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domingo, julho 12, 2020

Os melhores. Os perfeitos. Os irrelevantes.





Não sou dada a escalas ou a pódios. Não digo isto para me enaltecer mas para reconhecer uma limitação.
Quais os melhores momentos da minha vida? Quais os melhores livros? Os melhores filmes? As melhores cenas? As pessoas mais excepcionais? As mais estúpidas? 
Não sei responder. Posso, quase ao calhas, por ordem aleatória, dizer alguns ou algumas de cada 'categoria' mas não seria capaz de os elencar por uma determinada ordem ou de escolher o melhor ou o pior.

Por exemplo, se começo a pensar em pessoas estúpidas, ocorrem-me logo umas quantas mas se escolho duas ou três, logo me ocorrem outras tantas. E, se tento destacar uma, logo me ocorre que nem é apenas ser estúpida, é que soma à estupidez outras características igualmente pouco abonatórias. E depois fico sem saber se não é dar importância demais a um qualquer zé-cueca pô-lo um lugar de destaque mesmo que seja o destaque do zé-cueca mais zé-cueca. Depois penso que, mesmo que o destaque seja um destaque negativo, em casos assim o zé-cueca mais zé-cueca deveria era ser votado à mais completa irrelevância e não a um lugar num pódio. E, assim, enleada nessas dúvidas metodológicas, acabo por perder o élan.


Igualmente, se penso nos grandes filmes, logo me ocorrem uma meia dúzia. E, se tento pensar melhor, logo me aparecem mais dois ou três. Tantos. Tento reformular e, às tantas, já estou é a pensar que deveria dividir a categoria em sub-categorias. Aperfeiçoar a escala, especializá-la. E isto para tudo. 

Desisto, portanto. É escusado. Daqui nunca há-de sair uma lista de preferências ou rejeições devidamente hierarquizada. Sou manifestamente incapaz.

Mas gosto de ver as listas alheias. Penso sempre que é gente organizada, boa de ideias, com a informação devidamente arquivada e catalogada na cabeça. Já me ocorreu que um dia que me dê para isso ainda me hei-de pôr a organizar um ficheiro com coisas assim. Talvez um excel. Cada folha, sua categoria. Livros. Talvez dividido em prosa e poesia. Não, mais subdividido. Assim, de vez em quando, ia rever, ajuizar sobre se a lista ainda se mantinha actualizada, ia juntar ou retirar alguns items. Mas, se penso isto, penso também logo que só se chegar a um ponto em que não tenha nada de melhor para fazer. 


Hoje uma pessoa contou-me uma coisa que me fez um bocado de impressão: uma pessoa que estava ali, perto de nós, tinha, durante anos, feito uma colecção. Acabou por ser uma colecção fabulosa. Completa, exaustiva, sem falhas. Agora já não sabe onde colocá-la tal a dimensão que atingiu. Sempre pensou que um dia a doaria à prestigiada instituição à qual tinha pertencido. E agora chegou à triste conclusão que a instituição não está interessada nem, sequer, tem espaço. E ele, que procurou incansavelmente construir uma colecção perfeita, que investiu tempo, dinheiro e trabalho nisso, agora percebe que foi tudo em vão. Ao ouvir isto, senti aquilo a que talvez se possa chamar tristeza alheia.

Todo o esforço com que nos entregamos a coisas que achamos importantes pode ser inútil. Claro que isto decorre também de, tantas vezes, nos esquecermos de que somos efémeros. Ou então nem é bem isso, pode ser o oposto, se calhar, sabendo que somos efémeros, queremos perpetuar a nossa passagem por esta vida, deixando alguma coisa para quem cá ficar. Mas os outros vão estar-se nas tintas. E, às tantas, o que era tão importante e uma extensão de nós, vira tralha, mono, coisa a que ninguém sabe o que fazer, lixo que nem se sabe onde pôr.

Passou-se ainda outra coisa que me deixou a pensar. Mostraram-nos, com orgulho, uma coisa tão perfeita, tão complexa, tão à prova de tudo que o meu filho, já só entre nós, comentou: é uma coisa tão perfeita que pode transformar-se num grande problema. E eu concordei. E fiquei a pensar: porque é que as pessoas se dedicam assim em busca da perfeição? Será que acreditam que a perfeição absoluta existe? Que é melhor uma coisa imaculadamente perfeita do que uma coisa banalmente imperfeita? Não creio.

A vida está cheia de nós, de alçapões, de labirintos. Ultrapassá-los já será bom. Saber encontrar a beleza que há nos intervalos ainda melhor será. Mais do que isso já será querer demais.


E a todos desejo um belo dia de domingo

quinta-feira, março 19, 2020

Sobreviver ao isolamento e ao teletrabalho.
Derrubar o estafermo do COVID.
Dar a volta por cima.




Dia, de novo, agitado e complexo. comecei com uma conference call. Muita gente, cada um em seu sítio. Não por imagem mas apenas som. Não foi fácil. Cada um reportando a situação. Casos sob suspeita, obrigando a quarentenas, a problemas. Casos dificílimos para resolver. Situações que parecem irresolúveis mas que têm forçosamente que ser resolvidas. Dei por mim, com a mão na testa, a pensar que uma coisa destas enfrenta-se uma vez na vida e que nem todos saem dela para o contar. 

Acabei arrasada, sem saber bem como dar a volta a tantos problemas tão impossíveis de resolver. Quando acabou, agarrei-me ao computador e mandei mails com propostas de mitigação para algumas das questões.

E continuou assim. Muitos problemas, muitas dúvidas.


A meio da manhã, exausta com tanto mail, mensagens e telefonemas, levantei-me, peguei num balde com água e detergente multi-usos e resolvi lavar o chão da casa. Ouvia os mails a chegar e os pings das conversas e ia espreitar mas, dado que achei que podiam esperar uns minutos, mantinha-me na lida doméstica. Lavei o chão da cozinha, depois o da sala da lareira. Quando me preparava para ir despejar e pôr água limpa para seguir para o corredor e para o quarto, quiçá ainda para as casas de banho, veio um telefonema que tive mesmo que atender. E assim me mantive até à tardia hora de almoço. Felizmente ainda tinha massa com tomate e salmão de antes de ontem. Do lado do meu marido os telefonemas e os mails também choviam. Uma estereofonia enervante.

Depois de almoço, sentei-me no sofá e pensei que me saberia bem dormir a sesta. Mas durou um minuto essa ilusão. 

Meio desanimada, resolvi fazer uma coisa: ir trabalhar para a rua. Peguei numa almofada, no computador e no telefone e fui sentar-me em cima de uma pedra. Às tantas, com o sol a dar-me, fiquei com calor e tirei a blusa de manga comprida, ficando apenas com um top de alcinhas. E ali fiquei trabalhando, mail para aqui, mail para acolá, telefonemas e, pelo meio, whatsapps a que fui levada a aderir por pressão familiar. E, também pelo meio, um mail da minha menina mais linda a perguntar que é feito de mim, e com muitos bonequinhos coloridos e em movimento. Fiquei logo toda derretida. Naquele instante abriu-se uma clareira inundada por luz e o covid evaporou-se e, com ele, todas as suas consequências.

A seguir, voltei à doideira, stress, stress, stress, falta disto, falta daquilo, pedidos disto, pedidos daquilo, problemas a caírem. Fui dizendo que em contingência há que estabelecer prioridades, que isso não, aquilo não, outra coisa tem que esperar, outra é para esquecer, outra claro que sim, outra o mais urgentemente possível. 

Às tantas, uma barulheira, uma louca correria, um gato a passar rente a mim, um cão atrás a ladrar, furioso, o gato aflito, a seguir outro cão pequenino também em perseguição. 

Durou segundos mas fiquei ali em suspenso. De onde tinha toda aquela cena aparecido? De que outro filme?

Levantei-me a perceber para onde tinham ido todos. Já não os vi. Desapareceram. Fiquei um bocado a olhar para o ar pensando no mistério de tudo isto. Toda esta vida é um mistério. Uma sucessão de acasos que umas vezes se conjugam harmoniosamente e outras em que tudo se desencaixa, ameaçando fazer ruir tudo de forma irreversível.

A seguir fui vestir outra blusa, pus um fio, brincos, penteei-me e fui instalar-me para a vídeo conferência. Quando acabou, passei para outra. Depois, aprovação de cenas e mais mails. 

Por fim, já o dia se estava esvair. A sala estava escura e eu com frio. O meu marido apareceu, também já livre de trabalhos. Disse-me para vestir um casaco pois já estava frio na rua. Fui buscar a máquina fotográfica e fomos passear. Enquanto andava, liguei à minha mãe. Continuei a pedir-lhe que não saia, que não deixe entrar ninguém em casa a não ser a senhora que lá a vai ajudar com o meu pai e que essa tenha cinquenta mil cuidados. Contou-me piadas, contou de uma vizinha que lá foi levar uns medicamentos e que apareceu de capuz na cabeça, máscara, óculos escuros e disse que era um assalto. E rimo-nos que nos fartámos. 

A seguir liguei à minha filha e estive a vê-la e aos meninos, mais lindos, grandes, tão queridos. Cada um do lado da mãe, abraçados a ela, meigos, meninos mais amorosos. Que saudades. Enquanto falava, o gatinho preto e branco estava deitado em cima de um muro. Tal como o gatinho cor de mel já não se assusta comigo, este também se deixou ficar. Fotografei-o. Mas quando me aproximei para o filmar para o mostrar, os meninos a falarem alto, que eu não estava a filmar bem, para a esquerda, para baixo -- ele fugiu. Meus meninos queridos, como eles haveriam de gostar de aqui estar. 

Ao entrar em casa já havia mais mails, mais mensagens, mais dúvidas, mais questões: e agora com o estado de emergência? e agora com tanta gente em quarentena? e agora quando precisarmos de ir?


Mas a preocupação e o cuidado são sempre estes: em casa sempre que se puder, a trabalhar sempre que tiver que ser. 

A vida continua, a vida tem que continuar. Todos com mil cuidados mas a fazer a vida continuar. Lavando-se, protegendo-se, desinfectando-se mas fazendo o que tiver que ser feito. E este é o espírito de todos. As cadeias de abastecimento e os serviços indispensáveis não se podem romper.

Não podemos deixar que o mundo seja sugado pelo medo. Temos que ser capazes de vencer isto.

E que alguém mande deitar mãos à obra.
  • As fábricas de produtos químicos que façam desinfectantes, as fábricas de pensos higiénicos e fraldas que façam máscaras, as fábricas de embalagens que façam óculos de protecção, as fábricas de confecção têxtil que façam fatos de protecção. As fábricas de medicamentos nacionais, que as há, que façam os medicamentos que têm estado a provar alguma eficácia. 
  • E as fábricas de automóveis ou de electrónica ou todas façam ventiladores ou o que fizer falta.  
  • E os investigadores ousem soluções, avancem, proponham munições, façam testes. 
  • E todos se unam para vencer esta guerra.
O país tem que converter o medo em acção. Não podemos acabar tolhidos, infelizes, esfomeados, pobres, inanimados.

Inventem-se novas formas de trabalhar, inventem-se novas formas de nos relacionarmos, inventem-se soluções para problemas que ainda mal sabemos formular.

Ouvi Marcelo. Não falou mal. Mostrou bom senso. Marcelo tem que abdicar da ânsia de protagonismo e ouvir, mais do que o apelo pela popularidade, o bom senso e o pragmatismo de António Costa. Marcelo será mais amado, e ser amado é a praia dele, se souber mostrar ser o suporte institucional do Governo. Neste momento o país precisa de sentir a união esclarecida de todos.

Ouvi António Costa. Excelente. Sensibilidade e força. Inteligência e sentido prático. Visão de curto e de médio prazo. Podemos estar confiantes. António Costa vai ajudar-nos a sairmos rapidamente deste buraco negro.

Depois ligou o meu filho e o bebé levou-me a ir outra vez para a rua, à noite, para ver os lugares onde gosta de estar quando cá está. Contei dos gatinhos, da perseguição do cão. O menino do meio quis saber se o pai se portava bem quando era pequeno e eu tive que ter muito cuidado com o que respondia. A menina mais linda estava tímida e com sono. Todos lindos e tão queridos. Que vontade de poder enchê-los de beijinhos.

Os tempos não estão fáceis. Enquanto estava a escrever, estive a ouvir Fernando Maltez. Não fiquei tranquila. Porcaria do covid: tão pegajoso e traiçoeiro, o raio do bicho. Tão tinhoso, infiltrando-se pelos pulmões abaixo. Mas ele, o médico, tão sabedor, tão comedido, tão frontal. 

De manhã, ao saber-se os números, o meu filho enviou para a família uma fotografia com o gráfico. O crescimento é de susto mas menos do que a exponenciação pura daria. A minha filha respondeu logo, animada.

Sendo devota da matemática, sei que há casos em que a matemática pura e dura, não pode ser usada a seco. A matemática é linda e pura mas é quando conhecemos todos os factores e conseguimos transpô-los a todos para as equações. Não é o caso de quem se põe a prever flechas a caminho do inferno. Ignorar factores como os comportamentos que influem no contágio, como a imunidade que a comunidade vai adquirindo, como a resistência do vírus à temperatura ou outros aspectos é uma estultice. A matemática, tal como a música ou a poesia, são para ser usadas com inteligência, com respeito, com arte e com humildade.

Já vai longo este texto. A ver se esta quinta-feira consigo lavar mais um bocado de chão. Também tenho que fazer o almoço e a ver se faço a mais para dar para o jantar. Gostava também de conseguir arrumar umas tralhas que, há umas semanas, trouxe da casa da cidade. Mas já sei que não vou ter tempo para tudo. Talvez isto acalme e eu consiga usufruir um pouco mais deste meu retiro. 

Continuo esperançada. Não creio em milagres que caiam sobre nós como brindes mas creio em milagres nascidos da força dos homens e da força da natureza. 

O covid não pode ser o fim do mundo. Não vai ser o fim do mundo. É apenas o inesperado motor da transformação do mundo. E acredito que a transformação vai ser para melhor.


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E agora deixem-me ver bem Timofej Andrijashenko, quero conhecer-lhe os voos. 
Quer-me cá parecer que é um outro ser alado


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Pinturas de Baatarzorig Batjargal

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E uma vez mais não consigo responder aos comentários, que são tão bons e que seriam tão gostosos de responder. Mas teria que me alongar e já não consigo. No outro dia, num comentário, alguém me perguntava porque é que eu não ia dormir em vez de me pôr para aqui com relambórios e com pinturas e músicas. Tenho ideia que não respondi mas respondo agora: porque sim, porque me apetece. Porque gosto, à noite, de lavar a alma e alimentar o espírito. E porque gosto de partilhar. Só por isso. 

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E uma boa quinta-feira. Saúde e força. 
Bora dar a volta à besta invisível?

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