Pouco anos depois de eu própria ter saído do ensino secundário como aluna, voltei como professora. A minha surpresa foi total: a degradação tinha sido galopante, degradação a nível dos programas, dos conhecimentos por parte dos alunos, da dedicação dos professores, da rebaldaria nas aulas, nos corredores, nos recreios.
Decorridos mais uns anos, e não há muitos, talvez uns 3 ou 4 anos, voltei de novo ao secundário ao abrigo de um programa de voluntariado. É certo que estive durante uns meses apenas e é certo que estive numa escola de uma zona carenciada mas, aí então, era a catástrofe.
Os alunos não sabiam nada de nada, mas não me refiro apenas a conhecimentos académicos, refiro-me também a simples regras de convivência social. Os primeiros 10 a 15 minutos de aula decorriam com eles a entrarem na sala, a sentarem-se, a mudarem de sítio, a ajeitarem-se entre eles, tudo no meio do maior ruído, e uns de boné na cabeça, elas de telemóvel a mandarem sms, outros com os pés em cima da cadeira do lado.
Mas o curioso é que o professor ‘residente’ que me acompanhava parecia achar normal estar rebaldaria e os alunos pareciam nem perceber a minha insistência em que estivessem com os pés no chão, que tirassem os gorros, capuzes e bonés que quase lhes tapavam os olhos, que não atendessem telemóveis ou mandassem sms - como se eu fosse uma marciana que ali tivesse aterrado.
Quando finalmente eu conseguia restabelecer alguma disciplina, o grau de concentração e de interesse era mínimo e passado pouco tempo, pela dinâmica da saída, já se começava a perceber que o toque de saída não tardava. Apesar disto, diziam que gostavam das minhas aulas e o director de turma louvava a mão que eu tinha neles e o interesse que demonstravam – mas eu só podia mesmo ficar perplexa: se aquilo era com interesse, o que seria então quando estavam desinteressados?
Quando no primeiro dia do curso pedi a cada um que, numa folha, se identificasse, se descrevesse e dissesse que profissão queria ter, foi um castigo. Não queriam escrever, não percebiam porque deveriam escrever, não sabiam o que escrever, uma desordem, um reboliço como não há descrição. Quando consegui que percebessem que deveriam fazer isso porque ali quem mandava era eu e eu os tinha mandado escrever, a contragosto lá o fizeram.
O resultado final foi um susto, um desgosto. Letras quase ilegíveis, uma escrita pouco acima da escrita de analfabetos. Mas pior: para minha surpresa, grande parte das profissões que me apareceram foram, e pasme-se, ‘ajudante’.
Ajudante? Quando perguntei, a cada um dos que tinham escrito isso, a que se referiam em concreto, não percebiam a minha pergunta, ‘Ajudante! Ajudante é ajudante, o que é que quer saber? Ajudante, ora.’. ‘Mas ajudante de quê, de quem?’, insisti. Então as respostas eram variáveis, ‘de cabeleireira’, de ‘cozinha’ de ‘pedreiro’, etc.
Ou seja: não tinham como ambição ser cozinheiros ou pedreiros mas apenas ajudantes. Verdadeiramente deprimente.
Os corredores e recreios pareciam tudo menos de uma escola, tal como entendo que deve ser uma escola. Era barulho, confusão, gente pelos cantos, tocava e ficavam na mesma, sem se mexer, e os empregados ou professores que, por eles passavam, também não se incomodavam com a situação.
Mas pior ainda: a sala de professores. Quase todos vestidos na maior balda, grande parte deles esparramados nos sofás da sala de professores, comendo de boca aberta, falando com a boca cheia, a campainha a tocar e eles preguiçosos e enfastiados a arrastarem-se a custo para as salas de aula.
Não é ficção: eu vivenciei isto.
Claro que há escolas e escolas, alunos e alunos, professores e professores. Tenho familiares muito próximos que são professores e sei como generalizar é injusto para aqueles que são competentes e dedicados e para as escolas que funcionam exemplarmente. Só que situações como as que descrevi não deveriam ser possíveis.
Isto passou-se num 8º ano de uma escola da Grande Lisboa e esses jovens ainda lá devem andar, a menos que tenham desistido, coisa que vários diziam que tencionavam fazer já que, segundo eles, ‘andavam ali a perder tempo’, ‘não aprendiam nada de útil’.
Que preparação a escola dá a estes alunos? Pouca, muito pouca.
Que formação académica, técnica e cívica terão quando adultos? Pouco acima de zero.
Dá ideia que as reformas e mais reformas que, nas últimas 3 décadas, têm ocorrido a nível do ensino são todas no sentido de abandalhar, enfraquecer, desorganizar, desautorizar, aligeirar.
Os programas, em todos os níveis de ensino, têm que ser mais exigentes, as avaliações mais exigentes, tem que haver mais tempo de aulas, os professores têm que trabalhar mais horas (horários de 12 horas semanais é pura aberração; se nas profissões normais se trabalha em média 37,5h ou mais, por que carga de água haverão os professores de trabalhar um terço ou metade disso? – falam que têm que preparar aulas e corrigir testes e é um facto; mas fui professora e sei o tempo que isso leva, em termos médios mensais não é muito e, além disso, quantas vezes os não-professores trabalham fora de horas, noites, fins de semana e o que for preciso? E, na maior parte das vezes, for free), tem que haver disciplina, hábitos de trabalho e de aprendizagem. Havendo tudo isso, a motivação surgirá espontaneamente.
Mas mais: uma escola, qualquer escola, tal como qualquer unidade organizativa, tem que ser gerida e, quando me refiro a gestão, refiro-me a gestão do ponto de vista integrado.
Suponhamos, como exercício abstracto, que eu recebia a incumbência de gerir aquela escola onde estive como voluntária durante uns meses.
Primeiro reuniria os dados:
o orçamento por natureza (custos com professores, com pessoal auxiliar, custos de manutenção, etc) e por destino (laboratório, educação física, projecto-escola, etc)
a distribuição de alunos por turmas, com caracterização (idade, sexo, aproveitamento médio, repetente ou não, etc)
uma análise por disciplinas e por ano do aproveitamento médio
a caracterização dos professores por disciplina (idade, sexo, antiguidade na função, antiguidade na escola, etc)
….
Face a essa análise, avaliaria então quais as áreas mais críticas e quais os planos de intervenção para as atacar (com os recursos disponíveis): quais os objectivos a alcançar e em que prazo, quais as metodologias para implementar as alterações necessárias, quais os indicadores de aferição para monitorizar a evolução dos planos, quais os responsáveis por cada objectivo.
E, regularmente, reuniria com as equipas formadas para avaliar a boa execução do plano.
No final do ano deveria ter atingido objectivos tais como, por exemplo: reduzir em 20% as desistências escolares do 9º ano; subido em 1 nível a avaliação média da disciplina Matemática do 8º ano, subido 20% no número de alunos a fazer testes vocacionais no 9º ano, etc, o que no conjunto e de forma global, se deveria traduzir em que a escola subisse o seu rating de XPTO para YPTO de acordo com uma escala previamente definida.
E claro que os professores teriam que ser avaliados consoante o nível de prossecução face aos objectivos que lhes tivessem sido estabelecidos.
E claro que seria suposto que o Ministério criaria as condições para que a gestão global de cada escola fosse monitorizada e a sua equipa de gestão responsabilizada. Tudo muito objectivo, sem mas mas.
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Outro aspecto: as análises demográficas de séries longas são essenciais para traçar metas para o país e têm que ser analisadas sob diferentes perspectivas.
As áreas de formação privilegiadas devem ser antevistas e preparadas antes de lá se chegar. Por exemplo:
• se quisermos voltar a ter alguma independência na agricultura, nas pescas, na indústria, então tem que se avaliar, a nível nacional, qual o intervalo razoável de alunos que têm que receber formação nessas áreas (nessas e não em cursinhos de brincadeira) e têm que se organizar as escolas nesse sentido (professores dessa área formados em número suficiente, laboratórios em número suficiente, etc)
• e se o país se tornou um país de funcionários e de subsidiados, então há que formar uma geração de empreendedores e há que dar formação em empreendedorismo
• ... e por aí fora.
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Tudo isto são áreas em que há que ter uma visão estratégica, integrada, fundamentada e em que há que pôr os pés na terra, arregaçar as mangas e, de forma pragmática, partir para a acção.
E, se for indispensável, há que catequizar o insuportável Mário Nogueira para a necessidade de se deixar de brincar aos Homens da Luta e passar a colaborar na construção de um país melhor. Todos somos poucos para deitar a mão a isto.
É com gente educada, formada e motivada que se conseguem ter patrões competentes, gestores capazes, trabalhadores qualificados em todas as áreas da sociedade pelo que, sem sombra de dúvida, a educação deverá ser uma grande prioridade nacional.
2 comentários:
passei pela mesma experiência e não regressaria nem mesmo como voluntário. um exemplo: os profs. mais antigos aranjavam o expediente de nos horários ficarem sempre com a sexta e a segunda livres. fins-de-semana catitas, quer melhor? e as aulas, a transmissão de conhecimentos, a meia-bola e força já tá. quando oiço o nogueira... blhérque!
É isso mesmo. Os professores têm agido como uma tremenda força de bloqueio, com um fechadíssimo espírito corporativo e, com isso, têm fechado o ensino às necessárias alterações (e, para que não se zanguem os que são competentes, dedicados, etc, volto a referir que falo em termos gerais - mas que casos como os citados não devem ser admissíveis).
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