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domingo, agosto 20, 2023

A beleza do impermanente, do imperfeito, do rústico, do melancólico

 

Às vezes penso que, se um dia destes der de caras com um daqueles meus antigos colegas de trabalho que eram cheios de prosa, todos certezas e teorias, cheios de objectivos e medidas para aferir a sua prossecução, não sei se vou conseguir manter um daqueles diálogos que antes conseguia (embora com um certo esforço) sustentar.

Não é que eu, nessa altura, não incentivasse a ambição, o foco, a assertividade, o ímpeto em conseguir chegar à frente antes dos outros. Incentivava. O mundo das empresas em contexto de concorrência feroz assim o exige. Sobrevivem as empresas que se aguentam na luta da selva, feita para a sobrevivência dos mais ágeis, dos mais fortes, dos mais hábeis.

Mas nunca fui de colocar isso acima de tudo e, muito menos, de ter uma conversa quase exclusivamente moldada por isso. Pelo contrário, sempre tentei deixar espaço à alegria, ao improviso, ao diferente, ao erro e ao desafio.

Mas agora que estou fora desse mundo, estou em pleno processo de descompressão. Sempre me senti muito próxima da simplicidade, da natureza, sempre estive muito consciente da minha efemeridade, sempre me senti agradecida. Mas agora isso acentua-se de dia para dia. E toda eu me inclino para a aceitação da diferença, da beleza espontânea -- mesmo que pouco convencional --, da generosidade dos gestos de compreensão.

O algoritmo do Youtube, fino que nem um alho, esperto que só ele, adivinha-me o estado de espírito e alimenta-me as entranhas espirituais com vídeos que me agradam, inspiram, ensinam.

O meu dia foi um dia feliz, tal como o de ontem. Ter a casa cheia de risos, cantares, alegrias, poder estar na conversa com aqueles de que gosto, tudo isso me enche de felicidade.

No outro dia, alguém escreveu aqui um comentário (que não publiquei pois quem o escreveu esticou-se para além do razoável) em que, entre outras coisas, me criticava por eu ser como sou. Dizia que eu cultivo este estado de espírito 'feliz' e ignoro o que é mau e desagradável. Não é verdade pois frequentemente aqui falo do que me desagrada. Mas é verdade que a minha natureza é esta: valorizo as coisas boas, agradeço-as, cultivo-as com carinho. E tento não me deixar afogar na depressão das más notícias e das desgraças. Quem quiser viver delas, cultivá-las à exaustão, deve procurar o Correio da Manhã e não o Um Jeito Manso

Ao contrário das pessoas que passam a vida a dizer mal de colegas, chefes, vizinhos, familiares, etc, eu não tenho paciência para isso. E nem é uma questão de paciência, é mesmo que as ignoro. E ignoro-as até involuntariamente. Não quer dizer que seja completamente insensível à maldade. Não sou. Se alguém me faz alguma que é mesmo má, deliberadamente má, repetidamente má, aí eu afasto-me, viro costas, apago da minha existência. Não quer dizer que o assunto fique completamente morto e enterrado pois, se me fizerem reviver o assunto, lembrá-lo-ei com a mesma agastura e a mesma certeza de que não tem volta. Mas, mal a conversa acabe, ponho nova pedra sobre o assunto. E bola para a frente.

Quero é ter espaço na minha mente e na minha vida para descobrir coisas e pessoas boas, inesperadas, pacíficas, felizes.

Hoje apareceu-me isto. 

What is Wabi Sabi?

Gosto disto

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Desejo-vos um bom dia de domingo

Saúde. Bom coração. Simplicidade. Paz.

domingo, março 19, 2023

Mila era para ser filósofa mas preferiu ser pedreira

 

E eis que às cerca de duas semanas minhas de covid, retomámos a vida social, pelo menos a nível familiar. 

Depois do electricista na parte da manhã (que apareceu com duas horas de atraso quase fazendo perigar parte do programa de festas), visitas à família na parte da tarde e, a seguir, pimentinhas cá em casa a jantar e a dormir. 

Muito bom. Muito queridos. Muita brincadeira. 

Depois de jantar, estando todos na sala da televisão, diz um deles: 'O que eu gosto disto, aqui todos juntos...'. Mais fofo.

E houve mimo e penteados e todos a ver Task Master durante um bocado e todos a rirmos. Depois, na hora da deita, teve que ser a história da Princesa Margaret e do seu cão atrevido, história que já deve ir no milésimo capítulo.

Ainda tivemos uma pequena peripécia com o mais pequeno a querer dormir, primeiro, na que costuma ser a cama do irmão e, depois, na cama onde estava a irmã-- com os mais velhos a protestarem, claro. Mas lá se conseguiu convencer a deixar de inventar pretextos para atrasar o sono e passado pouco tempo já dormiam todos a sono solto.

E eu estou aqui a cair para o lado, cheia de sono. Além disso, já se sabe que com esta malta miúda o despertar é com as galinhas. Por isso, o melhor que tenho a fazer é ir dormir senão no domingo vou estar de gatas. E não posso porque o programa também promete.

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Contudo, tenho aqui um vídeo giríssimo para partilhar convosco. Mila era estudante de filosofia mas não conseguia encontrar o sentido da vida. Até que um dia construiu um muro e descobriu aquilo de que andava à procura. Largou a filosofia e dedicou-se a ser pedreira. Há histórias que parecem ficção. Aliás, que superam a ficção.


Desejo-vos um bom dia de domingo
Saúde. Alegria. Paz.

quarta-feira, maio 04, 2022

Porque é que o comunismo falhou e mensagem para o futuro -- a palavra a Bertrand Russell

 

Não sei se deveria dizer comunismo se marxismo. Sei que há comunismo que não é marxista -- maoista ou trotskista, por exemplo --, mas como, na verdade, acho que o comunismo já não é nada pois de sonho virou ilusão e, de ilusão virou desilusão, adiante. Todos os regimes que poderiam servir de modelo viraram desapareceram. Ou viraram capitalismo selvagem, covil de gente doida ou ditadura pura e dura. 

Mesmo a cena da ditadura do proletariado que ainda é bandeira do nosso PCP virou coisa duplamente sem sentido, primeiro porque ditadura é coisa que não está nem nunca esteve com nada e, segundo, o proletariado de que os comunistas ainda falam é uma mescla de tantas situações que já nada tem a ver com o que ainda têm na cabeça e nos slogans deles. Os problemas e as aspirações dos mais desfavorecidos de hoje não têm muito a ver com o que os comunistas defendem.

As pessoas, em geral, para além das boas condições de vida, querem tolerância, justiça, compreensão, felicidade, um planeta para as próximas gerações. Não querem a conversa de luta na rua nem o tom agressivo que usam os comunistas, não se revêem em nada do que eles falam, nem na forma como falam. 

Há trincheiras no discurso e nas mentalidades dos comunistas e há rancor nos argumentos que usam contra quem está do outro lado. É gente que, de forma geral, quando contrariada, vira má onda. Penso que só devem estar bem quando estão com os seus, urdindo as suas conspirações, alinhando argumentos contra 'inimigos'. Não é gente inclusiva, compreensiva, generosa.

As observações que ouço a Bertrand Russell batem muito certo com o que penso.

E os seus conselhos às gerações futuras também.

[É curioso como o algoritmo do YouTube, de entre os milhões de vídeos que tem em arquivo, detecta aquilo que me agradará. Fico sempre surpreendida. Os vídeos que diariamente tem para me sugerir revelam bem a inteligência dos programadores que o desenvolvem. 

Por exemplo, hoje estava numa de reflectir um bocado sobre isto tudo, no que tudo isto é, no perigo que corremos sem nos darmos conta, no potencial de perigo que há dentro de pessoas que julgávamos parecidas connosco. Coisas assim. Isto da Ucrânia e isto da Rússia veio desenhar um outro mundo. Várias linhas vermelhas foram postas a descoberto e o mundo, de certa forma, tornou-se diferente. O amor à liberdade, o respeito pela liberdade de opinião dos outros, o respeito pelo direito à autodeterminação dos povos e, sobretudo, o amor e o respeito pela vida humana em toda a sua integridade vieram desenhar uma nova geografia. Putin não percebe nada disso e os que, dizendo que não, na prática o defendem também não. Putin vai cair e os putinistas e os comunistas ficarão sem chão. Se souberem deixar as suas ortodoxias, talvez tenham o bom senso de perceber que o melhor é reconverterem-se e integrarem-se no mundo real. 

E então, estava eu neste comprimento de onda, aparecem-me estes vídeos com as palavras de Bertrand Russell. E é isto mesmo.

Bertrand Russell - Mensagem para o futuro

Bertand Russel dá dois conselhos para as gerações futuras baseado no que aprendeu. O primeiro conselho é sobre aceitar o que os factos mostram. O segundo conselho é sobre a importância do amor acima do ódio.
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Bertrand Russell - Porque falhou o comunismo

Russell on Marx and his great failure

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NB: Recomendo também a leitura de Mentes enlouquecidas.

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As fotografias têm a ver com o ITS - International Talents Support

E a quem esteja mais afim de cenas algo extravagantes e queira saber o que é que liga a Kim Kardashian a Marilyn Monroe só posso sugerir que desça até ao post seguinte
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Desejo-vos um dia bom
Boa sorte. Boa onda. Esperança. Paz.

domingo, março 21, 2021

O nosso maior desafio? Falta de imaginação.

 


Não sou dada a filosofar. Falta-me vagar e motivação para ser ponderada e pra me deixar estar a pensar nos diversos ângulos das questões, sopesando-os e pondo-os em perspectiva. Por isso, não sou capaz de dissertar sobre o propósito da nossa existência ou, sequer, sobre se há propósito ou, ainda menos, sobre os limites da nossa existência.

Sei que está aqui uma pessoa a escrever e que essa pessoa sou eu. Mas não sei se há átomos dentro de mim que tenham vindo de outros seres ou se há átomos que tenham saído de dentro de mim e que agora habitam outros corpos. Aliás, digo que não sei porque, não sendo estudiosa da matéria, não tenho como sustentá-lo mas acredito que há. Só não sei que mais se pode concluir a partir daí. Também não sei o que é a alma ou a personalidade de uma pessoa nem sei se parte disso vai nos átomos que circulam por aí. De um bocado de pele se faz uma pessoa que, se calhar, vai ser uma cópia da dona da pele original. Por outro lado, põe-se o coração de uma pessoa em vez do coração de uma outra e quem o recebe continua a amar a mesma pessoa que amava antes. Claro que o coração é um aparelho de bombagem e não um produtor de sentimentos. E claro que tudo isto é complexo demais para ser explicado numa página de um blog onde tanto se fala de flores como de violência doméstica ou de receitas de sopa de bacalhau.

O que posso dizer é que, supondo saber que esta que vos escreve sou eu, pouco mais posso dizer do que isso. Não sei se apenas existo desde que as células primordiais começaram a dividir-se no ventre da minha mãe, ou se o marco é o momento em que saí do seu corpo; nem sei se, com todas as células que nasceram em mim desde que nasci, continuo a ser a mesma. Mas creio que, mesmo que o soubesse, de pouco isso me serviria.

Haverá, por aí, muita gente que saiba explicar os milagres ou os acasos da existência. Eu não. Como disse, não sou dada a filosofar nem sei dos gregos as lições que a sua literatura e a sua história têm para nos ensinar. Nem li a Bíblia -- apenas, de vez em quando, a abro ao acaso e leio o que lá se mostra. Mas o que li felizmente não me retirou a capacidade de me espantar com tudo o que nasce e renasce, como se acontecesse pela primeira vez, magia em estado virginal. Aceito e de bom grado cultivo a minha ignorância. Estou muito ciente da infinitude do conhecimento (do conhecimento existente e do que está por descobrir) e, humildemente, aceito que jamais poderia abarcar uma sua infinitésima parte pelo que prefiro reconhecer que não passo de minúscula partícula que está de passagem. E, assim sendo, limito-me a espantar-me com a maravilhosa coreografia que parece unir as infinitas pontas soltas que vogam pelo universo.

Isto dito não significa que não tente, na insignificante medida das minhas limitações, deixar algumas marcas da minha passagem ou que não deseje deixar os lugares por onde passo melhores do que os recebi. Por vezes, quando fazia os tapetes de arraiolos, pensava: vão sobreviver-me; são fruto do meu trabalho e existirão muito para além da minha vida. E, ao pensar isso, ficava contente. Penso também no que aqui escrevo. Se a internet continuar a existir, as minhas inúteis palavras poderão continuar a ser lidas muito para além da minha existência. Talvez, nessa altura, algumas pessoas pensem que, através das minhas palavras, serei eu ainda a existir. E isso, para mim, é um mistério tão insondável e irrelevante que claro que me intriga e agrada.

Entretanto, recebi há poucas horas um mail que me deixou dividida. Uma pessoa, um jovem que eu acho muito válido e promissor e do qual lamento a relativamente baixa escolaridade, diz, no mail, no meio de muitas outras observações, que tenciona investir na sua formação. Fiquei contente com isso. Tudo farei para o apoiar. Disse-lhe isso. Mas, pelo que ele escreveu, acho que tenho a aprender com ele. Disse-lhe também isso. Admito que fique surpreendido por eu dizer que acho que tenho a aprender com ele. Mas tenho. E se eu conseguir que mais pessoas acreditem em si próprias e trabalhem para se valorizar mais contente fico. E se eu vier a saber que progrediram e que, daqui por algum tempo, estão onde eu hoje estou, melhor ainda. Contudo, ao escrever isto, penso: porque é que é importante que alguém chegue onde hoje estou? É dúbio que seja importante, até para mimMas acho que sei porquê: porque posso ajudar algumas pessoas. E é bom ajudar. 

Hoje também plantei duas flores. Espero que vinguem. Gosto de flores. São uma desinteressada manifestação de perfeição.

A Primavera já se faz sentir por todo o lado. Descobri hoje cachos de glicínias. Ainda não os tinha visto. Reparei também que a magnólia está a cobrir-se de folhinhas verdes, as belas flores começando a definhar, a terra coberta das suas já murchas pétalas cor de rosa. Entretanto, as hastes do chorão estão a cobrir-se de folhinhas, lindas, etéreas, formando uma cortina vaporosa que esvoaça à mínima aragem. A amendoeira está verde, orgulhosa. Tudo está a renascer. Tenho vontade de ter tempo para ter uma horta bem tratada. Tenho vontade de plantar mais umas árvores (eu sei, eu sei: em Outubro ou Novembro), tenho vontade de sentir que o bocadinho de terra onde me foi dado o privilégio de existir ficará mais verde, mais saudável e mais belo do que estava antes de eu por cá passar.

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Li que algures na China, uma área desertificada, toda pó e nada, se transformou num imenso espaço verdejante e fértil [‘Our biggest challenge? Lack of imagination’: the scientists turning the desert green]. Li e quero acreditar que é possível ter esperança em que poderemos tornar a trazer a vida aos cemitérios de terra seca e ausência de memórias. Li que uma mulher plantou 200.000 árvores. São notícias destas, mesmo que se refiram a acontecimentos com anos ou que ocorreram a milhares de quilómetros, que me interessam. Permitam que os partilhe convosco.

Greening China's Loess Plateau -- by John D Liu

This short take is extracted from "Hope in a Changing Climate", John D. Liu's wonderful documentary. It shows a breathtaking "before and after" camera sweep of a Chinese landscape transformed from barren desert to lush farmland by the use of agroecology and agroforestry. My eyes get tearful whenever I see this.

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As fotografias provêm do Guardian: Week in wildlife – in pictures e vêm ao som de Sunrise Through The Dusty Nebula por Hannah Peel

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Desejo-vos um belo e primaveril dia de domingo

segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Gotas de silêncio através do silêncio

 

A partir do momento em que uma mulher se dedica à filosofia se torna pretensiosa e agressiva, agindo como um novo-rico. Arrogante e no entanto insegura, visivelmente espantada, certamente não se acha no seu elemento. Porque, na presença de Maria Zambrano, nunca sentimos o mal-estar dessa situação? Eu me fiz muitas vezes a pergunta e acho que posso respondê-la: Maria Zambrano não vendeu sua alma à Ideia, salvaguardou sua essência única, colocando a experiência do Insolúvel acima da reflexão sobre ele, ultrapassou, em suma, a filosofia... Só é verdadeiro, para ela, o que precede o formulado ou lhe sucede, o verbo que se arranca dos entraves da expressão ou, como diz magnificamente, la palabra liberada del lenguaje.

Ela faz pate dessas pessoas que lamentamos só encontrar muito raramente, mas nas quais não paramos de pensar e que gostaríamos de compreender ou pelo menos adivinhar, um fogo interior que se oculta, um ardor que se dissimula sob uma resignação irónica: tudo em Maria Zambrano conduz para outra coisa, tudo comporta um alhures, tudo. Se podemos conversar com ela sobre qualquer coisa, estamos certos, porém, de cedo ou tarde deslizarmos para interrogações capitais sem necessariamente seguir os meandros do raciocínio. 

Daí decorre um estilo de conversação sem nenhum sinal de tara de objectividade, graças ao qual ela orienta você para você mesmo, para suas buscas mal definidas, para suas perplexidades virtuais. (...)

Quem tem, como ela, o dom de, indo ao encontro de sua inquietude, de sua busca, deixar escapar o vocábulo imprevisível e decisivo, a resposta às suas sequências sutis? E é por isso que gostaríamos de consultá-la na encruzilhada de uma vida, no limiar de uma conversão, de um rompimento, de uma traição, na hora das confidências últimas, graves e comprometedoras, para que nos revelasse e nos esclarecesse a nós mesmos, para que de algum modo nos concedesse uma absolvição especulativa e nos reconciliasse tanto com nossas impurezas como com nossos impasses e estupores.


[Excerto de 'Maria Zambrano, um presença decisiva' in 'Exercícios de Admiração' de Cioran, edição brasileira]

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O título deste post foi retirado do texto sobre Beckett do esmo livro. 

quinta-feira, dezembro 10, 2020

Do what you love

 


Sobre o que é mesmo relevante mais vale a gente nem fazer perguntas. Questões deveras relevantes são, por natureza, irresolúveis. Tudo o que é de dimensão terrestre, humana ou comezinha é modelizável, equacionável, de resposta ao alcance da mão. Pode a resposta até ser 'indeterminada' ou 'impossível' mas isso, em si, é uma resposta. Agora o que é intemporal, intangível e que contém a semente da eternidade (o que não é a mesma coisa que ser intemporal) está, por definição, longe do toque humano. Como aqueles espaços abertos a que dificilmente conseguimos atribuir contornos ou estabelecer definições ou funções, assim as grandes questões.

De onde viemos, para onde vamos, o que andamos aqui a fazer -- são questões dessas. Não interessam. Jamais haverá resposta para elas. Podem alguns, por vezes, achar-se ungidos por uma mão divina que lhes permite aventar hipóteses que isso não será senão um consolo, um fraco consolo como diria o senhor consultor presidencial. A própria existência é um acidente, um acaso que vingou mas que, como todos os acasos, tem um prazo de validade. Atingi-lo ou não será também fruto de infinitas e improváveis combinações de acasos. E mais do que isso pouco mais se poderá dizer.

Claro que a natureza apura a inteligência das espécies e, portanto, raciocinando em cima da milionésima derivada da coisa, talvez se possa dizer que viemos para propagar a espécie e ajudar a manter a memória -- e que cá andaremos até que o propósito esteja atingido. Mas isso será já uma inocente e vã tentativa de construção ideológica tão falível quanto inútil.

Haverá quem construa cátedras em volta de bem elaborados enunciados sobre estas questões. São questões intelectualmente estimulantes. Mas inúteis. Tão inútil quanto passar uma vida a ensinar a esquartejar textos para os esventrar do seu sentido, descarnando-as até ficarem no osso da mais pura gramática. E quem diz isso, diz a fazer desenhos artísticos em unhas. Ou a fazer construções na areia à beira de água. Tudo meritório, tudo inútil.

Ora bem, perante a arrasadora evidência que aniquila qualquer amostra de racionalidade que dê forma à nossa existência, o melhor a fazer é o mesmo que fazem todos os outros animais: sobreviver e, nos intervalos, curtir -- ou curtir e, sempre que necessário, sobreviver. Pode parecer a mesma coisa mas, uma vez mais, não é. São, aliás, duas atitudes opostas. E é nas gradações entre estes dois extremos que se encontram as diferentes atitudes perante o tremendo desafio que é a vida.

Seria pois natural que os seres humanos não fossem menos inteligentes que os seres não humanos: ou seja, que ocupassem o tempo enquanto dura a sua precária existência na curtição e, nos intervalos, a cuidarem de se manter vivos, da forma menos gravosa possível.

Claro que toda esta minha conversa revela uma de duas coisas: ou estou fora da realidade e desconheço o mundo cão em que grande parte da população sobrevive ou sou doida e julgo a humanidade à luz dos privilégios de quem disponibilidade para estar para aqui com conversas da treta. Ou talvez sejam as duas ao mesmo tempo. Mas também não vou para aqui pôr-me a questionar ou a rebater isso. Seria igualmente inútil.

Digo apenas a única coisa que tenho para mim como muito verdadeira: há uma mistura ideal, quase perfeita, entre fazer aquilo de que se gosta e sobreviver de uma maneira tão prazerosa que nos permita potenciar o tempo e a qualidade para aquilo de que verdadeiramente gostamos. 

Quero eu dizer na minha que se, por exemplo, aquilo de que gostamos mesmo é de andar a fazer montinhos de pedras à beira do rio mas se, para sobrevivermos, tivermos que andar a limpar esgotos em condutas subterrâneas durante todo o dia não sobrando tempo para ir para a beira do rio fazer montinhos, então mais vale ajustar alguma coisa para que a vida não seja uma monótona e persistente frustração. Pode, por exemplo, arranjar-se uma forma de sobreviver que permita deixar tempo para ir para a beira do rio fazer os ditos montinhos ou, em vez de tudo isso, arranjar uma forma inteligente de conjugar o gosto com a forma de sobrevivência como, por exemplo, ser pastor, ocupando o tempo livre a fazer montinhos de pedra ali mesmo, na montanha.

E tudo isto, não tenho dúvidas, é conversa jogada fora. Mas fazer o quê a esta hora? É a minha forma de existir, estando na boa: escrevendo, ouvindo música, colocando aqui fotografias que fiz durante o dia colocando-me debaixo das árvores -- dois outros prazeres: fotografar e estar perto de árvores --, vendo vídeos macios e que vêm em paz. Antes, no início da noite, falei com a minha mãe, com os meus filhos, soube que os meninos estão bem. E já li. E, entretanto, trabalhei fazendo aquilo que gosto de fazer: mudar, organizar, motivar, inspirar, puxar, construir.

Um dos vídeos que hoje o YouTube tinha para me mostrar, vá lá eu saber porquê, é justamente este: Faz aquilo de que gostas e eu, com vossa licença, vou partilhá-lo convosco.

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Hoje os meus dedos não correram na direcção dos contos de natal. Como dizia ontem a outra, a mais bela: não se escolhe. Os dedos aventuraram-se por onde querem e eu limito-me a observar.

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Desejo-vos uma boa quinta-feira.
Be happy.

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Labirintos





Isto de estar nas lojas o mínimo de tempo possível e de não provar nada, dá nisto. No outro dia, foi já em casa que provei uma coisa que era para oferecer e outra para mim. A minha estava justa demais e a outra notoriamente não entraria já que é um modelo destituído de elasticidade. Por isso, hoje tivemos que lá voltar. E como havia outros presentes para comprar, tratava-se de tudo ao mesmo tempo. 

Enquanto lá andávamos, sentia o telemóvel a estremecer e a piar-me no bolso. Quando consegui, espreitei: eram os membros do grupo da família e mandarem mensagens uns aos outros, dum lado uns faziam caminhadas no bosque, do outro os meninos trepavam às árvores. Numa das últimas, o mais velho estava bem lá para cima numa árvore gigante. Na outra, havia um mapa com a localização de por onde andavam. Passado um bocado, voltei a espreitar. A minha filha dizia 'Va la que nao revelaram os presentes de natal ehehe'. Não percebi, voltei a guardar o telemóvel no bolso, pensei que era coisa lá deles. Mas, quando estava na fila para pagar, pensei: 'espera lá, mas se eles andam a passear e nós é que andamos às compras, querem lá ver que aquilo é mesmo para nós?'. Voltei a ver. Aquilo era ela a comentar qualquer coisa. Ocupada, farta de andar naquilo e, sobretudo, a morrer de calor (é só a mim que a máscara faz subir a temperatura do corpo todo?), não percebi o que era. Até que reparei que, mais acima, estava uma gravação. Ouvi e ia-me caindo tudo. Era eu e o meu marido a conversarmos: ele a perguntar se íamos primeiro fazer as trocas, eu a dizer que não, que era tudo no mesmo sítio, eu a perguntar onde é que se levantava o que tínhamos que levantar. Desliguei, estarrecida. Como é que aquilo tinha acontecido? Caraças. Sem querer carreguei no microfone. Felizmente, não desvendei nenhum segredo nem pronunciei nenhuma palavra imprópria para consumo. Fiquei a pensar se uma coisa destas ou parecida não terá acontecido alguma vez antes com outras pessoas que, por pudor, não me disseram nada.

Aliás, agora que falo nisto, lembrei-me de uma que aconteceu faz anos. Tinha acabado de ser apresentada a um tal cheio de nove horas, cheio de de cerimónias, pessoa, ainda por cima, com uma maneira de ser distante, talvez, até, um pouco acanhada. Durante a reunião, ficámos de obter uma informação e de nos telefonarmos. De tarde, tendo eu conseguido saber o que era pretendido, liguei-lhe. Atendeu, eu disse olá e, acto contínuo, ouvi um sonoro 'F...-se!' e a chamada acabou ali. Fiquei perplexa, em suspenso, o telemóvel na mão. Era então assim que o senhor doutor, pessoa tão importante, atendia as chamadas? Ou, melhor, despachava as pessoas?

Ainda mal refeita, toca o telemóvel. Era ele. Pensei: e agora? Digo alguma coisa? Ou ele vai dizer alguma coisa? Mas não, simpatiquíssimo: 'Peço desculpa, estava a sair do carro, quando ia atender deixei cair o telemóvel.'. E eu, sonsa: 'Ah, não tem problema'. E a conversa prosseguiu. Até hoje nunca lhe falei nisto. Para quê? Só se fosse para nos rirmos os dois. Mas sei que, lá no fundo, haveria de ficar um pouco agastado. Nem tanto pelo que aconteceu pois já me conhece bem, sabe que não estou nem aí para deslizes mas pela mesma razão que eu: e se isto já aconteceu alguma vez e se alguém ouviu o que não devia ouvir?

Mas, enfim, nada de mais. O que foi de mais foi outra coisa. Nestas coisas ando sempre à rédea curta. Cronometrando-me os movimentos, o meu marido decidiu que já não dava tempo de ir a outro sítio senão não conseguiríamos estar em casa à uma. Mas eu, que ando há uns dias a querer arranjar um vaso alto e uma planta que cresça em altura para colocar perto do portão para encobrir os contentores do lixo e dos recicláveis, insisti, insisti, insisti. Que já não dava, que não valia a pena, que viéssemos para casa. Mas não sou de me render tão facilmente. Lá fomos. Mas já não deixaram entrar. Fiquei furiosa e ele vitorioso. Portanto, regressámos sem o vaso e sem a planta. E isso contristou-me. Já me estava a imaginar a tratar do transplante e a estava a imaginar o efeito. 

De tarde, consegui estar um pouco ao sol. Levei a espreguiçadeira para o bocado de relva ao sol, estive a ler. Tirei a blusa, fiquei apenas com o top de alcinhas, o sol suave a deslizar na minha pele, os passarinhos a cantarem e a brincarem por entre a folhagem, e o livro bom. Não é só o saber bem, é também o ser saudável. Depois andei por ali, a cirandar, a fotografar, a sentir a felicidade de ver as árvores e as flores e a, mais simples de todas, a felicidade de de existir.

Fui até à horta. Não sei o que há ali. Parece que há um qualquer microclima: talvez mais morno, mais húmido. Pelo menos é o que se sente. Isso e os cheiros, bons. Ao canto de um canteiro, descobri um jarro. Agora fui ver se o nome é mesmo jarro e descobri que pode ser mas que o nome botanicamente falando, isto é em esperanto botânico, é Zantedeschia aethiopica. Quando o vi, hesitei. Tive vontade de apanhá-lo para o pôr numa jarra a fotografá-lo. Mas, no último momento, tive pena. Uma flor pode ser sacrificada just for the fun of it? Tive dúvidas.

Ao passar pela estufa, senti pena de ainda não lhe ter prestado atenção. É rudimentar, precisa de ser arranjada. Está abandonada e as coisas, tal como a natureza, sentem o abandono. As pessoas também. Tenho que cuidar daquilo que amo, não posso deixar que se sintam abandonados. A ver se amanhã tenho disponibilidade para lá ir, para entrar, para começar a limpar. Mas receio. Sei que se for é para me entregar, para não abandonar mais. E não creio que esteja chegada a hora para isso. 

Também tenho saudades do meu heaven. Estas restrições à movimentação condicionam-nos. Deve estar tudo tão verdinho, o musgo tão fofo e macio. Transformei em bosque um bocado de terra pedregosa e inóspita. Quando toda a gente achava insano aquele meu sonho, eu dizia que haveria de por lá passear à sombra das árvores que estava a plantar. E isso aconteceu. E essa é outra grande felicidade. Se quero sentir felicidade, construo-a. Flor a flor, árvore a árvore, sorriso a sorriso, palavra a palavra.

Gosto de ler sobre jardins. E gosto de ver vídeos sobre pessoas que transforam terra árida em florestas verdejantes que multiplicam a flora e atraem a fauna. Parece-me um milagre e gosto de testemunhar a existência de milagres assim.

E fui ainda ver os livros de Eduardo Lourenço. Aquela estante é daquelas que tem livros que não sei bem como arrumar. Estão ali para uma segunda reflexão. Gostei de relembrar os livros de uma pessoa que sempre admirei. Creio que haverá por cá mais um ou dois livros mas não sei se estarão noutras estantes. Agora estou a ouvir uma entrevista com ele. Fala do que o faz feliz, explica que a felicidade está nas pequenas coisas que estão ao alcance de todos.

É daquelas pessoas que pensa com as mãos na terra e com o olhar acima da multidão -- e com o coração no meio dos homens.  Penso naquela vez, não há muito, em que o vi a atravessar a rua ali mais ou menos em frente à Biblioteca Nacional. Não sei precisar, talvez uns três anos. Ou seriam quatro? Não sei. Parece que esta vida em resguardo me está a esbater as coordenadas temporais. Sei que o vi já frágil. Pensei que, com a idade que tinha, era um aventureiro e um corajoso em andar ali, sozinho, sem apoio, quase parecendo um passarinho hesitante, em dificuldade. Tive vontade de lhe ir dar o braço. Mas não o fiz, claro. As pessoas têm o seu orgulho e há que saber respeitá-lo.

Quando parte uma pessoa boa e inteligente fico a pensar que talvez venha o dia em que quase não subsistam portugueses de lei. Como será, então? Quem nos ajudará com as palavras? Não correremos o risco de ficar encurralados em tristes labirintos?

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Mas, enfim, voltando a florestas, ao milagre da natureza que podemos fazer acontecer 


E um dia feliz!

domingo, julho 26, 2020

Em dia de grandes arrumações, eis que aparecem mulheres sem cabeça, peças que, com o tempo, se desintegraram, fotos que mostram gente que já não existe, moedas, pilhas e canetas tresmalhadas como se não houvesse amanhã, testes de orientação vocacional e sei lá que mais







Dia de arrumações, de limpezas. Desde manhã até ao fim do dia. Estou, naturalmente, cansada. E ainda a procissão vai no adro. Aqui há algum tempo, uma arrumação destas aconteceu com os roupeiros. Sobre as sacadas de roupa que dei, tenho ideia de que aqui deixei registo. E agora ainda hei-de lá voltar de novo. Mas, por enquanto, tenho estado com gavetas com papelada, prateleiras de estantes fechadas onde reside muito bibelot, caixas e caixinhas, algumas das quais com coisas insólitas lá guardadas. Moedas soltas aparecem no fundo das gavetas, dentro de caixas e tacinhas, por todo o lado. Pilhas não têm conta. Não percebo. Presumo que sejam como os coelhos, que se multipliquem desenfreadamente. Canetas que já não escrevem são mais do que as mães. E, no meio disto, algumas descobertas surpreendentes.

Muito papel foi jogado fora, facturas, receitas, coisas assim. Flores secas também, pot-pourries, espigas cor de laranja, coisas de que vou gostanto e mantendo. Mas estou numa de me desfazer de tudo o que não me cause dor e, portanto, os sacos foram-se enchendo. Objectos não identificados ficaram expostos na sua estranheza indo alguns também porta fora. Aparecem peças que não sei a que pertencem ou se existem por si, assim. E um diploma em meu nome como sendo a mulher que melhor se veste na empresa. Foi numa festa de natal. Houve votação para várias categorias, todas assim nesta base. Já não me lembrava de tal e, muito menos, que aquilo tinha dado direito a um diploma.

Descobri também uma peça de louça que parecia inteira e que, afinal, tinha duas partes cuidadosamente encostadas, parecendo que estava inteira. Pergunto-me quem terá feito tal estrago e, pela calada, fez de conta que nada tinha acontecido? O meu marido desvaloriza, disse qualquer coisa tão bizarra que nem sei transcrever, qualquer coisa como ser natural dado ser peça antiga, como se as peças de cerâmica se desintegrassem ao fim de alguns anos. Claro que desconfiei logo que tivesse sido ele. Achou que eu não estava boa da cabeça, a que propósito iria ele mexer naquelas mariquices? Não deve ter dito mariquices, costuma usar um sinónimo menos meigo. Mas não me lembro exactamente do que mais disse pois, vendo que dali não levava nada, desliguei, tanto que fazer que não vale a pena perder tempo com coisa assim. Mas não foi a única coisa partida. Numa outra estante, tenho duas peças de cerâmica, duas bonecas artesanais muito bonitas. Eu, pelo menos, acho-as muito bonitas. Uma delas estava sem cabeça. Fico perplexa com isto. Penso que pode ter sido outra pessoa. O meu marido zanga-se com a minha desconfiança, que obviamente não, se tivesse sido, ela teria informado, e insiste que as coisas se partem sem intervenção humana. Também admito que não deve ter sido essa pessoa: uma vez que houve um acidente assim, ligou-me, em lágrimas, até me assustei, pensei que tinha acontecido alguma desgraça. Mas, com isto, estava ainda mais intrigada pois não descobria a cabeça. Afinal, lá estava, atrás da outra mulher. Mistérios.


Às tantas, o meu marido chamou-me: tinha descoberto umas fotografias que, de ponta a ponta, eram surpreendentes. Para começar, eu era outra. Tinha havido uma festa grande cá em casa, a casa estava cheia. Havia gente por todo o lado. Eu estava com um vestido de noite, justo, de alças fininhas. O meu marido, vendo-me nas fotografias, estava espantado, diz que não se lembrava de eu ter sido tão magra. Não estava magra, estava, simplesmente, como fui até a menopausa me ter deixado mais a gosto de Rubens. Quem estava assim, nessa altura, era a minha mãe. Hoje, ao telefone, falei-lhe nisso. Disse ela, podes crer, a seguir à menopausa, alarguei de costas, aumentei de peito, acabei por dar os blasers todos, nenhum me servia, nada abotoava no peito. Agora não, agora voltou ao que era antes, esguia, elegante. Tenho esperança de, daqui por uns anos, também eu volte a adelgaçar. Numa outra festa, creio que seria uma festa de anos, a casa também cheia, eu estava de calças brancas e tshirt justinha, e o meu corpo estava metade do que hoje parece. O meu marido pergunta: estarias doente? não tenho ideia nenhuma de seres tão magra. Volto a dizer-lhe que não estava nada magra, nunca fui magra, nem doente, qual doente, simplesmente mantinha um corpo de adolescente. Ele olhava espantado, não reparando que, com ele, foi o contrário: hoje está metade do que era naquela altura. Mas o principal ponto de interesse daquelas fotografias está longe de ser a outra que era eu. Éramos todos outros. Os meus filhos eram adolescentes, em início de adolescência. Tão bonitos, tão queridos, ainda a despontarem. Contudo, numa das festas já estava o namorado da altura da minha filha, o primeiro, um rapazito. Os meus sobrinhos eram, ainda, umas crianças. Mas impressionante, impressionante, é a quantidade de pessoas que já não estão por cá. Até a minha avó materna ali estava com ar desempoeirado, bonita. Era, na altura, mais nova do que a minha mãe é agora. Teve a minha mãe aos dezassete e a minha mãe teve-me aos vinte e três. Por isso, naquela altura, ali estava a minha mãe toda giraça e a minha avó toda inteiraça. Mas estavam também os meus sogros, a mãe de uma prima por afinidade, o primo do primo, jovem desportista e dos mais divertidos do grupo e que, há um par de anos, do nada, se foi para desgosto de todos nós que não queríamos acreditar em tal maldade. E estava, claro, o meu pai. Sempre com aquele ar jovem e arejado, embora geralmente com ar mais circunspecto. O meu marido geralmente também não aparece a rir nem liga patavina a fotografias. Fica sempre bem mas com ar de quem não está nem aí. Julgo que nunca se deve ter rido para uma fotografia. Presumo que o meu pai também não. 


Olha-se para aquelas fotografias, grande parte dos que ali aparecem já desaparecidos, os outros todos mais velhos, a caminho de um dia serem também uma memória e, necessariamente, uma pessoa sente-se melancólica. Mas depois logo se percebe que nada disso, que ideia, tristezas não pagam dívidas, para quê ver as coisas só pela metade? Então e os que, nessa altura, ainda nem em projecto estavam? Tantas pessoas que naquela altura não existiam e que hoje já estão por aí, traçando o seu percurso, construindo o seu futuro, trazendo o calorzinho bom do seu afecto às nossas vidas.

De vez em quando, o meu marido que esteve também envolvido nesta empreitada, perguntava-me: onde é que ponho isto? Fui dizendo: fotografias com fotografias, recordações com recordações. É que, por exemplo, encontrei um postal ilustrado que lhe enviei quando namorávamos. Quanta inocência a daquela minha paixão. Não me lembrava nem um bocadinho de lhe ter escrito aquilo. Curiosamente guardou-o e não sei que voltas já terá dado aquele postal para ali estar. Parece que não liga a nada a estas 'mariquices' mas, na volta, se calhar até liga. (Mas, se ligar, é só um bocadinho. Um bocadinho pequenino. E eu acho graça a ele ser assim. Não sou muito de ligar a homens lamechas).

Numa terrina do serviço da Vista Alegre que pouco uso e que está dentro do louceiro, fui dar não apenas com um documento contendo a linhagem da nossa cãzinha, com o seu registo e com outros seus documentos, como com os testes de orientação profissional que o meu filho que, quando andava no 9º ano, por sua iniciativa e sem dizer nada em casa, foi fazer com a psicóloga da escola. Impressionante como, desde miúdo, desde sempre, foi aquilo que ainda é hoje: decidido, pragmático, focado. Gostava de saber onde pára os que a minha filha fez também no 9º e que a mostraram com um nível de inteligência excepcional, com capacidade para muita coisa mas com mais forte pendor para as áreas que, de facto, profissionalmente tem vindo a seguir. Pode ser que, nas coisas que ainda estão por passar a pente fino, isso também apareça. Devia guardar os dois no mesmo sítio.


Em dias assim, fico sempre com vontade de chegar àquela fase da vida em que terei tempo para fazer reorganizações a sério, tudo bem sistematizado, classificado, nada a pairar por partes incertas. É que agora, como é tudo na base dos shots, tudo em doses maciças e condensadas, muito trabalho em períodos muito curtos, parece que fica sempre tudo a modos que pela metade.

Ao fim da tarde, fomos até à praia. Mas a maré estava cheia e o areal igualmente cheio. Por isso, fizemos a nossa caminhada à beira de água, que bem boa estava, e, no fim, desamparámos sem que nos tivéssemos sequer sentado. E, dali, viemos comer um big gelado. Viemos, não. Vim eu. Um belo gelado de três bolas, bom que só visto. De comer e chorar por mais. (E depois, com esta cara de pau que tão bem me caracteriza, digo que é a menopausa... É, é; está bem, abelha. )


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As mulheres que aqui hoje vieram espreitar a prosa nasceram, como é bom de ver, das mãos de Rubens e, como deu para ver, fizeram-se acompanhar de uma das belas composições de John Barry

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Quando fui à procura da música de que estava afim, aquela ali em cima, o YouTube propôs-me o vídeo abaixo. Sou pouco amiga de enlatados, confesso. Mas, na volta também efeitos da querida menopausa, ando mais dada a coisas em jeito de assim. Portanto, sem delongas, aqui fica o dito vídeo onde se podem ouvir e ler coisas que não são mal pensadas, não senhor.


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E a si que, pacientemente aí está desse lado, desejo um belo dia de domingo

quarta-feira, junho 24, 2020

As três realidades básicas do universo


Por entre tentativas disto e daquilo, quase todas goradas, estive com o Harari ao colo. Estive a tentar acompanhá-lo naquilo da diferença entre cérebro e mente. E estive a ler sobre o nosso desconhecimento sobre tudo isso. Na verdade, fiquei a pensar no total desconhecimento de tudo o que de mais íntimo nos diz respeito. É muito estranho, isso. E é tema que muito me intriga. Diz ele que já estamos na fase em que os algoritmos sabem as nossas preferências e que, se não nos apressamos, um dia serão eles a determinar o que nos é dado a conhecer.

Já estamos quase lá. E mantemo-nos indiferentes a essa evolução do rumo dos humanos. Um dia, talvez não muito longínquo, já pouco teremos daquilo que somos hoje. Se chegarmos até lá, claro. É que pode haver uma pandemia em que o vírus seja menos condescentente que este coroninha tinhoso ou pode o degelo encharcar meio mundo e a outra metada ficar ressequida, com os humanos feitos carapaus secos. 

Mas, até lá, iremos evoluindo no sentido em que agora vamos: cada vez mais fúteis, mais parvos, mais mentecaptos. Vítimas de tudo, reféns de tudo, nomeadamente de tretas como as redes sociais -- e, talvez por isso, narcisistas, burrificados, superficiais. Mas isto já sou, não é ele, que ele é mais contido que moi.

Também estive a ler o que ele diz sobre a preocupação das pessoas com o que acontece depois da morte. E concordo com o que diz. Se as pessoas não se importam em saber o que são antes de morrer, porque se preocupam tanto com o day after? E preocupam-se como se, enquanto estivessem vivas, fossem unas, com uma identidade imutável. Ora se mudamos todos os dias, mudam as nossas células, muda o que as mantém vivas e unidas, muda a nossa perspetiva, muda tudo, porque nos olhamos sem nos vermos como somos, algo em permanente mudança? Mas olhamo-nos como se fossemos calhaus, havendo muita gente que se gaba de, se fosse hoje, faria o que fez há mil anos, da mesma maneira. Pensam que mostram coerência. Contudo, o que eu ali vejo são anos de aprendizagem desperdiçados. E nem se dão conta da burrice que revelam, E estas apreciações também já são de minha lavra. 

E li sobre outras coisas mas agora não vos quero maçar mais. Tinha pensado em transcrever algumas coisas mas estive aqui de roda de outra coisa e já é tarde demais para me armar em copista. Ainda se, com a mente, eu pudesse seleccionar um trecho de uma página e, copy paste, pumba para aqui... 

Agora assim, o estado da arte ainda não chegado a esse ponto e tendo que ser à mão, limito-me a esta coisa pouca:

"(...) as três realidades básicas do universo são que tudo está em constante mudança, que nada tem uma essência duradoura e que nada satisfaz totalmente".

A seguir ele explica porque são estas e não outras as realidades básicas do universo mas isso é informação preciosa demais para ser despachada aqui em três penadas, 

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Fotografias de Ren Hang que, como é bom de ver, não tinham nada que ser para aqui chamadas. 
Talvez por falta de inspiração, não me ocorreu nenhuma música desapropriada para aqui colocar

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E tenham uma boa quarta-feira, está bem?

sexta-feira, janeiro 04, 2019

Porque é que Sócrates detestava a democracia?





Não há coisa mais democrática que as redes sociais: toda a gente opina por igual e vai um e diz que gosta e vai outro e bota-lhe um smile e outra um LOL e outra um friso de DDDD, e vai link para aqui e link para a acolá. O povo a fazer as suas escolhas.

Na cabeleireira, lugar que encaro com fascínio, ouço uma conversa entre a cliente e a menina que faz nails em gel e em gelinho: Pah, fui lá, vi as fotografias dela e pus logo lá um like mas já reparaste que a gaja a mim nunca põe um like? Mas eu ponho, sou assim, para ela ver que a mim não me afecta. A outra aprova: 'Bofetada de luva branca'. E, enquanto ali estou, as conversas giram sempre neste registo. Presumo que nada saibam de política nem dos escândalos do Facebook. E, quando votam, sem nada saberem de concreto sobre o que os candidatos têm para oferecer e sem poderem em consciência fazer um rigoroso juízo de valor sobre desempenhos anteriores ou sobre eventuais consequências (boas ou más) das promessas dos candidatos, o voto delas vale tanto quanto o das pessoas bem informadas.


Veja-se o que aconteceu no Reino Unido: uma votação assente em manipulação da informação prestada aos eleitores (lembram-se do escândalo da Cambridge Analytica?), sobretudo incutindo-lhes medo, levou a que estes tomassem a irresponsável decisão de saírem da União Europeia. No dia seguinte, depois do lindo resultado, a Google ia aterrando com os britânicos a perguntarem o que era o Brexit. Ou seja, tinham votado sem saberem no que se iam meter. Mas como o seu voto é soberano, andam agora a querer cumprir essa determinação, mas completamente às aranhas. Parte dos que os meteram nisto já se pisgaram e os outros não se entendem. Uma coisa desconcertante de tão estúpida que é.

Ou a malta que votou no Trump? Os mais desfavorecidos foram os que mais o apoiarem. Um sujeito que parece atrasado mental de tão boçal que é e que, por incrível que possa parecer, ainda tem muitos apoiantes. O mesmo acontece com Marine le Pen: os imigrantes, nomeadamente os portugueses, são fervorosos apoiantes. Acham que a mãezinha os vai poupar a eles, banindo 'os outros'. Um pouco por todo o lado, os populistas e a extrema direita vão ganhando terreno com o voto popular e democrático dos mais incultos, dos mais facilmente manipuláveis.

É a democracia a funcionar.


A comunicação social séria vai soçobrando pois assenta num modelo de negócio que está a ficar obsoleto neste mundo imediatista que gira em torno do uso intensivo e pseudo-gratuito das plataformas colaborativas e partilhadas. Por isso, o que poderia ser um contraditório rigoroso e eficaz também está a desaparecer -- e a cambada que começa no populismo para acabar no totalitarismo vai alastrando.

Não me perguntem qual a alternativa à democracia porque não saberei responder. Melhor do que a democracia não conheço. Talvez uma democracia filtrada e regulamentada mas, muito sinceramente, não sei se isso não é a contradição dos termos. Se calhar é. 

Além do mais, há outra coisa: muitos democratas tendem a ser pouco pragmáticos, tendem a encarar assuntos relacionados com democracia e liberdade como tabus. Se alguém tenta reflectir sobre o tema, logo se erguem, doutorais, de pedras na mão, querendo expulsar do templo os que, genuinamente, gostariam de encontrar uma forma eficaz e 'democrática' de preservarem a democracia.


Penso que nas escolas, todas as escolas, e na sociedade em geral deveria ser suscitada esta reflexão.

Tal como a tecnologia barata ubíqua e de utilização desregulada pode devorar a liberdade e a qualidade de vida dos cidadãos também a vida actual -- com muitos políticos oportunistas ou fracos como moscas mortas, e com a opinião pública condicionada pela praga das redes sociais  -- pode minar os pilares da democracia.

Mas, enfim, é tarde, está um frio dos diabos, a casa está envolta num denso nevoeiro, e eu não serei a pessoa mais instruída para dissertar sobre o tema. Fico-me, pois, por aqui.


Queiram, antes, ver este vídeo que o P. me enviou e que bem interessante é.


Why Socrates Hated Democracy



We’re used to thinking hugely well of democracy. But interestingly, one of the wisest people who ever lived, Socrates, had deep suspicions of it. 

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Escolhi fotografias do alemão Matthias Haker que mostram belíssimos edifícios abandonados pois, em tempos, pareceram perfeitos, eternos, foram estimados e nada parecia anunciar o abandono e a decrepitude a que agora estão votados. Se existe a perspectiva de democracia correr o risco de vir a ter o mesmo destino (mesmo que só por vezes e em alguns lugares) então, naturalmente, fico apreensiva. Muito.

De Arvo Pärt o Cantus in Memory of Benjamin Britten com Tilda Swinton no vídeo

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quinta-feira, outubro 04, 2018

#Philonomist.em.português.já!



Como agir quando somos a raposa no meio dos lobos? 
Num meio hostil deveremos recorrer a Maquiavel? 
O que fazer em relação ao efeito Matilde? 
As start-ups mantêm-nos na fase oral? 
O que é a destruição criativa?


Tudo magnas questões que o site Philonomist aborda, a bem de um funcionamento informado das empresas. 

Lançado no início deste mês a partir do Philomag, o Philosophie Magazine, o site visa levar a filosofia ao dia a dia das situações vividas nas empresas. Do que por lá veraneei, tenho a dizer que fiquei com pena de não ter a subscrição pois só se consegue ver uma parte de cada texto. O site é bilingue, em francês e inglês, e eu acho que deveriam acrescentar o português. Os temas parecem ser tão criativos, divertidos e oportunos que penso que o site em Portugal (e restantes países da lusofonia) teria imensa saída. É que a ideia parece-me mesmo inovadora, inesperada.

Quem não vive dentro de uma empresa pode não perceber a relevância de um site que discuta ou, pelo menos, aborde alguns temas numa perspectiva filosófica. Filosófica ou arraçada de filosófica. Para o meio empresarial vai dar ao mesmo. 

Não quero ser injusta, carregando na dose de ironia, pois o que não falta, imagino que, em especial nos grandes grupos, é gente informada, bem pensante e com sentido de humor. Isto para além dos figurões, caniches, zombies, apertadinhos, agarradinhos, divas, flausinas, faunos e demais fauna, claro. Só que, no decorrer dos dias, a mediania, o cinzentismo, os jogos palacianos e os pequenos poderes acabam por envolver com uma subtil capa tudo o que mexe. Portanto, não era mal pensado pôr a malta a reflectir. Nem que só um poucochinho.

É que ver gente a pensar é um grande acontecimento. 
Juro. Ia adorar assistir.


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Como não vou pôr-me, agora, a transcrever uma mescla de textos do dito site -- pois, em francês ou inglês, para quem não seja dado às bilínguas, a coisa pode ser maçadora -- fico-me por aqui. É tarde.

Mas, para que não venham pedir de volta o dinheiro do bilhete por acharem que assim não vale, que assim é coisa poucachinha, deixo-vos com um bailado que é de se lhe tirar o chapeau. Vejam, por favor.


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E queiram, por favor, descer para verem a beleza das mulheres embelezadas com a técnica do Kintsugi

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terça-feira, março 13, 2018

O abade prevenia que semelhantes teses e temas só deviam ser apresentados e discutidos a "determinadas mesas e com discrição" e, ainda assim, "mandando sair os criados".





Thérèse philosophe inspirava-se num caso célebre: o padre Girard, um jesuíta reitor do Seminário Real de Toulouse, fora acusado por Catherine Cadière, de quem era confessor, de a tentar seduzir. O padre fora absolvido pelo Parlamento de Aix, em 1731, mas numerosos panfletos repetiram e romancearam o episódio. Assim, Thérèse philosophe passava também a ser um roman à clef.


O padre Girard, Dirrag na ficção, usava os famosos Exercícios Espirituais de Santo Inácio numa desvirtuada acepção carnal, misturando sexo e sacrilégio. A mensagem era a desmontagem da dualidade corpo-alma e a disseminação de uma filosofia materialista. (...)

Para se ilustrar nestas matérias, Thérèse ia lendo na biblioteca do Conde, seu interlocutor, alguns clássicos da pornografia. No final, tirava as conclusões consequentes: a volúpia e a filosofia faziam a felicidade do homem sensível, que chegava à volúpia graças ao tacto e que amava a filosofia graças à razão.

Ao mesmo tempo que se desdobrava em experiências com vários parceiros -- padres, aristocratas, filósofos --, Thérèse ia referindo outros prazeres, para leitores que supunha da sua condição: vinhos de qualidade, como champanhe e bourgogne, e pratos raros e caros, como ostras. O gourmet, o filósofo, o libertino, juntavam-se na boa vida. O público alvo era, claramente, a sociedade dos salões. 

Já Diderot, Voltaire e Montesquieu, em La Religieuse, Candide ou Lettres Persanes, conhecendo a ligeireza intelectual do beau monde, seguiam a mesta receita, servindo a filosofia em pequenas doses, facilmente digeríveis pelas elites do tempo, como os petits pâtés anticlericais de Voltaire. Uma das personagens de Thérèse philosophe, o abade, prevenia que semelhantes teses e temas só deviam ser apresentados e discutidos a "determinadas mesas e com discrição" e, ainda assim, "mandando sair os criados".

Só os escolhidos deveriam ter acesso a estas verdades, pois, se conhecidas e partilhadas por todos, poderiam subverter a ordem social. Assim, a filosofia ilustrada era só para as elites, permanecendo o povo na ignorância e nas trevas da religião e da tradição, sendo preferível e desejável que assim acontecesse.



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Na sequência de Filosofia e Pornografia e de Um best-seller em 1748, este também é um excerto de Bárbaros e Iluminados, Populismo e Utopia no século XXI de Jaime Nogueira Pinto.

Kate Moss aqui é fotografada por Tim Walker

 Divna Ljubojevic interpreta Песма над песмама

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