A minha mãe fez 80 anos durante a semana que passou, num dia de trabalho. Por isso, na sexta feira santa, dia feriado, rodeámo-la de carinho e fizemos a sua festa de anos. Enérgica e bem disposta, tinha-nos preparado o banquete do costume. Por mais que eu diga que não faça nada, que eu levarei um bolo e sumos, não aceita, quer ser ela a fazer; e faz de tudo, pequenas quiches com espinafres, outras com cogumelos, uma taça enorme de doce da avó, bolo de chocolate com maçã. Mesa farta e tudo feito por ela. Os netos ainda vêm de lá com farnel e eu só não venho, para ver se consigo manter alguma disciplina alimentar.
Há uns anos, eu achava que uma mulher de 80 anos era uma idosa. Agora acho que algumas de 60 já são idosas. Aliás, há mulheres (e homens!) que antes dos cinquenta já o são, amargas, chatas, umas carpideiras, parece que nasceram velhas. E há outras pessoas a quem o tempo não verga nunca. Pode a vida roubar-lhes familiares e amigos, pode deitar por terra aqueles a quem mais amam, que elas ali estão, determinadas, vigorosas, bem dispostas, joviais. A minha mãe é assim. Não a consigo achar velha. Não é. Não parece e não é.
Mas os aniversários não se ficaram por aqui porque o ex-bebé resolveu este ano fazer anos no dia de Páscoa. Mais um apagar de velas, festa, carinhos.
Pelo meio, um breve matar de saudades in heaven. Chuva, muita chuva. Parecia o dilúvio. Noite e dia a chuva a cair forte e constante.
Por perto o rio engrossou, rápido, denso, enorme, mas, ali, in heaven, sítio alto, não há inundações, apenas vendavais.
Os belos e frágeis lírios tombaram, vergados pela água e pelo vento. Lindos, suaves, belos mesmo assim, jacentes, azuis, quase liláses, requintados, caídos por terra. O ano passado coloquei-os num bule antigo, esmaltado a lilás. Este ano estão sem força, todos eles água.
As rosadas flores da sálvia estão quase na mesma, amachucadas, a força da chuva e do vento é demais para a sua fragilidade. Acho-as bonitas na mesma, os efeitos dos Acts of God (como no léxico contratual se referem os danos resultantes de desmandos da natureza), mesmo que, por vezes, sejam violentos, são, ainda assim, capazes de despertar a minha admirada rendição.
Mal a chuva parou, por breves instantes, saí de casa e vim captar as gotas de água sobre as flores. Tudo tão efémero. Logo virá o sol ou o vento e as gotas secarão. Ou a flor murchará.
Os belos e vigorosos jarros, viçosos, despudorados, aparentam um vago ar virginal, as gotas brilhando sobre o véu branco. Mapplethorpe fotografou-os, impúdicos, indecentes, e Man Ray tentou captar-lhes a aura. Eu limito-me a fotografá-los cobertos pela transparência efémera das gotas da chuva.
As árvores estão todas a florir, lindas. A vida tem destes ciclos. Quando parece que os ramos estão secos, sem vida, quando a natureza se mostra inclemente, inundando, derrubando, eis que estes ramos aparentemente frágeis parecem ganhar nova vida, uma ressurreição que todos os anos me emociona, me enternece.
Destas pequenas flores, alvas, agora lacrimejantes, nascerão daqui a pouco ameixas carnudas, sumarentas, muito doces.
À porta da casa há três laranjeiras. Estão floridas e perfumadas. O perfume da flor de laranjeira é um perfume doce, fresco, sedutor. Pudesse eu aqui deixar-vos um pouco desse odor que, por vezes, é intenso, insinuante e de que gosto de me perfumar.
Olho estes ramos e há uma doce harmonia na forma como se desenham contra a paisagem. O marmeleiro está todo florido. Lá em baixo um grande cedro cresce, pujante, cheiroso, imenso, e eu só peço que continue a resistir a novos vendavais. Um pouco à frente, um outro acabou por tombar depois do vendaval de há dois meses. Mas este parece bem implantado, forte, eterno.
Ao fundo, a seguir ao vale, adivinha-se, debaixo da densa névoa, a serra onde o sol se põe num aparato incandescente nas tardes de verão. Agora anda escondido, o sol.
O grande pinheiro que caíu, já foi cortado. Aqui jaz. O tronco agora cortado está ensopado. Esperaremos que o tempo seque um pouco, para que a madeira pese menos. E eu sinto-me fria, quase cruel, por tratar agora o pinheiro à sombra do qual nos sentámos tantas vezes por madeira. Não devia fazê-lo, é como se me referisse a um amigo que tivesse sucumbido por corpo. Mas é assim que os ouço a conversar, a madeira está cheia de água, pesa muito, depois logo a tiramos daqui. Mas eu quero também pensar numa forma de prolongar a vida deste meu amigo. O cheiro dos pinheiros é também muito bom, estar sentado à sombra de um pinheiro numa tarde de verão é das coisas boas da vida. Sentei-me muitas vezes no banquinho que o meu pai fez (e que também quero ver como recuperar) à sua sombra e não quero, agora que tombou, transformá-lo em madeira para queimar na lareira.
Depois desse horrível dia de vendaval, quando o cipreste também caíu e foi cortado, o vizinho que nos ajudou sugeriu fazer unas banquinhos para os meninos - e lá estão, prontos para serem preparados. Não sei ainda se os pintaremos, se apenas os protegeremos das intempéries.
O tronco do cedro também foi feito em banquinhos que estão debaixo duma árvore.
Não sei se não faça uma roda de banquinhos para que os meninos façam brincadeiras. Ainda não sei. Mas quero prolongar a vida dos meus amigos que se foram num dia de vendaval, um cedro, um cipreste e um pinheiro, meus queridos amigos. Foram-se também outras árvores, mais pequenas, espontâneas, não plantadas por nós e às quais não estava tão afeiçoada como a estas.
Mas a vida continua, multiplica-se, desvenda-se em pequenos gestos. Ia escrever: em pequenos gestos de amor mas depois coibi-me, temi que parecesse forçado. Vocês não me conhecem bem, não sabem que sou mesmo assim, meio bicho, meio árvore, muito próxima dos elementos da natureza - se escrevesse aquilo poderia soar-vos fingido.
E porque digo eu isto, dos pequenos gestos? Pois, é que a terra é mãe, é fértil, as folhas mortas formam uma placenta macia onde as sementes vingam, vingam a sorte dos que partem cedo demais.
Com uma ternura difícil de exprimir descobri, nascendo no meio de folhas secas de azinheira, no meio de bolotas secas, no meio de uma ou outra pequena erva, um pequeno pinheiro. Nem dez centímetros terá ainda, um bebé frágil. Mas ali está ele, viçoso, destemido, um pinheiro bebé. Que emoção, que alegria. Teremos agora que o transplantar de forma a que cresça seguro, protegido.
Depois, de tarde, novas e risonhas alegrias. O ex-bebé já tem dois anos. Grande, brincalhão, o nosso querido ex-bebé.
Por sugestão da mãe, oferecemos-lhe a tenda e o túnel do Ikea. Uma festa. Os dois manos não pararam um minuto - perante o olhar da prima, feminina e coquette, que se diverte imenso com as diabruras dos primos, participando de vez em quando, mas com a elegância que lhe é característica. A tia fez-lhe uma fita para o cabelo, com missangas e florzinhas de feltro. Adorou e agora, toda vaidosa, usa-a como um colar.
O bebé, que já tem sete meses, no meio disto, ri e palra como um passarinho contente. Não quer estar sentado, só de pé. Não falta muito para ser o quarto pimentinha a ajudar à confusão.
E depois tivemos o lanche e mais doces, desta vez pela mão caprichosa da doceira que se vem revelando uma verdadeira fada do lar. Agora é vê-la, conferenciando com a avó, e quantidade de açúcar? 150 gr...? - perante o pasmo de todos quantos coabitaram com ela numa era em que a cozinha (ao contrário do irmão, um verdadeiro chef) não puxava muito por ela...
O leite creme com decoração de chocolate e morango macerado, a gelatina com smarties, os doces merengados também com morango - tudo obra da minha prendada e linda filha que, para além disso, ainda fez toda a decoração da sala, incluindo as próprias faixas de parabéns.
E eu, desta vez, não resisti a trazer para casa algumas destas doces iguarias.
E agora, que já são quase duas da manhã e que já escrevi que me fartei (como é costume, credo!), fico-me por aqui e nem vou reler porque, senão, nunca mais me deito.
***
No entanto, tenho ainda o desplante suficiente para vos convidar a visitarem o meu Ginjal e Lisboa onde, pela mão de Pedro Tamen, as minhas palavras se deitam numa cama, recordando um certo encontro junto a um certo farol. A música de hoje está a cargo de um grande intérprete de oboé, Henrik Chaim Goldschmidt interpretando Ennio Morricone.
***
E, assim sendo, despeço-me - mas não sem antes vos desejar uma bela semana, a começar já por esta segunda feira. Que a doçura dos afectos e a beleza da natureza vos transmita muita alegria e energia.
5 comentários:
Olá,
Parabéns aos aniversariantes e um beijinho especial à matriarca da família.
É uma benção ver a nossa mãe chegar aos 80 anos, activa, enérgica, a espalhar amor à sua volta.
Sei bem o que isso é!
O seu amor pelas árvores, fez-me lembrar um pequeno grande livro 'O Homem que Plantava Árvores', do Jean Giono, que descobri não há muito tempo.
Transcrevo: "Inspirado em acontecimentos verdadeiros, é uma história inesquecível sobre o poder que o ser humano tem de influenciar o mundo à sua volta. Narra a vida de um homem e o seu esforço solitário, constante e paciente, para fazer do sítio onde vive um lugar especial".
Provavelmente já o conhece, ainda assim não resisti a falar dele.
Fotos magníficas como sempre!
Um beijinho e uma bela semana!
Antonieta
Cara UJM:
Aproveitei (também) duas imagens suas, de ontem e de hoje, para compor o meu texto/poema de hoje "Páscoa, celebração", no meu blog "Traçados sobre nós".
Boa semana e obrigado.
J. Rodrigues Dias
Escrito com açúcar, com afecto e com talento.
:)
Rectificação: A Rua de Nenhures é na zona antiga de Palmela e não em Setúbal, como eu erradamente escrevi.
Antonieta
Olá UJM,
Foi uma Páscoa muito alegre como se pode sentir pela felicidade que transparece no relato que nos faz destes momentos felizes que passou junto dos seus queridos pimentinhas, e Pais, e por poder homenagear dois aniversariantes, jovens e activos, de gerações diferentes.
Parabéns aos dois e ainda à filha prendada, que herdou da Avó e da Mãe, o dom de tudo saber fazer com tanta perfeição, empenho e amor.
As fotos são uma delícia, até dá vontade de as pintar. Parabéns UJM por possuir essa tão grande sensibilidade e o dom de a saber partilhar com os seus Leitores.
Sobre as suas árvores que partiram e as que estão a renascer, diz que a vida continua, multiplica-se, desvenda-se em "pequenos gestos de amor", e porque não?... A mim não me soa a fingido, porque sinto que vive e sente o que diz, por isso é natural, brota dentro de si.
Ainda, tenho uma pequena sugestão, que me ocorreu, vejo na foto do pinheiro tombado que mostra um bocado de tronco com cinco pinhas novas! É uma peça lindíssima! Não daria para secar tal e qual está e depois envernizá-lo e pendurá-lo junto à lareira ou num recanto da sua capelinha?... como vê, isto também me está a sair espontaneamente e não é fingido, estou a sentir aquilo que estou a escrever...
Um beijinho grande para si.
maria eduardo
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