Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer -
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
(Nevoeiro de Fernando Pessoa in Mensagem)
(Oedipus and the Sphinx after Ingres da Colecção Berardo em exposição no MACE)
Tal como ontem referi volto a Pedro Mexia em As Vidas dos Outros pois nunca vi melhor interpretação da obra de Francis Bacon.
Diz ele: "Esta é a mais violenta das pinturas, aquela que levou a representação do corpo humano a um nível de horror poucas vezes visto. [...] Encontramos infindáveis declinações da ideia de homosexualidade e violência em toda a obra de Bacon. Ele cultivou uma aura de "wild boy from Ireland" que se dava com machões iletrados e delinquentes, e os seus gostos sexuais masoquistas faziam com que aparecesse frequentemente com hematomas, resquícios de uma noitada mais feroz. Nada que uma maquilhagem minuciosa, à base de rouge e graxa, não escondesse, e que um másculo blusão de cabedal não atenuasse.[...] Corpos deformados, decepados, desossados, carcaças humanas num talho grotesco. [...] Bacon usava uma fórmula divertida: confessou-se "an optimist about nothing" [...]"
Curiosamente (ou talvez não), ontem Pedro Mexia no seu blogue escrevia : "Há pessoas que acham que ser pessimista deve ser «angustiante». Estão enganadas. Ser pessimista é sobretudo cansativo. Todos os dias o mundo confirma a ideia que temos do mundo. Imaginem: todos os dias."
Vejo o quadro acima de Francis Bacon, agora exposto no Museu de Arte Contemporânea de Elvas e sinto o desconforto da carne como matéria deliquescente, o pântano a invadir o corpo humano, o sangue fora do corpo, os humores, os líquidos humanos a espalharem-se pelo chão, a sujidade infecta a invadir os espaços.
Olhamos a pintura de Bacon e não sentimos razão para qualquer optimismo.
Os seus quadros retratam o fim da inocência, o fim da alegria, o fim da expectativa num futuro melhor: tudo parece a caminho da decomposição, de volta ao caldo bacteriano primordial.
Entre sábado, quando revi esta pintura, e hoje aconteceu a dita greve geral. Nesse dia fui trabalhar, fui almoçar ao lugar do costume (talvez dos sítios mais populosos da capital), fui e vim sem dar por qualquer alteração relativamente aos dias normais. A única diferença face a um dia sem 'greve geral' foi que, de facto, não vi autocarros, de facto passei por uma escola e via-a sem ninguém, como se fosse fim-de-semana. Por onde passei não vi nenhum vestígio de manifestação, de qualquer tipo de descontentamento: tudo estava absolutamente normal.
Quem fez greve deve ter ficado em casa. Presumo que a maioria foram funcionários públicos. Resolveram dar um dia de salário ao Estado e o Estado, na maioria dos casos, deve ter agradecido.
Além do mais, mostraram aos 'mercados' que, por esta banda, é tudo gente pacífica, que nem sai à rua, que não vai causar embaraços a ninguém. O Governo deve também ter agradecido pois, sem ter que mexer uma palha, o povo mostrou aos 'mercados' que é tudo gente mansa que vai colaborar com o que for preciso.
Eu não concordo com violências, nem com manifestações pacificistas (tudo tão incrivelmente déjà-vu, tudo tão vintage, tão retro-intelectual), nem com manifestações em geral pois parece-me gente em manada, uma cena triste.
Mas concordo com intervenção cívica, com intervenção inteligente, solidária.
No Mar Salgado vi um filme que me deixou agarrada a mim própria, o horror absoluto. Um leão salta para cima de um animal muito maior, um hipopótamo. Dá ideia que, se o animal grande desse um safanão, o leão voava. Olhamos e achamos que o animal grande devia dar luta, virar-se, reagir. Mas não. Deixa-se estar. E o leão, em cima, vai mordendo, vai arrancando bocados de carne. E o grande hipopótamo não reage e começa a perder as forças, verga, deixa-se comer, por desistência, por total falta de ânimo ou, então, 'por delicadeza' deixa-se morrer.
É outra representação dos corpos de Bacon que se desfazem enquanto vivos. Assim, quase assim, estamos nós. Mandaram-nos largar os campos, colocá-los set aside (como eu conheço bem esta expressão) e nós assim fizemos, mandaram-nos largar os barcos de pesca e nós assim fizemos, mandaram-nos desinvestir de indústrias maduras e nós assim fizemos, mandaram-nos alavancar financeiramente toda a economia e nós assim fizemos, mandaram-nos obter resultados todos os meses e nós assim fizemos, sujeitaram-nos a assessments e outras maravilhas do género e, com isso, afastámos os mais competentes (que, hélas, eram cépticos), mandaram-nos que consumissemos e nos endividássemos para podermos consumir e nós assim fizemos. E aqui chegámos.
Para obterem votos, distribuiram prebendas e reformas e nós fomos agradecendo, descansados, repimpados, regalados. E, agora que 'os mercados' se encontram maçados porque perceberam que obedientemente nos encostámos de boca aberta à espera que o pão caia do céu e não vamos conseguir pagar o dinheiro que nos andam a emprestar, ficamos assim, enfiados em casa, a ver as tardes da júlia, ou vamos ao centro comercial fazer as comprinhas de natal enquanto o carvalho da silva, o mário nogueira, o jerónimo e outros que tais cantam vitória.
Mas vitória de quem sobre quem?
Que tristeza é esta que nos anestesia assim?
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