segunda-feira, maio 27, 2013

Herança de família, dizem as revistas de decoração. Objectos do coração, digo eu. Sejam bem vindos a minha casa, in heaven: mostro-vos algumas peças que nasceram antes de mim e que, espero eu, viverão para além de mim


Depois de um fim de semana tranquilo, a respirar os ares do campo, no meio de flores e frutos, contemplando árvores e longas paisagens, não tenho vontade nenhuma de voltar à dura realidade.

Claro que, dando uma volta pela net, vejo coisas de bradar aos céus, nomeadamente aquelas coisas que tanto abalam a minha estabilidade emocional, que me revoltam. Aliás até já escrevi sobre isso - mas apaguei tudo. 

Deixo para amanhã a volta aos tristes tempos que nos envolvem. Hoje, se me permitem, vou deixar-me estar entre aquilo de que tanto gosto. 

Como ontem falei nas coisas que tenho comigo e que guardam memórias que me são queridas, este domingo fotografei algumas para partilhar convosco. Não garanto que nunca antes aqui tenha mostrado alguns destes objectos. Se isso aconteceu, desculpem-me.

Já aqui uma vez escrevi que os átomos são eternos e, por isso, tenho a ideia (ideia talvez um pouco peregrina), de que talvez uma parte dos seres que foram especiais na minha vida ainda ainda habite nos objectos em que, em tempos, tanto tocaram. Ou, se isso não acontecer, que é o mais provável, pelo menos gosto de pensar que eles ficariam contentes se soubessem que os seus objectos continuam a ser estimados.



Máquina de costura e ex-guarda fatos de uma Tia do meu marido


Este era o guarda fatos da Tia Nena. 

A Tia Nena era solteira, era tia do meu marido, a mais velha de quatro irmãos. Tinha um gosto apurado, clássico, muito exigente a nível de comportamentos. Os mais novos da família brincavam com ela, tentavam chocá-la, mas ela já estava habituada, não afinava, sorria condescendente - mas não abrandava na exigência. E era muito generosa. Gostava de oferecer pequenos objectos: umas vezes chegava com um embrulhinho feito em casa e eram umas colherzinhas de prata, outras vezes era uma caixinha especial que trazia protegida com um papelinho lá de casa. Tinha muito gosto na sua casa. Era uma casa muito clássica, numa das avenidas mais conhecidas de Lisboa, no último andar, com uma vista fantástica sobre a cidade. Quando morreu tive muita pena de ver como uma vida inteira a rodear-se de objectos escolhidos com tanto cuidado se torna, num instante, numa casa que os sobrinhos devem desfazer, distribuir entre si (como ela queria) e, às tantas, os sobrinhos têm mais que fazer, e já ninguém tem paciência para passar vários fins de semana a abrir gavetas, armários, arcas, e sem saberem onde vão guardar aquilo, e um não quer, outro também não, e são sacos e mais sacos, e mais sacos, e já querem é dar, oferecer, já querem é que aquilo chegue ao fim.

Abríamos as gavetas da cómoda e eram aquelas camisas de dormir tão bonitas, de rendas, bordadas, e um espartilho e, vá lá..., aparecia um motivo para fazer graçolas e todos se riam, e depois eram lençóis e lençóis, uns bordados, outros de renda, lindos, mas a maior parte eram estreitos, quem é que precisa de lençóis estreitos cheios de bordados?, e a ninguém servem aquelas camisinhas e combinações, ela era baixinha, só se for para meninas pequenas mas em que circunstâncias é que miúdas pequenas iam agora querer vestir aquelas roupas delicadas e bordadas?, e depois eram carteiras e mais carteiras, e nunca mais acabava...

Contra a vontade do meu marido, que é impaciente por natureza e que, ainda por cima, sendo o que era, não queria nada, fiquei com algumas coisas. Era como se, desta forma, estivesse a mostrar-lhe a ela que valeu a pena ter cuidado e tanto carinho pelas suas coisas pois, assim, estimadas, elas chegaram até nós e assim, entre nós, vão continuar.

Aquele, na fotografia ali em cima, era o guarda-fatos do seu quarto. Mas não era assim. Estava preto, tinha sido tingido com vieux-chêne. E tinha uma porta de madeira com espelho por dentro. Mandei-o limpar, eliminar o vieux-chêne e recuperar a sua cor original. Ao espelho, com a madeira da porta por trás, mandei pôr uma moldura em talha dourada e está agora sobre o sofá da sala. E, no lugar da porta, mandei pôr um vidro, transformando-o numa vitrine. E mandei pôr duas prateleiras de madeira.

Agora está cheio de coisas lá dentro, mais do que devia. Tudo a que os pimentinhas deitem a mão pondo em risco a integridade, são encafuadas lá dentro. 

Ao lado do guarda-fatos, agora vitrine, está a máquina de costura também da Tia Nena. Por cima está um retrato da minha filha pintado por mim.



Mesa que era dos meus avós


Esta mesa alta, na fotografia acima, mesa que quase parece um banco, era dos meus avós. Tenho esta alta e mais duas pequenas, iguais. Esta mesa estava num recanto protegido para que ninguém a fizesse cair pois tinha em cima uma floreira que tinha lá dentro um feto enorme. A minha avó borrifava o feto e mantinha a terra sempre molhada. O feto era imenso, não parava de crescer, as guias imensas, verdes, rendilhadas. A minha avó tinha muito orgulho neste feto. Era o feto e a avenca que estava no parapeito. Quase não podia entrar a luz por aquela janela. O meu avô às vezes queixava-se que quase não via quando queria ler no seu cadeirão, mas a minha avó era irredutível, a avenca não gosta de muita luz.



Mesa de apoio de sofá (ex-mesa de cabeceira da Tia Nena) e cadeirão do meu avô


O cadeirão do meu avô é o que se vê na fotografia acima, de madeira, ergonómico, confortável. Nem sei quantos anos terá. Sempre me lembro de o ver e, do que sei, já antes de mim ele existia. Está agora aqui neste espaço a que chamamos estúdio, na zona que é misto de sala e de quarto onde os jovens se instalam quando cá ficam. 

Em primeiro plano na fotografia, está esta pequena cómoda que era mesa de cabeceira do quarto da Tia Nena. Foi posta também na sua cor natural e agora está ao lado do sofá, como mesinha de apoio.



Lavatório da minha bisavó


A minha outra avó tinha no jardim à porta de casa um lavatório antigo. Já não tinha a bacia nem o jarro, apenas a armação. Usava-o como um suporte onde punha um vaso com flores. Sempre o achei muito bonito e dizia-lhe que era mal empregado, assim, no jardim, com um vaso. A minha avó, mulher de grande sentido prático, dizia que, como lavatório, já não tinha serventia e que ali no jardim era onde estorvava menos. Ela contava que já tinha sido da mãe dela e, por isso, ainda mais me encantava. 

Quando arranjei o meu quarto in heaven, pedi-lho logo. Foi pintado e mandei fazer um espelho com uma moldurinha simples. Depois vi-me aflita para arranjar um lavatório de louça e um jarro que servissem ali. Até que descobri os que aqui estão agora e que têm umas flores pintadas muito no tom das cores das cortinas e da colcha. As toalhas, de linho bordado com rendas, foram feitas pela minha mãe. A minha avó ficou toda contente quando o viu, reabilitado, acarinhado, aqui no meu quarto.

Estes são apenas alguns dos objectos que têm mais anos que eu e que, depois de terem sido usados por pessoas que me foram queridos, agora continuam a sua vida junto a mim.


**

Espero que isto, para vocês, não tinha sido uma grande seca. Estas coisas são especiais para nós mas, para quem não tenha ligação afectiva, são apenas objectos...

Resta-me desejar-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda feira.

10 comentários:

Bartolomeu disse...

Pelo contrário; "seca" nenhuma. Foi com imenso agrado que constatei o "jeito manso" com que renovas a vida às coisas que já viveram uma e que adaptas para outra, ficando prontas para viver muitas mais, assim o teu gosto e carinho predurem nos tempos.

A Matéria dos Livros disse...

Adorei a visita aos objectos antigos! São lindos e estão muito bem "tratados", ou adaptados à vida in heaven.
Também gosto muito destas memórias de família, ainda que eu própria tenha pouca coisa (não chegam a mim com facilidade, outras casas se adiantam).
Os móveis e outras lembranças dos seus avós/familiares parecem felizes, como a sua escrita autobiográfica. Gosto de a ver mais animada. Bons ares, in heaven!

Um abraço

Anónimo disse...

Malvariscos, malvaíscos, althaea officinalis, althaea rosae, é da família das malvas, dizem que tem propriedades medicinais e é uma planta linda.

Como lindos são os seus móveis do coração!
E 'pechiché' não tem nenhum?
Acho esta palavra tão deliciosamente kitsch...
A minha avó materna tinha um pechiché lindíssimo, com um espelho redondo e pedras de mármore.
Não sei o que lhe terá acontecido...

E como o Charlie Brown filosoficamente diz para o seu canito Snoopy:
'The world is filled with mondays'
só posso mesmo desejar-lhe uma bela segunda-feira!

Antonieta

Anónimo disse...

Cara “UJM”,
Gostei particularmente deste seu Post. E gostei desses seus móveis! Têm carácter. Temos também cá por casa móveis com história e que nos recordam tempos passados, de familiares que recordamos com muita estima, lugares onde com eles estivemos e que nos deixaram muita saudade.
Sou (ou somos) absolutamente anti qualquer móvel com um design moderno. O modernismo, por aqui, só em quadros, se bem que, sempre, junto de outros mais “clássicos”. Sou incapaz de me deixarar seduzir por qualquer móvel com um desenho mais avançado, ousado, moderno digamos (ou candeiro, etc). Temos preferência pelo rústico, ou antigo. Mesmo na cozinha. Jamais me nos passaria na cabeça ter, por exemplo, ter uma cozinha IKEA. Jamais! Tal não quer dizer que não aproveite a tecnologia mais avançada, todavia...integrada ou inserida num mobiliário de cozinha rústico, por exemplo. E como não gostamos de viver em apartamentos, só, ocasionalmente no estrangeiro, sendo que a última vez que vivemos num, em Lisboa, já lá vão quase 2 décadas (!), é-nos mais fácil arranjarmos a casa, mantendo o “toque” rústico. Em toda a sua área de habitação. Não sei explicar porquê, mas é assim. Nunca me sentiria confortável num ambiente de design moderno. Enfim, gostos não se discutem. Já nos sucedeu em estadias de hotéis, pousadas, estalagens, “cairmos” numa decoração moderna. Fico sempre desapontado. E nunca mais lá volto.
Na casa que meus pais possuem na Beira-Alta e na casa de Sintra de minha sogra temos, curiosamente, um lavatório do género que aqui fotografou, completo. Aqui há cerca de 1 ano, trouxe lá da casa da Beira, uma cadeirinha de bébé, lindíssima, para o nosso neto, em madeira de carvalho, castanha escura, com mais de 80 anos, que minha avó comprara para minha mãe e que hoje serve para o nosso neto ali se sentar, a comer as suas refeições. É um espanto e faz um sucesso de cada vez que alguém nos vem visitar.
Não foi seca nenhuma este seu Post! Pelo contrário! Os objectos, como muito bem diz, contém afectos. Ainda outro dia arranjava uma velha máquina fotográfica de fole, que aqui guardo com carinho, com que meus pais nos fotografavam em crianças. E tantos outros. Um, que particularmente aprecio, é um instrumento, em madeira velha, para guardar e servir à mesa uma garrafa de vinho, muito antigo, com uma espécie de roda. Para deitar o vinho da garrafa nos copos, delicada e requintadamente. Já não se encontram. Enfim, coisas com história. E se forem de família, melhor ainda.
Tenha um resto de bom dia!
P.Rufino


jrd disse...

Se Gostei!
Memórias de decorar...
:)

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

Que beleza de texto , que prazer ao
lê-lo , como as palavras deslizam e nos encantam e preenchem as nossa memória!
A UJM em "jeito manso" é também uma regalo para os seus leitores e uma fonte de inspiração para escrevinhadores (rima e é verdade).
Permita-me:
Coisas/sombras de vida/pousadas nos móveis/ocupando paredes/guardadas/nas gavetas do tempo/coisas/memórias tácteis/feitas nossas/nós mesmo/pedaços de naturezas mortas/vivas/em nós.

Obrigada UJM

e um abraço

fallorca disse...

Adjudico (de cabeça, em sonhos, eu sei) o ex-guarda-fatos, bela estante, e o cadeirão do seu avô para me sentar ao lado a «guardar» a caixa-forte dos livros :)

Isabel disse...

Adorei este post.
Também guardo algumas coisas antigas, da família. Coisas mais rústicas, vindas da aldeia e outras da minha mãe.
E de vez em quando compro alguma coisa.
Também acho que as pessoas a quem as coisas pertenceram (penso isso até em relação aos livros) ficariam contentes de saber que alguém as guarda com carinho.
Um beijinho

Maria Eduardo disse...


Olá UJM,
Seca? Nenhuma!... Adorei este seu post cheio de recordações e afectos. Estes móveis são mesmo objectos do coração e fiquei muito sensibilizada por os ter recuperado com tanto gosto e carinho. Na casa de meus pais havia dois guarda-fatos, um igual a este e outro em madeira mais escura e as mesinhas de cabeceira eram também iguais á que mostrou. Á medida que ia lendo o seu post as lembranças vinham-me à memória, com alguma tristeza... Quando os meus pais faleceram, fizemos partilhas "ás sortes" como se usava na terra, e por ironia do destino... talvez por ser a mais nova, calhou-me o grande guarda-fatos, a cama de meus pais, a cómoda toucador, o móvel da sala e mais peças, ou seja, calharam-se nas sortes, as melhores e maiores peças e de que eu tanto gostava!... O destino tinha-me favorecido demais e eu tinha intenção de repartir com as minhas irmãs algumas das peças pois não tinha o direito de ser mais bafejado pelo destino do que elas. Mas, para grande desgosto meu, aqui na casa onde resido já não cabia nenhuma daquelas peças e vi-me forçada a deixá-las todas à disposição das minhas irmãs, sobrinhos e sobrinhos-netos para as repartirem entre eles como quisessem e necessitassem... mas com uma única condição, enquanto eu viver, " NUNCA AS VENDEREM "!... para que as possa ver de vez enquando! Enfim...coisas do destino! Os meus olhos encheram-se de lágrimas ao reviver estes momentos que relembraram as peças que fazem parte do meu coração.
Um beijinho muito grande e bem haja por ter um coração tão terno.

Oliveira disse...

Adorei ler isto.Sobretudo a parte da misteriosa e doce Tia Nena das combinações virginais,lencóis bordados de sonhos de solteira eterna e do supremo simbolo da criatividade feminina que é a máquina de costura!
Que a sua alma descanse em paz!