sobreviverá acarretando desemprego e dificuldades junto das empresas a quem não paga.
Suponhamos agora o Exemplo 2, o da estrada. As alternativas de financiamento que se colocariam são as mesmas.
O investimento numa estrada é enorme (expropriação de terras, projecto, construção, remoção de terras, e, frequentemente as estradas têm viadutos ou pontes, e têm acessos, iluminação, outras infraestruturas de apoio, etc). E exigem muita conservação. Ou seja, para além do investimento inicial têm também (tal como os hospitais) elevados custos de manutenção e operação. A empresa, chamemos-lhe agora, YZK, tem que endividar-se fortemente para fazer face ao dispêndio a que vai ser obrigada.
Ora, quais as receitas de uma estrada? No melhor dos casos, a receita das portagens. Mas as receitas das portagens, em grande parte dos casos, são trocos quando comparadas com as verbas enormes de que precisa para amortizar a dívida e pagar os seus custos de gestão corrente.
De onde vêm, então, essas verbas? Uma vez mais vêm das rendas acordadas com o Estado. E, uma vez mais, são custos que o Estado sempre teria, só que teria que fazer essa gestão e, assim, adjudica isso a um privado que o tentará fazer o melhor possível para não perder dinheiro.
Como disse acima, não conheço os contratos pelo que o que vou dizer resulta de mera dedução a partir de dados públicos.
Os contratos desta natureza são frequentemente contratos do tipo take or pay. Quer isto dizer que, se o contrato pressupõe que a empresa contratada, a YZK, vai receber mensalmente 100, sendo que 80 vêm da renda paga pelo Estado e 20 das portagens (e a empresa precisa de receber esses 100 para pagar ao banco, ao pessoal, aos fornecedores, etc) e se as portagens caírem consideravelmente e em vez de 20 só receber 5, então é natural que o Estado, em vez de pagar 80 tenha que pagar 90 (geralmente, nestes casos, a compensação é inferior à diferença pois admite-se que, se não houve clientes, também houve menos custos directos {os custos indirectos serão os mesmos}).
Ou seja, quando se ouve falar em compensações e lá desata meio mundo aos gritos que as empresas privadas ficam com os lucros e não querem ficar com as perdas, rebéubéu pardais ao ninho, é um raciocínio errado. De facto, a empresa privada não está a ser ressarcida na parcela dos lucros mas, sim, na parcelas dos custos incorridos.
E, note-se, se não estivesse a empresa privada a fazer toda esta gestão estaria o Estado e teria os custos na mesma (pagamentos a bancos, a fornecedores, a pessoal, etc).
Outro aspecto: quando se mostram gráficos com pagamentos por mais de uma década às PPPs e toda a gente atira as mãos á cabeça, como foi isto possível?, estamos a comprometer a geração seguinte e mais não sei o quê – uma vez mais é alarido por coisa nenhuma.
Como expliquei em cima, a amortização de um investimento da ordem dos muitos milhões de euros é feita ao longo de muito tempo, décadas se possível. É o normal. Não existe investimento desta monta que seja de outra maneira, a menos que estejamos a falar de países em que o dinheiro cai da árvore das patacas.
E estamos a comprometer as gerações que vêm a seguir a nós? Claro que não. São gerações que vão usufruir de estradas e hospitais quase pagos. E são gerações que, a bem da continuidade do país, irão fazer novos investimentos para serem pagos ao longo dos anos seguintes.
Mais um ponto (e eu sei que isto já vai tão longo que já é mais um tratado que um post mas estou quase a acabar): atenção quando ouvimos estes sujeitinhos falarem que renegociaram PPPs e que já pouparam uns quantos milhões.
Geralmente dizem apenas isto e os jornalistas, gente que gosta que lhes dêem a comida à boca, nunca perguntam em que é que pouparam. Das raras vezes em que consegui perceber onde pouparam, não pouparam coisa nenhuma, limitaram-se a reduzir o âmbito do contrato. Assim, por exemplo, a empresa que gere as estradas tem por obrigação fazer a sua manutenção. Se o não fizer, tem menos custos. E o que eu vi foi que suprimiram a manutenção – o que é grave pois não apenas é um embuste como ou as estradas começam a ficar sem manutenção ou são custos que são transferidos das empresas para o Estado o que vai a dar na mesma coisa.
Conclusão: quero eu com isto dizer que não há nada a renegociar? Não sei. Talvez haja. Mudaram tanto as circunstâncias, que é natural que seja possível rever algumas várias parcelas.
Os contratos com as PPPs tais como quaisquer outros contratos devem ser claros, transparentes e ter mecanismos de fácil monitorização. Presumo que o sejam.
Em que casos poderá haver lugar a renegociação? Por exemplo, deve haver fórmulas que apurem os custos e estabeleçam uma margem de lucro. Se, por acaso, se vier a verificar que a margem de lucro resultante da aplicação do contrato é substancialmente superior à normal para este tipo de actividade, é porque alguma coisa não está bem e, nesse caso, pode e deve haver lugar a uma renegociação.
Pode haver verbas indexadas a factores que, na fórmula, sejam constantes quando, face às circunstâncias, podem passar a variáveis. E, claro, pode ter havido coisas incompetentemente negociadas e essas deverão ser revistas. Mas serão aspectos pontuais.
Mas são aspectos parcelares, pontuais, que devem ser analisados com ponderação, sensatez, conhecimento de causa.
Ouve-se ainda falar em taxar as PPPs. Não percebo bem o que é isso. As empresas que prestam os serviços ao Estado são empresas normais, sujeitas aos impostos normais, impostos que já não são pêra doce. Porque iriam ser objecto de um imposto a mais?
Sinceramente não percebo.
Diabolizar o conceito, sem se saber bem do que se fala, lançando a confusão, que é o que costuma acontecer na comunicação social em que todos falam do que não sabem, isso é o que deve ser evitado.
O que me parece importante é que, sim, haja mais transparência e que nós, cidadãos, sejamos mais exigentes, muito exigentes, conheçamos bem os contratos, as condições, tenhamos garantias que estão a ser monitorizados por entidades isentas e competentes, que não nos deixemos ir em cantigas, muito menos em cantigas muito pimba.
Nota: O que escrevi nada tem a ver com outras rendas como, por exemplo, as da EDP que aí a coisa fia bem mais fino. Aí, aliás, só bebem do fino. Aí, atenção, aí, alto e pára o baile.
2 comentários:
Esclarecedor. Goste do Post. Paulo Morais é outra voz relevante que muito e bem tem criticado esta questão das PPP.
P.Rufino
PS: quanto à EDP, trata-se de um assalto á mão armada! Uma porcomexia!
Lá UJM!
Perante tanta demagogia e a utilização das PPP como arma de arremesso contra o Sócrates ( como só ele é que as tivesse feito)e como um instrumento diabólico, fonte de todos os males e todas as corrupções (ver ontem o António "pingo doce" Barreto ) o seu texto é uma análise clara, lógica e serena, no seu Jeito Manso, que procura trazer a Razão para contrariar a mentalidade de política rasca com que este tema tem sido tratado pela generalidade da opinião pública.
Um abraço
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