domingo, junho 16, 2019

Uma pseudo-realizadora lê sobre escândalos e antecipa outros encantamentos aqui, in heaven





Hoje de manhã, o meu tio mal me via, estava a regar o jardim. Está mais encurvado e reparo nas rugas; mas o sorriso é sempre o mesmo. Fica contente por me ver, pousa a mangueira e vem logo ter comigo, sorridente. Sempre foi uma pessoa serena. Nunca se ouviu que levantasse a voz, nunca se soube que se tivesse zangado. Muito diferente do irmão, sempre apressado e stressado, este meu tio é a calma em pessoa. O meu pai sai à mãe que sempre conheci em estado de alerta, sempre ansiosa com alguma coisa. O irmão sai ao pai, o meu avô tranquilo. Tenho cá o cadeirão onde o meu avô se sentava a ouvir rádio ou a ouvir televisão ou a ler o jornal. E tenho o pequeno móvel onde estava o rádio que também ali tenho. A minha avó sempre com coisas, que ele não limpava bem os pés à entrada e trazia terra para dentro de casa ou que ia à pesca quando estava mau tempo ou coisas assim e ele sempre sorridente, como se nenhuma daquelas reprimendas o afectasse. Recostava-se no seu cadeirão e ela que reclamasse à vontade.


Perguntei ao meu tio pela minha tia. Esmoreceu-se-lhe o sorriso, que não está nada bem, as dores nas pernas, a pouca vontade de se levantar, parte do dia na cama. Nada lhe disse, encolhi apenas os ombros: sempre assim foi, pouco dada à acção, sempre com receio de estar doente.
Lembrando-me dela, digo muitas vezes que ter medo de estar doente é, em si, uma doença. Foi disso que, desde que me conheço, ela sempre sofreu. E sofreu mesmo, como se estivesse doente de verdade. 
A minha prima habituou-se aos sintomas de tudo que a mãe tem. Sendo médica, sabe bem o que valorizar  e aquilo de que mais vale é distrair a atenção. Perguntei por ela, pela minha prima. O meu tio sorriu de novo, diz que está para a Dinamarca, a passeio. Faz ela bem. Penso que quem me dera.


E depois penso no meu pai, cada vez mais ausente, preso à cama, tendo que ser virado de tanto em tanto tempo para não ficar com escaras, alimentado através de uma sonda, já sem conseguir falar de forma que se perceba, pouco ouvindo, nada vendo. Por isso, faz-me muita impressão ir para longe por muitos dias. E tanto que sempre gostei de passear, e tanta a falta que me faz ir por aí, à descoberta. É certo que dele, não fora o AVC, se poderia dizer que tem uma saúde de ferro. Não sei quantas pneumonias já teve, quantas bactérias hospitalares já apanhou, quantas vezes pensámos que estava por um fio e, afinal, a verdade é que continua vivo e, tirando o declínio que a falta de massa muscular acarreta, tudo o resto vai funcionando bem. Quando me lembro que, quando teve o AVC, toda a gente ficou consternada, como se fosse impossível um homem daqueles ter uma coisa destas, e, afinal, tantos desses, saudáveis na altura (ou que assim se julgava), afinal, já cá não estão. Tanto que, por exemplo, me lembro dos meus outros tios, que tanto ajudaram, tão cheios de saúde e de alegria, e que um após o outro já lá se foram. Por isso, digo para comigo que o meu pai está há tantos anos assim e sempre ultrapassando os problemas e sobrevivendo, que não tem grande lógica eu estar sempre com medo de me afastar por uns dias. Mas nestas coisas dos medos não há grande lógica, há apenas medos.


Estamos in heaven, descansadamente, sem nada que fazer. De tarde, dormi durante um bocado. Soube-me tão bem. Durante a semana o meu corpo aguarda por estes pequenos momentos de repouso.

O campo está de uma suavidade que dá gosto mas há festa na aldeia e tudo o que cantam ou anunciam ouve-se como se estivessem quase aqui à porta. Não posso dizer que não me incomoda um pouco. Não que esperasse ouvir a Callas. Isso não que o meu bebé não está de DJ à festa. Também já nem esperava genuína música portuguesa. Isso já nem se sabe bem o que seja, creio eu. Mas ouvir uma misturada de covers, barulheira pegada, anúncios de sorteios misturados com uma chinfrineira excessiva, isso é poluição sonora que fere a minha sensibilidade. De qualquer maneira, à tardinha fez-se silêncio e os pássaros saíram das árvores a cantar, esvoaçando baixo, pousando por perto.

Infelizmente, o ruído recomeçou mal anoiteceu e durou até há pouco.


Ao fim de tantos anos, estreei-me hoje num lugar bom para se estar ao fim do dia. Do lado da sala da televisão, a luz do ocaso dilui-se em ouro sobre as árvores, luminosidade que me encanta muito, e eu limitava-me a abrir as portadas de vidro para o ar e o sol entrarem pela casa ou, então, ia lá para fora, para o banco de madeira que está encostado à parede da rua, mas que não é especialmente confortável para se estar a ler. É que gosto de ler reclinada. 

Disse ao meu marido que havia era de ter uma daquelas cadeirinhas baixas, inclinadas, que se põem na areia. Ele disse que o que não faltam são cadeiras, na despensa. Lembrei-me que, de facto, ao fundo da despensa (que aqui é uma divisão razoavelmente grande, em especial comprida) há cadeiras mas não tinha nada ideia de haver muitas e, muito menos, dessas. Fui logo ver. Só duas cadeiras e um banquinho pequeno. As cadeiras são iguais, de tipo realizador. Peguei numa e pu-la junto à pedra grande.


Portanto, pude estar reclinada na cadeira de realizadora mas mais na base da pseudo: esticada, cabeça encostada atrás, pés em cima da pedra. Muito bem instalada, sob a copa de uma robinia também pseudo, pseudoacácia. Ouvindo os passarinhos, olhando a luz dourada, respirando o ar limpo e perfumado. E fotografando, fotografando tudo.


Tenho estado a ler o Escândalo do Século do Gabriel Garcia Márquez. Tenho também aqui o Wagneriano Perfeito que continuarei a ler amanhã e já antecipo a minha admiração pasmada pela inteligência e elegância da escrita. Estranhamente, quando me deixo encantar desta forma, acontece-me parecer nem prestar atenção à informação contida no texto, fico totalmente entregue à fruição da beleza que se desprende da inteligência das palavras. Gostava de um dia poder dizer que sou discípula de Shaw tal como Estela Canto mas não tenho disciplina para ser discípula de alguém. Pessoas como eu são puras diletantes, cultivadoras de indisciplinas e desconhecimentos. Além disso, não sei se seria prudente: as discípulas de Shaw produzem perigosos efeitos em quem também o admira. Ah, sim, como é poderosamente afrodisíaca a inteligência. Borges que o diga, não é...?


E, por agora, é isto.

Estou com vontade de pegar na máquina fotográfia e ir fotografar chávenas antigas ou copinhos de vidro que têm bem mais que a minha idade e que vieram de casas de quem há muito partiu. Se verá se o faço e depois se as fotografias ficam boas para vos mostrar. Conservo peças antigas que guardam memórias e que outra utilidade não têm senão essa. Felizmente aqui tenho espaço para isso mas lá chegará o dia em que alguém delas se desfará por não ter qualquer vínculo emocional que justifique o espaço que ocupam. Por isso, se puser aqui a sua imagem, talvez seja uma forma de se manterem junto à minha memória para todo o sempre. Se é que isso importa para alguma coisa.



_________________________________

E um bom dia de domingo a todos

9 comentários:

Mamã iogurte disse...

Escreves sempre tão bem, que é mesmo muito bom ler-te! Bom domingo!
beijinho

Alice Alfazema disse...

Escrevo só para lhe mandar um abraço, passo cá quase todos os dias, mas raramente comento, gosto muito de ler este blogue, especialmente sobre a Natureza das Coisas.

Também me sentava aí nessa cadeira a ler esse livro, um dos meus autores preferidos, e a aproveitar essas sombras e cheiros. Bom descanso.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Em São Martinho tem sido a Feira de Santo António, os ventos andam de feição ao som ouvir-se aqui como se fosse a 2 ou 3 km. Ontem vieram os DAMA, seguidos de um conhecido DJ nacional de Techno da pesada, o Huma-Noyd.

Hoje vou andar de barco, que é Procissão de Santo António.

Desfrute de um belo dia no seu Heaven on Earth (lembrei-me da música da Belinda Carlisle).

AV disse...

A saúde e os destinos muitas vezes não têm lógica.
Que bonitas as luzes e as cores de Junho ‘in heaven’. Lindos oleandros.
Um bom Domingo.

Um Jeito Manso disse...

Olá Mamã Iogurte,

Palavrinhas simpáticas, boas de ler. Thanks a lot.

Kissy.

Um dia feliz, M. Yo.

Um Jeito Manso disse...

Olá Alice perfumada de Alfazema,

Muito obrigada. Por vezes, tal como hoje, penso que não tenho nada de mais para escrever, só me ocorrem banalidades, coisas que não têm a ver com nada, que não devem interessar a ninguém.

Por isso, fico contente por saber que a minha tagarelice pode ser bem aceite.

Acompanho-a sempre no seu blog, gosto de estar por lá. É um lugar bom, a Alice é boa gente, boa onda.

Um abraço também para si. E dias felizes, Alice rodeada de Alfazema!

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Vi na televisão que na Nazaré sorteiam entre os pescadores quem leva os santos nos barcos. Depois vão em procissão no mar e as pessoas acompanham em terra. Desconhecia. E afinal também aí há procissão no mar. Temos tradições muito bonitas. Espero que tenha sido um dia muito bom.

O meu domingo foi passado com os pés em terra mas muito bom também.

Abraço, Francisco, e uma segunda-feira em grande!

Um Jeito Manso disse...

Olá AV,

Gostei de ler o que escreveu. É isso mesmo.

E sabe que fui confirmar se oleandro existia ou se tinha sido troca de mãos? Conhecia aloendro ou loendro. Oleandro nunca tinha ouvido. Afinal existe e já aprendi uma palavra, Por isso, fico-lhe duplamente agradecida.

Uma feliz segunda-feira, AV!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Foi uma maravilha! Em SMP também é assim.

Ainda bem que passou também um rico domingo.

Um bela semana.