quinta-feira, abril 26, 2012

Onde é que eu estava no dia 25 de Abril...? Em relação a 1974, logo conto. Em relação a 2012, conto-vos aqui.


Música, por favor


Pedra filosofal (letra de António Gedeão), interpretação de Manuel Freire

*

Comecei o dia com uma caminhada matinal. Frio, com um vento inóspito, a acinzentar-se este dia de 25 de Abril.

No local onde poucas horas antes estava um palco iluminado, de onde saíam os sons que animavam uma Praça cheia de gente a cantar e dançar, estava agora apenas uma grande estrutura metálica nua onde quatro homens pareciam pequenas figuras animadas que se aproximavam perigosamente do céu.




Mais abaixo, os festejos municipais: freguesias em luta contra a extinção, gente com cravos, balões, bombeiros, marchas pela banda filarmónica, gente com cravos. Muitos cravos. Cravos nas mãos, cravos nas lapelas, cravos a enfeitar carrinhos de bebés, cravos nas coleiras dos cães.




Depois o caminho levou-me inevitavelmente até à beira do rio. Aqui de novo gente a trabalhar. Agora aparentemente tapando fendas nos edifícios em risco de derrocada (pensos rápidos em corpos fracturados...?),  e eu só pensei que tomara que não vão descaracterizar o meu belo palácio a céu aberto.




Numa precária ponte de ferro, estreita e enferrujada, um pescador, indiferente aos festejos ou às efervescências partidárias, esperava tranquilamente o peixe, suspenso num ambiente hoje de beleza discreta e suave.




Um pouco mais à frente, um homem solitário, com um ar de serena sabedoria, enfrentava o horizonte meditando longamente, indiferente à fria ventania que fazia voar o seu sobretudo.




Mas o 25 de Abril é dia de alegria e convívio e eis que, para escapar à chuva, ao frio, ao vento, nos deslocámos em bando até ao CAM, um lugar muito nosso, repleto de memórias e vivências. 

Curiosamente, hoje o CAM (Centro de Arte Moderna da Gulbenkian) estava quase deserto. Um privilégio quase privado, uma maravilha. Um imenso espaço para as crianças poderem brincar, correr à vontade.

E se você, Leitor, foi um dos poucos que hoje, por acaso, almoçou no restaurante do CAM e viu umas mesas juntas, perto da grande parede de vidro encostada ao frondoso jardim, com um grupo muito divertido, com crianças irrequietas, brincalhonas, então saiba que eu estava lá.

Há tão poucos dias tinha lá estado (quando fui à exposição de Fernando Pessoa) e tinha visitado uma das temporárias, uma de nome A kills B. Nesse dia, entrei, espreitei e saí sem perceber qual a ideia. Pareceu-me uma bizarria sem história. E nem mais me lembrei daquilo.




Pois hoje, meus Amigos, pude constatar, uma vez mais, que as coisas são aquilo que a gente faz com elas. 

O que ali se passou hoje não poderei dar-vos conta por exceder o que se pode transmitir com palavras rápidas. Mostrar-vos-ei, contudo, algumas imagens para que fiquem com uma ideia da brincadeira que ali se passou, com o que as crianças deliraram, descobrindo cada recanto, subindo, descendo, olhando, perguntando, rindo, brincando. Uma festa, meus Amigos, uma festa!

A exposição em si é o que poderão ver - mas a festa que as crianças fizeram a partir dela ou dentro dela fizeram-me pensar que o autor gostaria, certamente, de saber a felicidade extraordinária que proporcionou a quem lá brincou e a quem os viu assim, livres, inocentes, descobridores.




Uma coisa que não identifico mas que parece um motor fez as delícias do mais crescidinho que, felizmente, contou com as explicações sempre pacientes do tio que ele adora.

Mal chegou depois a casa, tentou simular com os carros e com outros brinquedos o dito motor que o tinha deixado maravilhado e, falando sozinho, explicava ele o que era, repetindo as explicações técnicas que tinha ouvido ao tio.




A princezinha, de início reticente, depois intrigada, por fim, toda decidida, subia e descia os degraus, andava de compartimento em compartimento, abrindo e fechando as portas, risonha, radiante. Não parava.



E eu, que queria tirar uma fotografia de grupo tive que esperar, esperar, porque segurá-los era tarefa impossível. Tiveram que ser agarrados e levados ao colo. Aqui a princesinha, bem encostadinha ao irmãozinho que, não tarda, está aí para ajudar à festa.

(Quando suo as estopinhas para tirar uma fotografia em que estejam todos e é uma eternidade até que se juntem e não comecem a desistir os que, em primeiro lugar, alinharam - e, em que depois de tanto esforço, lá se juntam, mas fica sempre um a fugir, outro a olhar para trás, outro a esgueirar-se colo abaixo e os mais velhos todos torcidos a ver se evitam a fuga dos pequenos - interrogo-me sobre qual o estratagema que as famílias reais e as famílias surreais (do jetset, por exemplo) usam para conseguir  aquelas fotografias em que aparecem todos muito arranjadinhos, muito sossegados, todos a olharem para a câmara. Será que as crianças estão sedadas?)




Se o Leitor vir a primeira fotografia desta série relativa à exposição, verificará que existe um guarda-fatos à esquerda. Esse roupeiro tem uma abertura nas costas e esse buraco dá para o estrado que pode ser visto nas restantes fotografias.

Pois até o bebé, que só há pouco começou a andar, andava doido com aquilo, era vê-lo a enfiar-se por ali adentro, sempre em riscos de cair do buraco abaixo. Não parou, irrequieto e feliz, e a pobre da mãe (ainda com as calças molhadas depois de um passeio no parque, junto de pombos e patos, que acabou mais cedo dada a intensidade da chuva que, entretanto, tinha começado a cair) não sossegou um minuto.

Moral da história?

Bem, já a formulei: qualquer coisa, por estranha que pareça, por desnecessária que pareça, pode tornar-se uma festa. Bastará que a imaginação, o sincero desejo de fruição, a disponibilidade para a alegria, sejam postas em acção.

*

Ao cair da noite, já em casa, preenchemos a declaração do IRS e isso só não me estragou o dia, que tinha sido tão bom, dada a minha resiliência. Roubo, roubo, roubo. Mas é feio falar de dinheiro pelo que vou passar à frente. E passo à frente para me despedir.

*

Terei muito gosto em receber-vos lá na minha outra casa, junto ao rio. No Ginjal e Lisboa, hoje as minhas palavras são quase uma prece em torno de um poema de José Tolentino Mendonça. A música, belíssima, é Bellini.

*

E, meus Caros, espero que o vosso 25 de Abril também tenha sido bom e recordo-vos que amanhã não é segunda feira. Parece mas não é: amanhã, meus Caros, já é quinta feira - e que seja uma bela quinta feira é o que vos desejo.

10 comentários:

Anónimo disse...

Cara UJM:
Belo passeio de ternura, paciência e descoberta, numa manhã de chuva, mas tão bela como uma manhã de sol. Cada uma como é, e, como a gente quer. E sempre as crianças a ajudarem os adultos a ver o mundo, com os olhos virgens e o assombro de quem vê as coisas pela primeira vez, é a vantagem de ser criança. Aos olhos das crianças tudo é uma festa! E ontem era dia de festa e, por certo, não irão esquecer…
Sobre crianças “inanimadas “ nas fotografias “cor-de-rosa” ao colocar a questão, dei comigo a pensar … não será montagem ...? Ignorância minha. Sem dúvida!

“Porque o sonho comanda a vida…”
Dias felizes abraço da
Leanor formosa e segura

Maria disse...

Amiga:
Bom começo, a Pedra filosofal.
Estava frio, ontem. Dei a caminhada, com vento e chuva. Mas não vi nada que me lembrasse o 25 de Abril. Lojas abertas, caras fechadas, algumas mesmo crispadas. Nem um cravo, nada.
Fiquei mais triste, do que já estava.
E havia aquele besouro no meu ouvido, que sussurrava: Como estará a Helena?
Não conseguia esquecer. Vi no computador, tudo o que encontrei, sobre ela e o Miguel.
Eu sei. Sou mórbida, reconheço, mas sou assim.
Os meus patinhos, estavam com frio. Procuravam subir pedras, margens, fugir da água gelada.
Fugi da rua, fugi do tempo. Refugiei-me nos livros, na música.
Não sinto falta do tabaco, não penso nele.
Ainda bem, que o seu dia foi feliz.
O meu, passou. Ficou o besouro, pela noite fora.
Hoje, dia de Santa Limpeza, de Santa Empregada. Fiquei só com ela.
O meu marido foi almoçar fora, com os amigos.
Estou feita num oito.
A sua alegria, fez-me bem. O texto, fez-me sorrir.
Beijinhos
Mary

Um Jeito Manso disse...

Olá Leanor formosa e segura,

Um belo passeio, sim e tal e qual diz. Mas há que acrescentar um outro pontinho... uma certa canseira... que, sabe lá, o que são aqueles à solta. Alguém da família diz que são autênticos chiwawas. Ao princípio fiquei quase chocada com isso mas agora ao vê-los a meterem-se por todo o lado, penso nisso e farto-me de rir.

Tempo passado na brincadeira com crianças é sempre tempo de alegria. Não há tristeza que resista (até porque requerem atenção tão constante que não há tempo para outros pensamentos).

O sonho que comanda a vida está nas mãos deles e é nosso papel estimular os seus sonhos e facilitar-lhes o caminho para que os concretizem. E apoiá-los sempre, em qualquer situação.

Espero que já esteja tudo bem com o seu rapaz e que a Leanor e o seu marido já encarem as coisas com menos preocupação.

Dias felizes para vocês todos.

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Eu sou muito de tentar afastar pensamentos tristes relativos a coisas que estejam fora do meu alcance. Mas nem sempre o consigo. Também penso tanto na Helena. Há tristezas a que uma mãe deveria sempre ser poupada. Mas penso que ele foi andando, só isso. Esquecemo-nos mas, de facto, estamos todos de passagem, ninguém cá fica. Ele, que gostava de viajar, já foi andando. E nós, enquanto cá estamos, vamo-nos lembrando dele, sempre tão sorridente.

Ainda bem que o tratamento foi tão eficaz. É uma maravilha a gente pensar no passado relativamente ao tabaco, 'eu já fumei'. Eu também não sinto a menor vontade de fumar, nunca mais me apeteceu.

Quanto a essa de passar o dia na limpeza... bem... hum...

Eu estou habituada a fazer tudo à pressa. Detesto ficar um dia inteiro entregue a limpezas. Ainda no outro dia fiz uma limpeza profunda lá in heaven, mas faço tudo em modo compacto, fico exausta mas despacho uma limpeza num par de horas (se calhar não fica como deve ser mas, mais do que isso, já me faz achar tempo mal empregue, parece que estou a desperdiçar o fim de semana).

A pior coisa que posso fazer é ficar um dia de férias sozinha e entregar-me a limpezas profundas. Chego ao fim do dia com uma neura... tenho que despachar tudo para depois tentar compensar com outra coisa.

Mas, apesar disso, há coisas que gosto imenso de fazer como varrer, passar a ferro, lavar tapetes, coisas do género - faço é tudo à pressa para depois fazer outra coisa. E gosto muito de cozinhar.

Espero que a esta hora, que ler esta minha resposta, já não esteja feita num oito, que já esteja descansada.

Um beijinho, Mary!

Isabel disse...

Gostei muito de ver como foi bem passado o seu dia.
Eu passei o meu em casa. Inteirinho, mas aproveitei para ler um bocado . Foi bem passado.
O que é o CAM? Se sei (mas acho que não) não estou a ver.
Um abraço e bom fim-de-semana

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Tem razão... uma pessoa habitua-se a siglas e depois esquece-se que só as percebe quem as conhece.

CAM = Centro de Arte Moderna. Faz parte da Gulbenkian e é um edifício muito bonito dentro do lindíssimo jardim onde está também o Museu e a Fundação.

Vou acrescentar no texto. Obrigada.

Um dia calmo passado em casa a ler é sempre um dia muito bem passado.

Um abraço, Isabel!

Anónimo disse...

Cara: UJM
Muito obrigada pela sua atenção. O rapaz está melhor e, porque a vida continua, parece estar a levá-la para a frente. Como dizem cá em casa “ o que não tem remédio remediado está” e tentamos, tanto quanto possível, afastar a tristeza para longe.
E, se me permite, uma palavra para a dor da Mary – é indizível a dor da mãe, Helena, que vê o filho partir. É uma dor imensa para os que o sentiam seu deputado, seu amigo, seu …
A educação católica que recebi tem-me ajudado nos momentos em que me vi confrontada com a morte de familiares e amigos. E pensar que estamos de passagem para algo mais sublime ajuda muito.
Também para o pagão Ricardo Reis tudo é transitório. Todos somos.
"Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, (…)”
R. Reis
E tenham Dias felizes
abraço da
Leanor formosa e segura

Um Jeito Manso disse...

Belas palavras de conforto, Leanor, numa situação em que são tão poucas as palavras que conseguirão confortar uma mãe.

MS disse...

:) Gostei!

Antes de vocês chegarem já tinhamos entrado e saído de cena e não achámos ponta de interesse na exposição. Concordo plenamente com o comentário da Leonor formosa e segura quando diz que "...sempre as crianças a ajudarem os adultos a ver o mundo, com os olhos virgens e o assombro de quem vê as coisas pela primeira vez, é a vantagem de ser criança. Aos olhos das crianças tudo é uma festa!". E aqui temos a dura constatação que apesar de nos acharmos ainda jovens, a inocência e o interesse pelo desconhecido artístico já foram há muito.

Um Jeito Manso disse...

Olá MS!

Sério? Estiveram lá e também não perceberam o que era aquilo...?

Pois haveria de nos ver. Às tantas, levados pela alegria das crianças que achavam aquilo o máximo (e, de facto, que belas cores, que belo cenário), fartámo-nos de tirar fotografias, já toda a gente fazia poses 'à antiga', fotografias de família, uns sentados naquelas cadeiras, outros de pé, as crianças cada uma a fugir para seu lado - mas as fotografias ficaram giríssimas e só não as mostro aqui por razões óbvias (limitei-me a pôr aquelas em que não se vêem os rostos). Que tarde tão engraçada num local tão inesperado.

De facto, a criatividade é isto, fazer coisas inesperadas e a arte dos autores daquela exposição (A kills B) tiveram uma ideia completamente imprevista e inovadora. E depois daquilo tudo, agora acho que da primeira vez o mal esteve em mim que não consegui perceber que aquilo era um fantástico cenário para o que se quisesse lá fazer...


PS: E só espero que ninguém do CAM leve a mal a utilização que fizemos da exposição...

Obrigada pelas suas palavras, gostei imenso do que escreveu!