quarta-feira, abril 03, 2013

O homem que plantava árvores


No post abaixo falo do gémeo separado à nascença de Miguel Relvas, o Embaixador Miguel Gonçalves, o guru deste governo, um artista de primeira, a quem cabe apadrinhar o Impulso Jovem. A malta é jovem, não pensa, deve ter congeminado o Relvas quando foi buscar este special one do empreendedorismo ao YouTube. Cá para mim, quando conversam, é ver quem dá mais pontapés na gramática. Não faz mal, isso da gramática não é chamado para as conversas do Relvas. Qual gramática, qual carapuça, isso é tudo treta, devem eles dizer, eles, ambos os três, o Relvas, o afilhado Gonçalves e o padrinho Passos.

Mas isso é no texto a seguir a este. 

Aqui, agora, a conversa é outra. Silêncio, por favor, que vamos falar de carácter e de árvores.

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Para que o carácter de um ser humano revele qualidades verdadeiramente excepcionais, é preciso ter a sorte de poder observar os seus actos durante muitos anos. Se esses actos forem desprovidos de todo o egoísmo, se o ideal que os conduz resulta de uma generosidade sem par, se for absolutamente certo que não procuram recompensa alguma e se, além disso, ainda deixam no mundo marcas visíveis, estamos então, sem sombra de dúvida, perante um carácter inesquecível.




Lugares onde se vive mal. As famílias vivem encostadas umas contra as outras neste clima de uma dureza excessiva, tanto de inverno como de verão, exasperada por egoísmos inconciliáveis. Uma ambição irracional cresce desmesuradamente, num desejo incessante de se escaparem dali. Até as qualidades mais sólidas quebram debaixo desse perpétuo contraste. As mulheres remoem rancores. Em tudo existe rivalidade, desde a venda de carvão até ao banco em que se sentam na igreja, dos vícios e virtudes que combatem entre si numa luta incessante e sem paz. E além de tudo isso, o vento incessante e sem descanso, irrita e enerva toda a gente. Há surtos de suicídio e muitos casos de loucura, quase sempre homicida.




O pastor, que não fumava, foi buscar um pequeno saco e despejou sobre a mesa um monte de bolotas. Pôs-se a examiná-las uma a uma com muita atenção, separando as boas das más. Eu fumava o meu cachimbo. Propus-me ajudá-lo. Respondeu-me que aquilo era uma tarefa sua. Pude confirmar isso mesmo, observando o cuidado com que o fazia, e não insisti. A nossa conversa resumiu-se a essa troca de palavras.

Quando juntou uma pilha razoável de bolotas, começou a contá-las e separou-as em pacotes de dez. Ao fazê-lo, ainda eliminava as mais pequenas e as que estavam ligeiramente gretadas, pois examinava-as realmente de perto. Quando conseguiu separar cem bolotas perfeitas, parou e fomos deitar-nos.

A companhia daquele homem dava paz.




Ao chegar ao lugar pretendido, pôs-se a espetar na terra o varão de ferro que trazia. Fazia um buraco, onde punha uma bolota, e depois tapava-o com terra. Plantava carvalhos.

Perguntei-lhe se a terra lhe pertencia. Respondeu-me que não. Perguntei-lhe se sabia a quem pertencia. Também não sabia. Supunha que fosse terreno comunitário ou então propriedade de alguém a quem não interessava? Para ele não era importante saber a quem pertencia a terra. E, assim, plantou as cem bolotas com cuidado extremo.

Depois do almoço, voltou à separação de bolotas. Devo ter sido bastante insistente nas minhas perguntas porque ele me respondeu. Há três anos que plantava árvores naquela região deserta, sozinho. Já tinha plantado cem mil das quais vinte mil já tinham nascido. Dessas vinte mil, ele ainda contava perder metade, devido aos roedores e a tudo o que há de imprevisível nos desígnios da Providência. Sobravam dez mil carvalhos que iriam crescer ali onde antes não havia nada.




Disse-lhe que, daí a trinta anos, esses dez mil carvalhos estariam magníficos. Ele respondeu-me simplesmente que, se Deus lhe desse vida, dentro de trinta anos teria plantado tantas outras árvores que estas dez mil não passariam então de uma gota de água no oceano.




Quando penso que um único homem, reduzido aos seus simples recursos físicos e morais, foi suficiente para fazer surgir do deserto esta terra de Canaã, acho que, apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas, quando faço contas a tudo aquilo que foi necessário de constância, de grandeza de alma, de persistência, de generosidade, para alcançar este resultado, sou tomado de um imenso respeito por este velho homem do campo, sem cultura, que soube levar a cabo esta obra digna de Deus.




Elzéart Bouffier morreu tranquilamente em 1947, no asilo de Banon.



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A partir da primeira imagem o texto é um conjunto de excertos do maravilhoso livro 'O homem que plantava árvores' de Jean Giono que, segundo André Malraux, terá sido 'um dos maiores escritores da nossa geração', escritor e pacifista, nascido em 1895, filho único de um sapateiro e de uma lavadeira. Nasceu, viveu e morreu em 1970 em Manosque.

Tencionava falar também de Alexandre Herculano no seu Vale de Lobos mas já é tarde, fica para uma próxima ocasião.

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Agradeço à Leitora Antonieta por, a propósito do meu imenso amor por árvores, me ter recordado este livrinho de que tanto gosto.


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Se estiverem para isso, muito gostaria que viessem comigo até ali ao lado, ao meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras ajoelham rente ao rio para depois verem uma mulher abrir os braços o voar levada pelas belas palavras de Manuel Gusmão. A música é uma maravilha, um improviso nas ruas da Venezuela, pelas mãos gráceis de Victor Morales, una quirpa llanera.

E, já sabem, para o duo Miguel & Miguel, os embaixadores gémeos, os verdadeiros artistas, é descer um pouco mais porque é já a seguir.

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E, com isto, me despeço. 
Tenham, meus caros leitores, um dia muito feliz e, se puderem, olhem as árvores e sintam a beleza e a paz que delas se desprende. 


4 comentários:

Anónimo disse...

É um livrinho maravilhoso, não é?
E pensar que só o descobri recentemente, no Modelo, a caminho de comprar batatas e cebolas...
O que prova que um bom livro pode estar à nossa espera nos sítios mais inesperados!

Obrigada, um beijinho e uma bela Quarta!

Antonieta

Maria Eduardo disse...

Olá UJM,
Li o livro e vi o filme. Uma grande lição de vida, persistência e amor pela terra e pelas árvores. Um homem solitário, que só tinha por companhia as suas ovelhas e o seu cão, mas era feliz a semear os seus carvalhos, a vê-los germinar e crescer, transformando o deserto numa floresta cheia de vida.
Obrigada também á Leitora Antonieta por nos ter recordado esta maravilha!
Copiei o URL do filme, não sei se dá para ver:
http://youtu.be/Klx8UBMRrMA
Um beijinho grande

Traçados sobre nós disse...

Cara UJM:

Apesar de eu conhecer o texto/contexto, gostei de o recordar. Agradeço-lhe, por isso. É curioso que ontem, tendo eu andado pelo campo, pensando em trabalhos que vou ter que fazer quando a chuva levantar, e não tendo ainda escrito nada, fui buscar um pequeno poema meu publicado em 2010 com o título "Árvores". Amanhã (ou hoje ainda), terei um texto/poema com o título provável "Da terra". Sabe, UJM, cada vez mais penso (talvez fique assim):

"... Que o entretanto da fuga passou / Que o mar chegou / Que melhor o ar temos / E na cidade de mais guerra / Mais da terra dependeremos / E mais livres viveremos!".

Anónimo disse...

Olá jeitinho,
Gostei tanto, tanto do poema do Traçados sobre nós. Tão verdadeiro.
Beijinhos Ana