Música, por favor
Kyrie Eleison de D. Lorenzo Perosi pelas Meninas Cantoras de Petrópolis
É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio - já estudei matemática que é a loucura do raciocínio - mas agora quero o plasma - quero me alimentar directamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.
E aos instantes eu lhes tiro o sumo de fruta. Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva.
A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.
Agora está amanhecendo e a aurora é de neblina branca nas areias da praia. Tudo é meu, então. Mal toco em alimentos, não quero me despertar para além do despertar do dia. Vou crescendo com o dia que ao crescer me mata certa vaga esperança e me obriga a olhar cara a cara o duro sol. A ventania sopra e desarruma os meus papéis. Ouço esse vento de gritos, estertor de pássaro aberto em oblíquo voo. E eu aqui me obrigo à severidade de uma linguagem tensa, obrigo-me à nudez de um esqueleto branco que está livre de humores. Mas o esqueleto é livre de vida e enquanto vivo me estremeço toda. Não conseguirei a nudez final. E ainda não a quero, ao que parece.
Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.
Estou me fazendo. Eu me faço até chegar ao caroço.
De mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas. O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência da minha voz, eu te escrevo com a minha voz. Respiro de noite a energia.
Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam. Minha forma interna é finamente depurada e no entanto o meu conjunto com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes realidades. Não conheço a proibição. E minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda. E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indirecto, o informal e o imprevisto.
Não ter nascido bicho é minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado.
Estou neste instante num vazio branco esperando o próximo instante. Contar o tempo é apenas hipótese de trabalho. Mas o que existe é perecível e isto obriga a contar o tempo imutável e permanente. Nunca começou e nunca vai acabar. Nunca.
Para te escrever eu antes me perfumo toda.
Eu te conheço todo por te viver toda. Em mim é profunda a vida. As madrugadas vêm me encontrar pálida de ter vivido a noite dos sonhos fundos. Embora às vezes eu sobrenade num raso aparente que tem debaixo de si um profundidade de azul-escuro quase negro. Por isso te escrevo. Por sopro das grossas algas e no tenro nascente do amor.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e me amas. É o que está certo.
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.
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Nederlands Dans Theatre - coreografia de Jirí Kilián para a Sinfonietta da autoria de Leos Janacek
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Os textos são de Clarice Lispector (Ucrânia 1920 - Rio de Janeiro 1977) in Água Viva da Relógio D'Água
As fotografias são de Mario Testino (Lima, Peru 1946) a viver (parte do tempo) em Londres
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Já agora: teria muito gosto em receber a vossa visita lá no meu Ginjal e Lisboa.
Hoje as minhas palavras voam num espaço vazio, em volta de um poema de Patrícia Aguiar e a semana abre com Mozart, agora cantado.
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Tenham, meus Caros Leitores, uma óptima semana.
E comecem já esta segunda feira. Divirtam-se, aproveitem. Be happy!