quarta-feira, fevereiro 08, 2012

Um homem de mãos vazias


Estava numa festa em vossa casa. Como sabes, não aprecio extraordinariamente este género de coisas mas, uma vez por outra, vá lá..., e gosto imenso da vossa casa, é grande, bonita, bem decorada. Estava muita gente, grande parte da qual eu não conhecia, muitas apresentações e eu logo esquecendo o nome, o rosto, a conversa, porque todas as conversas são de circunstância, e há muitos risos, muita desatenção e, consequentemente, muitas frases cortadas a meio.

Deambulava por ali, de máquina na mão (é uma desculpa para não ter que fazer conversa com ninguém), como sabes sou a fotógrafa do grupo, uns queixam-se, outros agradecem, alguns grupos formam-se para dizer cheese de boca aberta para a posteridade, outros fazem de conta que não querem, com a mão fingem que tapam o rosto mas riem, são os que mais querem, mas querem mais que isso, querem que se implore uma fotografia e eu uns dias faço-lhes a vontade, vá lá, deixa lá, estás óptimo..., outras vezes prego-lhes a partida e vou-me mesmo embora.

Eis senão quando vejo a porta da biblioteca meio fechada e, ao espreitar, vejo-te num cadeirão, não percebi se ensonado, se aborrecido. Às escondidas, fotografei-te. Estavas bonito, como sempre. Lá fora a tua mulher, sofisticada e quase intelectual, a fazer sala e a distribuir jogo e tu aqui, isolado. Intrigante. Mas ela já nos tinha dito que andas cansado, mal dormes, muitas viagens, muito stress, a crise, a bolsa, as imparidades, os accionistas, agora o fecho e apresentação de contas, tantas maçadas.


Depois afastei-me, voltei para a sala, entretive-me por ali. Até que me cansei de vez, estas coisas cansam-me sempre. Não fazer nada e estar sempre a sorrir cansa-me mais do que escrever de seguida durante dez horas ou conduzir reuniões tensas durante um dia inteiro, sem almoço.

Fui então até ao jardim. Fotografei flores, fotografei árvores, fotografei o vento a dar nas árvores, fotografei a minha sombra nas paredes. Ainda se ao menos houvesse crianças por aqui. Mas não, só adultos palradores e sorridentes.

E então reparo que te preparas para sair, és o dono da casa e vais-te embora, provavelmente é uma saída à francesa. Escondo-me e fotografo-te. Óculos escuros, um giraço, versace de alto a baixo (há bocado, na brincadeira, diziam à tua mulher que, vestido assim, até fazias lembrar o Sócrates mas ela, que é doce e conservadora, sorriu, abriu as mãos para esconjurar o mal e disse credo!) - vendo-te assim, quem diria que és um CEO stressado?  

Curiosamente, em cada mão levas uns livros e uns cadernos, coisa estranha. Fotografo-te. Sinto-me até ridícula mas não resisto (Life through a Lenz como a Leibovitz).

Depois metes-te no carro e fazes-te à estrada.



E eu, tomada sei lá por que impulso, meto-me no meu e vou atrás de ti. Conduzo até à Cidade Universitária. 

Intrigada, parei o carro longe do teu. Dirigiste-te à Reitoria e eu a pensar que estavas doido, num sábado, onde irias? Mas não, foste apenas espreitar. E eu de longe a vigiar-te. Depois desceste as escadas. Paravas, olhavas em volta. Fumavas, aspiravas o fumo, deixava-lo sair lentamente, os livros debaixo do braço, cachecol cinzento antracite da cor da camisola, cabelo revolto, a ficar grisalho. De longe via-te: alto, magro, quase etéreo, procuravas alguém, alguma coisa.

Temendo que me visses, eu obervava-te, tentando perceber se esperavas alguém, qual a direcção que, a seguir, tomarias, como faria para te acompanhar de longe, sem ser vista.

Uma mulher chegou ao pé de mim e perguntou-me se eu sabia onde era a Biblioteca. Expliquei, não percebeu, expliquei de novo  – e eu sem te querer perder de vista. E a mulher, chata, a insistir, se virava já, se só duas ruas à frente. Quase fui indelicada mas não queria perder-te de vista.

Com a minha máquina, objectiva de longo alcance, foquei-te de novo. Despenteado (era o vento, era o cabelo comprido). O teu ar preocupado, o teu olhar inquieto estava a deixar-me curiosa. Acendeste novo cigarro, a ponta do pé esmagava  o cigarro acabado de fumar, nervosismo nos movimentos. Olhavas o relógio, ajeitavas o monte de livros debaixo do braço, olhavas em volta, voltaste a subir as escadas, talvez para veres melhor.

De repente um carro aproximou-se, encostou, a condutora abriu a janela do lado do passageiro, debruçou-se e falou na tua direcção. Desceste os degraus a correr, aproximaste-te do carro, a minha objectiva sempre a seguir-te. Quando estavas perto e começavas a esboçar o movimento de espreitar pela janela do carro, desviaste-te como se alguma coisa te pudesse atingir e o carro arrancou em grande velocidade. 

(música, por favor)

Ficaste imóvel a olhar para o carro que se afastava. No chão, aos teus pés uma caixa e papéis que entretanto começavam a voar. Num instante todo tu estavas rodeado de folhas brancas que voavam em todas as direcções. Sentaste-te nos degraus, olhar perdido. Puxaste novo cigarro. As poucas pessoas que passavam olhavam intrigadas, algumas fizeram o gesto de tentar apanhar os papéis que voavam, mas vi que encolhias os ombros e as pessoas seguiam.

Fotografei-te vezes sem conta. Olhavas na direcção que o carro tinha seguido, olhavas absorto. Então reparei que disfarçadamente, como se fosse do vento, ajeitavas o cabelo e, de passagem, com as costas da mão limpavas o rosto. Tirei mais algumas fotografias mas logo parei.


Depois, um bom bocado depois, quando já não havia papéis a voar e quando o sol quase caía, puxaste a caixa para junto a ti. Com cuidado arrumaste nela os livros que tinhas trazido e afastaste-te sem olhar para trás. Ias de mãos vazias.

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[As fotografias retratam Patrick Dempsey, actor, e a música é 'Ne me quitte pas' de e por Jacques Brel]

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Uma bela quarta feira para vocês, meus Caros Leitores. Que a vida vos sorria.

12 comentários:

rosaamarela disse...

BOM post!
Texto mt emotivo...
abraço

Maria disse...

Jeitinho amiga:
Que tinham os papéis? que livros eram?
Eu teria ido espreitar. Coisa importante, para fazer um homem sair de casa, esperar tanto tempo e, depois ficar com ar de tudo ter perdido, deixar tudo para trás!? Grande mistério!...Ainda por cima com Brel e "Ne me quitte pas" em fundo!
Fiquei morta de pena e curiosidade.
Está vivo? Voltou para a mulher?
Gostei da história. Gosto de coisas a que possa dar um fim.
Beijinhos
Maria

dbo disse...

Cara UJM, simplesmente deliciosa esta "short story". Creio que uma história de desilusão como muitas que só o vento conhece, mesmo sem folhas brancas pelo ar e sem caixas de Pandora.

Como aditamento dir-lhe-ei que não é por preguiça e muito menos por falta de temas que tenho o meu URL em stand-by. Sou mesmo assim, faço ausências e longos silêncios, mas quando me lembro, além de partilhar também confecciono ideias. Voltarei quando menos se esperar, pois tenho mais recantos de escrita, também em stand-by.

Mais uma vez adorei o seu "post".

Teresa Santos disse...

E...?

E é o vazio na casa cheia, e é o vazio no casamento (será?), e é desencanto, e é o (des)amor.

Quantos correm na ânsia, na procura de algo que os preencha?!

Quantos têm as mãos, melhor, as almas vazias de afectos, mesmo que feitos de sonhos?!

O efémero? A importância do efémero?

O texto?
Quem sou eu para o "classificar"!

Abraço grande.

Um Jeito Manso disse...

Olá Rosita!

Obrigada. Fico sempre contente quando as pessoas que me lêem me dizem se gostaram ou o que pensam. É um estímulo.

Um abraço, Rosita.

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria,

A minha filha ainda há bocado interrogou-me sobre isto, queria que eu desvendasse os mistérios. Mas eu não sei, só sei aquilo que 'vi'.

O meu marido quando lhe perguntei o que achava ele que eram, com certeza, bilhetes de cinema, de avião, recordações,coisas assim.

Não sei, eu talvez me inclinasse para outra coisa, mas não sei.

O que sei, isso sim, é que gosto de escrever coisas assim, 'abertas', que dão para encaixar nelas várias histórias. Mas eu, nas histórias, sou como sou na vida de verdade. Se me contam, fico contente por confiarem em mim; se não, também não tento descobrir, respeito a privacidade das pessoas.

A ver se um dia destes o giraço ou a mulher voltam para eu ficar a saber mais qualquer coisa.

Um beijinho, Mary (e espero que já esteja boa!).

Um Jeito Manso disse...

Olá, Caro Deputado!

Ainda bem que gostou da minha historiazita. Saíu sem eu estar à espera mas soube-me bem escrevê-la e estou também curiosa mas não quero deitar-me a inventar o que se passa naquelas vidas. Ou eles me contam ou então podemos limitar-nos a imaginar.

Mas, olhe, agora vou ficar ainda mais alerta em relação aos seus escritos. Quando lá escrever alguma coisa avise-me, está bem? É que como há tanto tempo não actualiza, acabo por me esquecer de lá ir espreitar e agora fiquei ainda mais curiosa, quero ver logo.

Temos mais um Namora ou Torga, daquele género de médicos que gosta de escrever e que tem muitas histórias para contar?

Não demore, está bem?

Um Jeito Manso disse...

Olá, Teresita!

Pois, gente muito ocupada às vezes precisa de descarregar a adrenalina; casas muito cheias acabam por ser muito solitárias; gente muito sorridente acaba por esconder, por vezes, grandes vazios; casamentos muito arrumadinhos às vezes escondem grandes desarrumações. Tudo isso é certo.

Agora o que aconteceu, em concreto, a estes 'artistas', isso não sei. Mas estou com muita vontade de saber.

Estou a responder aos comentários e até estou com vontade de me pôr a escrever a ver se descubro o que é que se passa com aquela gente. Mas acho que vou deixar passar algum tempo, pode ser que surja qualquer coisa de inesperado.

Mas, olhe, Teresa, muito obrigada pelas suas palavras. 'Picam-me', dão-me vontade de ir atrás da história.

Ou história não será a 'classificação' certa...?

É verdade, Teresita, e por classificação...: como é que eu posso pôr ordem naquilo que escrevo? Meter dois meses de férias, reler tudo, coisa por coisa, e ver quais as melhores etiquetas? é que, de cada vez que escrevo, vou atribuindo etiquetas e já há mais de 100, acho. Sou tão desorganizada nisto...

Um beijinho.

Pôr do Sol disse...

...às vezes é no meio de tanta gente
que descubro afinal para onde vou
e esta pedra
e este grito
são a historia daquilo que sou....

a sua historia lembrou-me o poema de Maria Guinot, Silencio e Tanta Gente. Que será feito dela?

Apetece dar um rumo à vida desse bonitão.

Fico esperando.

Parabens.

Um Jeito Manso disse...

Pôr do Sol,

Já não me lembrava dessa canção, imagine, e eu que gostava tanto dela. E que bem que se encaixa aqui.

Sabe que também estou aqui a conter-me para não ir ver se desato os nós da vida do giraço...?

Ou dele ou da mulher dele que parece ser tão exemplar. Ou da mulher do carro, tão temperamental.

Obrigada pelas suas palavras!

Teresa Santos disse...

Um jeito manso,

O resto da história? Mas isso é uma inevitabilidade!

Aguardo, e não calmamente!

Quanto às classificações/etiquetas? Bem, dois meses de férias não direi, mas que isso lhe ia exigir muito tempo, isso ia!

Por que não "arrumar" um ou outro texto de que goste mais colocando uma nova etiqueta (ou mantendo a mesma) e, a partir de agora começar a ter uma classificação mais abrangente que cubra várias temáticas? É que se vai alterar tudo, minha Amiga, isso é um trabalho...

Abraço grande.

Um Jeito Manso disse...

Ai Teresita... que tenho mesmo que começar a organizar-me... Sou toda virada para a criatividade e pouco dada à arrumação...Mas isso é uma ideia, sim. A ver se consigo disciplinar-me nesse sentido.

Obrigada e vamos ver se hoje me atiro à história (mas há tanta palhaçada para comentar... ah, mon coeur balance...)