Mostrar mensagens com a etiqueta Alberto de Lacerda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alberto de Lacerda. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

É sobre a missa branca do teu peito que se erguem os palácios rasos de água


Linha d`Água (sem data). Autor: Mário Cesariny

A primeira vez que ouvi falar de Mário Cesariny, que nessa altura ainda era de Vasconcelos, foi na antiga cidade de Lourenço Marques. O nome intrigou-me imenso. Intrigou-me ainda mais o facto de se tratar de um surrealista português. Surrealismo para mim, naquela altura, queria dizer Paris. Exclusivamente Paris. Estávamos no ano de 1957. Escrevi para Portugal, para a livraria Bertrand, a perguntar se o poeta Mário Cesariny de Vasconcelos tinha obra publicada e se me podiam enviar um livro, o que tivessem, à cobrança. O livro que chegou foi Pena Capital. Li-o com deslumbramento e escrevi logo outra carta, desta vez à Contraponto, a pedir mais, mais livros daquele poeta. E desta vez recebi, numa edição numerada e assinada pelo editor, Luiz Pacheco, Manual de Prestidigitação. Uma festa.

Figuras de Sopro, 1947, óleo sobre cartão, 37,5 x 24,5 cm. Mário Cesariny

Li e reli os dois livros e decorei certos poemas para sempre. um desses, 'Julião os Amadores', saíu-me do princípio ao fim, a meio de uma conversa com Alberto de Lacerda. Quando dois poetas se encontram falam sempre de outros poetas. Falávamos do Cesariny que o Alberto conhecera na altura da formação do grupo surrealista português. O Alberto perguntou-me por que razão tinha eu decorado esse belíssimo poema que também tanto apreciava. 'Foi só de ler, Alberto. é um poema que me ficou.' E então o Alberto fez uma pausa especial, um gesto leve com a mão, e disse apenas: 'O Mário é o maior de todos nós.' Notei que disse o maior, não o melhor. Os critérios do Alberto exigiam grandes poetas.

Estávamos ambos em Londres. Na Londres que tanto amávamos. (...)

O Papá que veio de Leste, de Mário Cesariny . Lisboa, 1980

O que há para descobrir de Cesariny no mundo íntimo de Alberto de Lacerda excede em muito os contornos deste livro. Mas nesse mundo e sempre nos dois sentidos, resplendem admiração e amizade que o tempo nunca deixou de sustentar. Nenhum deles desejou que fosse uma amizade literária. O que a define é uma alta camaradagem marcada, muito ao contrário, pelo desejo de aventura e de magia com que Alberto e Cesariny sempre quiseram viver.

Peço a Mário Cesariny que nos venha aqui contar.

[in Introdução - Luís Amorim de Sousa, Oxford, Maio 2014]

(in 'Um Sol esplandecente nas coisas', cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda)


Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos fechados a
              passagem do vento
dizia eu            dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os palácios
             rasos de água
no escuro         no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
             deitados, sem dizer palavra, morreremos de ter-nos
             conhecido tanto
e depois?          e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a pedra
             de um sonho
mas os salões?   e a casa?
e o cão que nos seguia?

o teu rosto meu rosto
este homem alto
                            o Sol

[Julião os Amadores]

Mário de Cesariny

Mário Cesariny ''Ama como a estrada começa''


____

Convido-vos hoje a virem de passeio até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair onde vou, ao luar, pela mão de Luís Filipe Castro Mendes e ao som de Catrin Finch e Seckou Keita

____

E, caso não tenham lido o que ontem publiquei à hora de almoço, aqui fica o link: 
(um post dedicado a falsidades, imitações, erros de casting e outros)

.......

sábado, junho 15, 2013

O testamento de cores de Maria Helena Vieira da Silva aos amigos - o testemunho numa instalação no Jardim das Amoreiras. E encontros, correspondências entre ela, Arpad Szenes, Alberto Lacerda e Mário Cesariny: a amizade em palavras. A amizade em gestos.


No post a seguir a este, junto-me à senhora que não consegue parar de rir e a todos quantos se dobram agarrados à barriga ou rebolam no chão: esta do recurso do Crato ter que ser aperfeiçoado e darem-lhe 10 dias para ver se ele atina, é do melhor que vi nos últimos tempos. Hilariante.

A seguir a esse, uma lavagem de alma: duas talentosas sopranos portuguesas, uma delas candidata a melhor cantora do mundo.

Mas isso é a seguir a este. Agora, aqui a conversa é outra. Aqui fala-se de amizade.


\\//



Um azul cobalto para a felicidade



Querido amigo

Estou há muitos dias para lhe escrever e não posso. Escrevo e rasgo, escrevo e rasgo e nada me parece suficiente para lhe dizer a minha amizade por si e a saudade do Inverno que passámos. Agora passou tudo. Agora a vida anda a correr. Só lhe posso dizer que reli aqui 'junto de um seco, fero e estéril monte', e ouvi a sua voz a dizer 'inútil e despido, calvo informe', e fiquei muito contente. Foi porque o ouvi com tanta atenção que agora ainda ouço a sua voz, distante.

Peço que me escreva logo, assim que receber esta carta para me dar notícias suas dos amigos e da Rosário que nós esperamos com imapaciência. Um grande abraço

Maria Helena

[Na lateral, por AS]

Alberto queridinho um abraço poético do Arpad

[Carta de Maria Helena a Alberto de Lacerda em Maio de 1962]




Meus Queridos Maria Helena e Arpad

Um azul ultramarino para estimular o espírito



De la musique avant toute chose
Et pour cela préfère le pair
(Verlaine, adaptado: porque estou a acreditar que mesmo Verlaine preferia o par ao ímpar, que o ímpar é coisa dolorosa 'sans rien en lui qui pèse ou qui pose' (que maçada, assim?).

Quanto ao par, o único que conheço são vocês dois. Evidentemente! Um Par-Ímpar! (Ou o Par-Ímpar com que o Souza-cardoso já se preocupava porque ainda não vos tinha visto a atravessar uma rua e a fecharem-se, por fora, em casa).


[Carta de Mário Cesariny de Junho de 1982]

Um amarelo limão para a graça



Um amarelo barite: ficção científica, brilho, esplendor




Um laranja para exercer a visão de um limoeiro ao longe




Querido Mário

Se uma palavra minha o ajudasse, mandava-lhe mil... mas lá bem posso lutar contra o seu demónio, saio vencida. Se o Mário me ouvisse... Para quê procurar assim o sofrimento? Ele existe por toda a parte, neste nosso pobre corpo doente que vai morrendo dia a dia, não lhe chega esse? Não lhe chega a sua imaginação? Precisa de provas. Ai de nós, e da nossa loucura sempre presente, sempre a lutarmos com ela até à morte. Não é fácil viver, querido Mário, mesmo quando parecemos equilibrados.


[Carta de Maria Helena a Mário Cesariny, de Janeiro de 1965]


Terra de Siena natural: a transmutação do ouro


Querido Alberto,

Andei perdida num mar de tristeza, de trabalho, de gripe. Não dei notícias mas penso sempre no Alberto um pouco inquieta, por não ter notícias. A Cecília* levou-me para outros mundos quase ia esquecendo que ainda estou neste.
Um grande abraço muito amigo da Maria Helena

[na lateral]

Minha mãe, a Cecília, tantas pessoas queridas que vão partindo e eu já não sei bem onde estou. A morte, eu julgava que fosse uma coisa natural, é, mas nós morremos também aos poucos ainda vivos. Os mortos levam com eles uma parte da nossa alma. E deixam-nos o espírito. Será assim?

[Carta de Maria Helena a Alberto Lacerda, Fevereiro 1965]

Um vermelhão para fazer circular o sangue alegremente



* Cecília Meireles (1901-1964), poetisa brasileira, grande amiga do casal Szenes, desde os tempos do exílio no Brasil (1940-1947)

||||||

Veneza divínissima
24 de Julho 72


Querida Maria Helena,

Eu vou-lhe contar a história: eu tinha visto aquele vestido em Florença (feito no Norte de África, imagine); achei lindo, lembrei-me de si, imediatamente, lembrou-me o seu lado Ghirlandaio, ou Andrea del Santo, ou Carpaccio; vi-a conversando com o Leonardo sobre Proust, via em Veneza, num baile dado em sua honra pelo Dodge; antes do baile, no banquete, tinha, à sua direita, Giorgione (estou apaixonado pelo Giorgione)
(...)
E com toda esta parlenda ainda não agradeci a maravilhosa estadia, que me penetrou de calma, de poemas, e de um sentido de ternura que me comove cada vez mais profundamente.

Bem hajam
Beijo-lhe as mãos.
Abrace todos por mim.
Seu, do coração,

Alberto 

*

Fico-me por aqui (mas acho que, um dia destes ainda volto a estes maravilhosos testemunhos de afecto entre amigos; estes livrinhos estão a revelar-se preciosos).

Queria fazer uma formatação diferente do habitual mas, certamente por nabice minha, isto deu-me um trabalhão, o texto todo desformatado e a fugir-me pelos lados e, junto aos verdes, a recusar-se a ficar escrito. Desisto. Já passa outra vez das duas da manhã, estou perdida de sono (o que é o costume) e não tenho sabedoria nem paciência para, a esta hora, tentar que isto fique com ar mais arrumado. Fica assim, meio à maluca, mas vocês, tolerantes como presumo que sejam (senão não estavam para me aturar), vão, certamente, desculpar e fazer de conta que isto não prejudica a qualidade dos textos.

Relembro os dois posts a seguir a estes: um para rir como há muito não nos ríamos e outro para nos emocionarmos com o quanto a nossa alma se pode elevar perante vozes superlativas.

**

Desejo-vos, meus Caros leitores, um sábado em grande. 
E, vá lá, vamos todos rir até mais não poder com a incompetência dos ignorantes, ok?