As imagens têm sido propagadas pelas redes sociais, pelas televisões e eu evitei falar nisso porque, perante o que se viu, pouco há a dizer. E é um tema que me toca fundo: sempre que as vítimas são crianças ou jovens eu fico especialmente sensibilizada.
Com intervalos de poucos dias, são-nos dadas a conhecer duas agressões de extrema violência levada a cabo por rapariguitas. E constatamos a normalidade com que os próprios encaram a violência, filmam-na, colocam no facebook. Um mundo virtual, sem limites, sem sentimentos, em que tudo é efémero e pouco valioso, incluindo a dor, a dignidade, o sofrimento, a solidariedade.
As televisões mostram-nos agora a casa das jovens, a família, os amigos.
O subúrbio a cru. As famílias desestruturadas, as pessoas de pele macilenta e flácida, as casas sem cor, tristes, desarrumadas, e um cansaço absoluto: nas mobílias, nas cortinas, na cara das pessoas, na voz.
Um pai, inexpressivo, diz que a filha agora está bem, acompanhada, presa.
Uma avó, de muletas, inerte no seu cadeirão, um fio de voz triste, diz que não conseguiu ver na televisão as imagens da neta, uma jovem, pescoço esfaqueado relata a cena e ouvimos falar de 10 euros, de um cigarro com pó, as facadas são recentes mas ela fala sem inimizade, com naturalidade, apenas uma amiga diz que a outra agressora é carente, que se a visse não lhe dizia nada, apenas a abraçava com muita força.
E nós, que assistimos a isto, podemos, em consciência, mostrar algum espanto?
Não sabemos que estes jovens cresceram a ver na televisão séries e filmes de violência, em que perseguições, pancada, esfaqueamentos, tiroteios, são banalizados, são apenas entretenimento?
Não sabemos que estes jovens cresceram a jogar no computador jogos que são a mesma coisa, em que se passa à etapa seguinte quando se matam os adversários, quando se escapa com vida a tiroteios, esfaqueamentos, tareias?
Não sabemos que estes jovens cresceram sozinhos, dias inteiros em casa ou na rua, sem acompanhamento familiar, entregues a si próprios, uns emulando os outros e todos emulando os heróis das séries de TV e de jogos de computador?
Mas não são só os jovens dos subúrbios, pois não?
Isto pode acontecer em Mem Martins, Damaia, Buraca, Vale da Amoreira mas também no Estoril, na Lapa, na Quinta da Marinha, na Foz, não é?
Claro que, apesar de tudo, nestes últimos locais as famílias não enfrentam necessidades básicas, há mais conforto, há as empregadas que sempre fazem algum acompanhamento, mas, de facto, na substância, pouca diferença haverá, não é?
Não é verdade que não nos importamos que estejam entretidos a ver violência na televisão, desde que nos deixem em paz? Não é verdade que deixamos que os nossos filhos cresçam tendo como referência principal a violência mais gratuita, a violência mais descontextualizada que nos chega em séries, filmes e jogos de fraquíssima qualidade? Aceitamos, passivamente, que seja a indústria low-cost americana a formatar a cabeça das nossas crianças. É ou não é?
Foi nisto que nos temos vindo a tornar: em seres acríticos. Tudo aceitamos. Basta ver a indignidade que é a imagem dos adeptos de futebol, rua fora, escoltados pela polícia como bichos. Porque, violentos, agressivos, se portam como bichos. Que insultam, provocam, destroem bancadas. E tudo aceitamos como normal.
Mas não é só no futebol, pois não? Basta ver, por exemplo, os comentários aos blogues, as respostas dos blogguers aos comentários. Da ironia à agressividade vai um tão pequeno passo. E para quê? Tudo tão gratuito, tão desnecessário, tão absurdo.
E se somos assim, sempre à beira de uma explosão de agressividade, porque nos escandalizamos quando vemos aqueles para quem somos um exemplo, por um telemóvel, por 10 euros, por um palavrão, por um cigarro, desatarem ao pontapé, à facada?
E porque nos espantamos que, os que assistem, fiquem impávidos como se estivessem a ver ums série de TV, um jogo, e filmem tudo para partilhar com os 'amigos' do facebook? Não é o que fazemos, sobre qualquer porcaria que se passe connosco: ir a correr 'postar' no facebook*?
(* Estou a falar no plural porque me pareceria imoral desresponsabilizar-me de uma situação que penso que é culpa de todos mas nada disto é, de todo, a minha prática)
A civilização tem vindo a caminhar neste sentido, temos que reconhecer. Há dentro desta sociedade perversa as sementes da desagregação, da destruição. Não nos admiremos pois quando observamos, a cru, o fruto da nossa negligência, do nosso egoísmo, da nossa falta de solidariedade, da nossa tão grande estupidez.
Nota: Hoje soube-se de uma caso igual ao da agressão entre raparigas filmado e colocado no facebook no Brasil. A globalização da maldade, do desalento e da indiferença.
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