quinta-feira, dezembro 13, 2012

De que serve a beleza? De que serve a juventude? De que serve a inocência perante o fingimento e a lisonja? (E deixo uma adivinha, a ver se alguém descobre)







E, no entanto, fui, ah se fui, tão requisitada, tão admirada. A minha pele, os meus olhos, a minha boca. Toda eu. O meu corpo.

Deixa-me ver as tuas pernas e eu ria, fazia de conta que me envergonhava e, depois, como se estivesse distraída, mostrava-as. Mas havia em mim sempre um pudor que, de tão bonita que eu era, quase parecia artificial.

Deixa-me fotografar-te. E eu deixava. Não sorrias. E eu não sorria. Sorri apenas com os olhos e eu sorria só com os olhos. Ah que bonita que és. E, tantas vezes o ouvi, que imaginei que assim o seria para sempre.




Senta-te nessa cadeira, ao contrário, apoia os braços nas costas, espreita. Espreita como se me quisesses seduzir. E eu espreitava, sedutora.

Veste agora outra blusa que essa é muito fechada. E eu vestia. Deixa ver os ombros, deixa ver as pernas, deixa antever os seios. E eu, submissa, deslumbrada, a vida inteira pela frente e ainda tantos elogios por vir, tão bons, tanta ternura para receber, tão boa a ternura. 

Cada sorriso que recebia, cada pequena palavra, cada sugestão de prazer era sempre uma promessa de amor eterno, tão ingénua eu. Era uma dádiva, um presente que recebia agradecida.

Ficava triste, desiludida quando percebia que, afinal, era um plano secundário o que me estava reservado mas acreditava que, um dia, iria passar para primeiro plano. Queria tanto, tanto, tanto. Merecia tanto, esforçava-me tanto, fazia tudo o que me pediam.

Vamos ao cinema, e eu toda feliz. Depois do cinema podíamos ir jantar fora e eu agradecida, sim, sim, vamos, mas e se nos vêem? sempre eu com medo. Não vêem porque vamos para um sítio onde ninguém nos vê. E eu ria, sempre agradecida, sempre crédula, sempre submissa.

És a mulher mais bonita que já conheci, apetecia-me ficar a vida toda a olhar para ti, tão linda, tão linda, e eu lisonjeada, inocente, a alma acariciada. E essas palavras valiam por mil alianças, por mil papéis passados. As outras têm o resto, eu tenho o amor verdadeiro, a paixão, pensava eu.  Elas não são exigentes, contentam-se com tudo. Eu não, eu tenho a melhor parte. E iludia-me, iludia-me sempre.




Eu tinha, então, vinte anos e a minha pele era luminosa, os meus olhos sorriam, o meu corpo resplandecia.




Depois, eu tinha trinta anos um corpo firme, um ventre liso, uns seios firmes, uns lábios sorridentes, um cabelo brilhante. E tantos sonhos. Um grande amor, uma casa, uma família, sonhava eu. Mãe, vais ver, vou ter tudo, viagens, um jardim, uma laranjeira. E filhos também, mãe. Tantos sonhos.




Depois, eu tinha quarenta, uma pele mais espessa mas ainda macia, uns seios cheios, umas curvas mais pronunciadas, o cabelo ainda sedoso, com um suave ondulado, uns olhos que às vezes já se assustavam. Tão bonita que és, as mulheres mais maduras são melhores. E eu acrescentava, e tolerantes, e pacientes e o telefone tantas vezes sem tocar e o sofá tão frio e o espelho a começar a revelar as marcas do tempo. Vamos passar o fim de semana fora, tenho que ir em serviço. Clandestinos sempre, mas tão excitante isso, e tenho o melhor, tenho a vitalidade, o arrojo, o grão de loucura e um dia terá coragem e um dia será meu. E depois que já não podia ser, que aquilo não estava certo, que a mulher e os filhos e a família e tudo. E outra despedida. Tantas despedidas, tantas desilusões.




E depois eu já tinha cinquenta e quase já não conseguia sonhar e o cabelo tão sem vida e o olhar tão sem brilho e os lábios tão já sem sorrisos e os seios já tão inúteis e as pernas tão já sem graça. Tens um charme especial, não há outra como tu, e eu ainda a tentar acreditar, e, depois, nova desilusão, e tanto cansaço já, tanta descrença. E a casa tão vazia, sempre tão vazia, e os meus ombros tão abandonados, e eu tão já afastada de tudo, de todos. 

Passaram os anos. E o tempo, como um mar forte e desatento, foi deixando as suas terríveis marcas. Onde está aquela que fui, tão bela, tão desejada? Onde estão os que me cortejaram, agraciaram, amaram, os que percorreram o meu corpo? Onde estão? Onde estão que me deixaram aqui sozinha?

Desloco-me até à janela, escondo-me atrás da cortina, espreito a rua. Protegida da luz fria, coberta pela penumbra que me acolhe, digo em voz baixa as palavras que, antes, a brincar, dizia como se ensinasse aqueles que diziam amar-me:


Tens de fazer o papel de quem ama e aparentar, por palavras, que estás ferido;
    procura ser convincente, seja de que modo for;
não é custoso acreditar em ti; qualquer uma se julga merecedora de amor;
    por má que seja, não há nenhuma a quem não agrade a sua beleza.
Muitas vezes começa, porém, o fingidor a amar de verdade;
     muitas vezes, aquilo que no começo, simulara ser, veio a sê-lo mesmo.
Mais ainda por isso, ó mulheres, tornai-vos fáceis àqueles que fingem!
    Há-de transformar-se em amor autêntico o que era, ainda agora, simulação.
É, então, hora de cativar o coração, sorrateiramente, com palavras meigas,
    tal como galga a água corrente a ladeira da margem;
não hesites em louvar-lhe o rosto, os cabelos
    e os dedos esguios e o pé delicado;
dá deleite, mesmo às mais castas, o pregão da sua beleza;
    as donzelas cuidam da figura e ela dá-lhes prazer.


Sei bem de cor estas palavras, sei bem, tantas vezes as disse. Ensinava a arte de amar, eu, eu que julgava saber a arte de amar, eu tão ingénua, tão afinal sem nada saber, sem nada ter. De que vale a beleza do corpo quando ela é tanta que ofusca tudo o resto? De que vale a juventude quando é tão efémera? De que vale a esperança quando é tão perecível?

Quase sem querer, como um autómato demente, continuo em surdina,


Se me perguntas quanto tempo deve ela queixar-se, magoada, pois que seja curto,
    não vá a raiva reunir forças, à custa da demora excessiva;
que os teus braços lhe envolvam, de pronto, a alvura do colo,
    e acolhe o seu pranto no teu regaço;
dá-lhe beijos enquanto chora, dá-lhe a experimentar os prazeres...


Mas interrompo-me, ninguém me ouve, nenhuns braços virão para me envolver, nenhuns beijos virão afastar os meus prantos. Tanta a demora, tão excessiva a demora.

Já não tenho a quem ensinar, eu que nada sei. Vazia. Vazia eu numa casa vazia, tão fria, tão escura. Vazia. 

Olho-me no espelho enevoado. Procuro uma companhia nem que seja a companhia daquela que me olha no espelho. 




Choro. E a mulher que me olha chora também. Tem vinte, trinta, quarenta anos, não sei, mas chora como eu. Trazia já a solidão no olhar. A minha vida perdeu-se algures por aí e eu não dei por nada.


*

Este texto é a continuação do que escrevi ontem (e, aos que me preferem num registo mais animado, não sei o que dizer, talvez apenas que isto tem dias...). 

A música é Baby, I'm a fool e é, uma vez mais no Um Jeito Manso, Melody Gardot.

Catherine Deneuve aqui é fotografada por Jeanloup Sieff, Richard Avedon (a antepenúltima) e Helmut Newton (a penúltima). Não conheço a autoria da última.

Não identifico o texto transcrito, a itálico. Deixo para que adivinhem.

*

Como escrevi nos comentários de ontem não me foi possível hoje nem responder aos comentários - e tanto que o queria fazer, tão interessantes e generosos eles são - nem escrever no Ginjal, facto pelo qual me penitencio. Aceitem, por favor, as minhas desculpas. Tentarei fazê-lo amanhã.

E, por hoje, nada mais. Apenas, ainda, desejar-vos um dia muito feliz.

2 comentários:

A Matéria dos Livros disse...

"A arte de amar", de Ovídio?

Um beijinho

Bom sábado

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora!

Acertou!

Aliás deixei várias pistas pois fui referindo explicitamente 'a arte de amar' mas, claro, só lá vai quem o saiba pois, senão, passa por ser uma expressão inocente no meio de uma frase.

Ando a ler 'a arte de amar' e tem-me apetecido encaixar excertos na minha história.

Parabéns. Devia ter um prémio para lhe oferecer, não é?

Um beijinho e um bom domingo, Leitora!