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sábado, agosto 12, 2017

Dindinha
- Todos os capítulos -





Embalada pela experiência organizativa do post abaixo -- no qual pus em ordem a vida de Lu, a mulher infiel -- fui-me à Dindinha. Acho que devia ter chamado a este folhetin Dindinha e a Prima; mas não dei, paciência. 

Gostei de escrever as peripécias daquelas duas (delas e do Tom) e, de vez em quando, apetece-me voltar a este trio maravilha. Ocorrem-me situações mirabolantes e, devo dizer, até a resvalar para o impróprio para consumo (isto na perspectiva, claro, de que, sendo este um blog de família, o que aqui escrevo deve poder ser lido -- sem embaraço -- por familiares meus, vizinhas ou meninas no convento). Mas, enfim, esses desenvolvimentos ficam para quando me tornar guionista de séries para televisão (ou netflix, vá). 


Para já fica a versão em português-suave do folhetim, em todos os seus fascículos, do primeiro ao último.

Dindinha










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Acrescentos da história à revelia da autora:





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[Espero não ter saltado nenhum capítulo. Caso descubram que me escapaou algum post, apitem, ok?]

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quarta-feira, março 08, 2017

Conversa de mulheres
[Onde a Prima conclui que Dindinha não é sapiossexual
-- e onde a criadora de ambas se demarca daquela conversa]




Dindinha diz:  "É dia da Mulher e parece que só se fala do lado chato e duro de se ser mulher. Não acha, Prima?"

Diana concorda: "É que, tantas vezes, não é mesmo fácil ser mulher, Dindinha. Sabes lá. Sei de casos. Tão duro. Às vezes, tantos disfarces para se conseguir suportar. E os medos, menina, sabes lá. Tantas dores que se engolem como se fossem lágrimas. Nem sabes, menina. Mas estou contigo. Prefiro festejar o facto de ser Mulher. E acho que dá mais força às mulheres se forem fortes, confiantes. Mas deixa. Olha, já pensaste como é que vais festejar o dia, Dindinha?"

Dindinha faz beicinho: "Não, Prima, não sei mesmo. O Tom anda armado em estúpido, agora deu em sonhador, diz que prefere sonhar com uma certa musa. Nem fotografias me quer tirar. Nem poesia me quer ensinar. Já lhe pedi: 'ao menos gramática, Tom...' Não quer, diz que tem mais que fazer, que eu dê pontapés na gramática à vontade. Já viu, Prima?"

Diana faz-se de desentendida: "Deixa, menina. Também tem idade para ser teu pai. E se calhar cansou-se de ser professor. Na volta pôs-se nas mãos de alguém que o ensine a ser gente"

Dindinha não é dada a subtilezas. Por isso, não presta atenção à ironia da prima e continua: "É um parvo. Um traidor. Hoje mandei-lhe uma sms a chamar-lhe isso, traidor. O estúpido respondeu 'Traduttore, Traditore'. Parvo. Sempre a querer armar-se em bom. Também não quero saber. Tenho um colega novo que é o máximo. Não sabe latim, nem grego, odeia filosofia, não vê boi de história, acho que nunca leu um livro. Mas é lindo de morrer e tem um corpo que me faz desfalecer"

Diana ri: "Não és, portanto, sapiossexual, Dindinha..."

Dindinha arregala os olhos: "Credo, Prima, não sei o que é isso mas digo já que não. Sou bi. A minha sexualidade é fluida, Prima. Confesso. Mas a sua também, não é não, Prima?"

Diana responde: "Não sei do que falas, menina."

Dindinha ri e diz, toda ela malícia no passar da língua pelos lábios: "Sabe, Prima, sabe sim, então não sabe...?"

Diana aborrece-se: "Qual fluida, menina. Sólida. Mas deixa. Olha, conta lá, que me quero divertir: o que mais aprecias num homem?"

Dindinha não hesita: "Num homem gosto do corpo, gosto da forma como me olha, da forma como mostra que me quer, gosto da forma como me agarra, gosto que me faça rir, que me faça ver estrelas, que não me faça sentir burra, que goste de estar comigo".

Diana fica a pensar. Depois diz: "E não gostas de quem goste de conversar contigo, que te escreva longas cartas, que te leia poemas de amor, que te surpreenda com as suas contradições, que te provoque, que te deixe a pensar, que goste de livros e de música e de arte e que te encha de dúvidas e de estremecimentos?"

Dindinha responde: "Oh Prima, até podia ser, mas só em doses ligeiras. Odeio, Prima, odeio aqueles chatos que, a propósito de cada coisa, se lembram de livros, que acham que toda a gente é igual a personagem de livro, que acham que são mais espertos que toda a gente, que gostam mais das histórias dos livros do que das histórias da gente. Odeio. São uma seca. O Kikinho, este meu colega novo, é o oposto. E tem umas mãos, Prima, umas mãos. Grandes, fortes, sábias. Passe a mão aqui no meu peitinho, Prima, veja como está uma seda... Pôs-me uma loção de alfazema, sabe, Prima. Cheire, veja como cheira bem".


Diana diz: "Não me atentes o juízo, menina."

Dindinha insiste: "Prima não queira ser essa tal sapiossexual que isso não me parece coisa boa. Descontraia, Prima, descontraia. Daqui a nada chega o Kikinho e vou dizer para ele passar a loção de alfazema na sua pele, Prima. Vá mentalizando o seu corpo, Prima. E depois vou dizer para ele lhe fazer também um estremecimento já que gosta tanto disso, Prima. Aposto que isso ele sabe. Aposto um beijinho, Prima."

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E, aqui chegada, a criadora de Diana e de Dindinha sai das águas em cujas profundezas habita, sacode as exíguas vestes, encolhe os ombros e, suspirando, lamenta-se: 'Estas duas, senhores, sempre a moerem. Como se eu tivesse alguma coisa a ver com estas parvoeiras. É que já começam a cansar a minha beleza. A história já acabada e mais que acabada e estas duas que não me largam, credo. Eu a querer debruçar-me sobre as cartas do Séneca e estas para aqui, troloró-troloró, só a distrairem a minha atenção'.

E, perscrutando o horizonte, demarca-se das suas crias e, segura e confiante, avança noutra direcção.


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De seguida, quando ninguém a vê, num inesperado volte-face, a autora arranca a máscara, uma e outra, todas as máscaras, todos os disfarces, todos, todos e, olhando os Leitores nos olhos, diz: "Esta sou eu. Com mil vidas, mil anos, mil mundos, coberta por mil palavras, mil recordações, mil rugas. Nua. Coberta por véus. Envolta em cores e em sonhos. Eu, aqui inteira perante vós. Uma mulher. Mil mulheres"


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A última fotografia é de Steve McCurry.
Lá em cima Sona Jobarteh interpreta Saya.


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E queiram, por favor, descer caso queiram conhecerem um Segredo muito especial.

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quarta-feira, março 01, 2017

Dindinha passou por aqui
[8º de 8 Postais ilustrados de Lisboa, a bela]


Da janela de Tom, vi Dindinha a passar com um lata de tinta numa mão e um pincel na outra . Ia nos cascos, furibunda. Deu em gritar a sua raiva pelas paredes. O seu Tom, que queria ensinar-lhe poesia, não tem respondido às suas mensagens e ela não lhe perdoa.


Num outro muro, um lamento.


Noutras, um apelo


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Mas não posso fazer nada. 
E Dindinha é jovem, um dia destes esquece-se. 
Ainda por cima, ja acabei a história. A vida de Dindinha já não é de minha conta.

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Até já. Tenho muito para mostrar.

...

segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Baile de máscaras





Estive todo o dia sem saber se ia. Queria mas, ao mesmo tempo, temia ir. Aquele estado de dúvida em que se quer uma coisa e o seu contrário. Se me tivesse esforçado, teria podido confessar que, sobretudo, temia desiludir-me. Longos dias e noites de desilusão já percorreram o meu corpo e a minha alma. Mas, se quisesse expressar o que queria que tanto temia não alcançar também não saberia dizer. Talvez quisesse apenas ser surpreendida. Não sei. 

A meio da tarde fui espreitar o roupeiro que tenho no fundo do corredor. Lá dentro estão vestidos que vesti apenas uma vez, vestidos que levei a casamentos, a jantares especiais, aos bailes a que ia numa minha outra vida. Pensei que já não me serviriam, que ficaria ridícula, que tivesse mas era juízo. Ao fim da tarde fui à procura da caixa com a máscara que, numa tarde de enamoramento e ternos abraços, um longínquo amor me ofereceu. Lá estava, envolta em papel de seda. Coloquei-a. Quando me vi ao espelho senti aquele frémito que tão bem conheço. Em mim, a sede de ceder a todas as tentações manifesta-se assim.

Penteei-me, maquilhei-me. Depois preparei uma bebida. Sentei-me a ouvir música, tentei serenar-me. Não consegui. Com as pulsações alteradas, pensei que era melhor não ir.

Já tinha anoitecido quando Dindinha ligou: 'Então, prima, está pronta?' Disse-lhe que ainda não me tinha decidido. Dindinha gemeu 'Ai, prima, venha, é um projecto tão importante para mim...'. Zanguei-me: 'Deixa-te disso, menina, só por acaso é que eu soube dele...'. Ela negou: 'Era surpresa, prima, só queria dizer no fim, fazer surpresa'. Não me apeteceu discutir: 'Tanto faz. Isso de se ir mascarado não tem jeito. Não me apetece mascarar-me'. Ela gemeu de novo 'Oh prima, mas tinha achado bem... Vá, venha lá. Já viu, se não vem, que sozinha e triste me vou sentir? O estúpido do Tom diz que tem mais que fazer, diz que tem que acabar uma treta qualquer, que não tem tempo para macacadas. Estúpido'. 

Ao ouvi-la, pensei: 'Ele vai' e aí as minhas dúvidas dissiparam-se de vez. Iria.

Vesti-me, perfumei-me, meti-me no carro. Estacionei no parque debaixo da escola e foi então, ao sair, que coloquei a máscara.

Quando entrei, o ambiente era de festa. Toda a gente mascarada, uns mais convencionais, outros pândegos, outros artísticos, circulando, rindo. Música boa.

Depois um sino e logo entrou um grupo de jovens não mascarados. Dindinha estava entre eles e destacava-se pela sua beleza. Foi ela que falou para apresentar o projecto, para apresentar os colegas. No fim, agradeceu ao professor Tomé, cuja ajuda e incentivo tinha sido essencial, disse ela. Enquanto falava, iam passando imagens por trás, a imagem da revista. A seguir, mostraram um filme. Toda a gente aplaudiu. Depois Dindinha disse que ia passar a palavra a alguns colegas mas que cada um tinha apenas dois minutos para falar. De forma muito profissional, cada um disse de sua justiça. O projecto estava bem pensado, a estética com uma elegância muito estimulante. Depois a música subiu de tom. Dindinha disse que lá fora havia comes e bebes e que, ali naquela sala, o baile estava quase a começar. Era só o tempo de eles sairem para se irem mascarar.

As luzes baixaram e começaram a passar imagens da revista nas paredes em volta. Passado um bocado, as luzes apagaram-se por uma fracção de segundo e logo se reacenderam com uma música alto e bom som.

E então toda a gente começou a dançar.

Em vão, tinha já tentado reconhecer o Lobo. Nada. Depois tentei reconhecer Dindinha. Também não. Ninguém. Deixei-me ficar encostada a ver toda aquela festa. De vez em quando passava alguém que me puxava pela mão ou pelo braço, tentando pôr-me a dançar. Muita gente já se abraçava às cegas.

Então, senti um braço sobre os meus ombros. Estremeci. Tentei perceber quem era. Não consegui. A máscara encostou-se à minha pele como que para me beijar. Depois puxou-me e pôs-se a dançar à minha frente, segurando a minha mão. Tal como eu, estava com luvas. Não consegui perceber quem era, se era homem ou mulher.

Às tantas, no meio da confusão, senti que alguém se aproximava e, num ápice, puxava a máscara um pouco para cima e com uns lábios quentes beijava o meu colo. Talvez fosse um abuso mas não me importei. Eu própria começava a ter vontade de começar a abusar.

Dancei. Dancei.

Algum tempo depois, já cansada, fui à procura do bar. Com piada, à porta de uma sala, havia um cartaz a dizer: 'Não é engano. O BAR é mesmo aqui'. Havia um conjunto de máquinas de bebidas e de sandes e bolos numa das paredes e na parede oposta havia uma cartaz enorme em que, em pintura, se simulava um bar, com gente sentada em bancos altos.

Tirei uma água fresca e, com cuidado, puxei um pouco a máscara e bebi a água toda. Quando reentrei na sala de baile reparei num vulto que parecia olhar na minha direcção. Misterioso. O vulto começou a vir como se viesse ter comigo. O meu coração disparado. Toda eu descompensada. Não sei se descompensada é a palavra certa. Aflita. Com medo. Prestes a cair num abismo.

O vulto abeirou-se. Baixou a cabeça, num elegante cumprimento. Acho que nem me mexi.

Depois pegou na minha mão e levou-a até ao lugar do seu coração. Eu estava enervada, nem sei se era suposto sentir as batidas, não senti, apenas senti o veludo do seu fato. Depois colocou a sua mão no meu coração. Mas, de facto, colocou a sua mão enluvada sobre o meu seio. Não sei se o meu coração disparou se parou.

Tive o discernimento de com a minha mão dar-lhe dois toques na sua, como que para dizer que já chegava, que tirasse dali a mão.

Puxou, então, por mim, enlaçou-me, começou a dançar comigo, eu enlaçada, eu nos seus braços. Depois parou. Eu ainda nos seus braços. Abraçou-me com força, como se toda a sua vida tivesse esperado por aquele abraço. Abracei também aquele vulto misterioso. Abracei-o como se me entregasse. Depois ele puxou a minha máscara um pouco para cima e fez o mesmo à dele. Beijámo-nos como se não mais pudéssemos deixar de estar juntos.

Depois ele abraçou-me e finalmente falou. Disse: 'Vamos. Venha conhecer a minha casa'. Era Tom. Sabia-o. Eu, ainda com a máscara posta, disse apenas: 'Lobo-lobinho'. Ele voltou a beijar-me. Disse-lhe que viesse no meu carro para irmos juntos. Pelo caminho, ele não parou de me olhar. Eu, de vez em quando dizia 'Lobo-lobinho' e abanava a cabeça, como se ainda não acreditasse. Ele, com aquela sua voz quente, dizia, 'Diana, a caçadora' ou, então, 'Diana, a protectora da caça'. Eu nada dizia. Ele perguntava: 'Qual é? Não é a mesma coisa'. E eu, incapaz de pensar, 'Não consigo pensar em proteger o que quer que seja ao pé de um lobo'. E ele 'Porquê? Já se rendeu? Sabe que o lobo a vai comer?' E eu: 'Não. É um lobo-lobinho, não é um lobo mau'. Ríamo-nos mas estávamos os dois tensos.

Uma casa cheia de livros, livros por todo o lado, livros novos e velhos, livros, livros. Ele acendeu o candeeiro sobre uma mesa pejada de livros. Ligou o computador. Disse-me: 'Veja'. Não precisava de ver. Era a nossa última conversa.

Na parede da frente, várias fotografias de Dindinha. Numas o corpo inteiro, nua, noutras só o rosto, um rosto irradiando sensualidade e beleza.


Vendo-me a olhar, ele disse com naturalidade, 'É linda, a Fred'. Beijei-o. Naquele momento eu era Diana. a caçadora, não a protectora. De resto, Dindinha não era nenhum exemplar de caça e, se fosse, seria tanto meu como dele.

Depois deixei que ele me despisse. Despi-o também. Devagar, conhecendo-nos, as mãos sobre a pele, devagar, devagar. Olhando-nos, tocando-nos. Devagar, devagar.


Sem máscaras, tratando-nos pelos nossos nomes, fomos apenas um homem e uma mulher que se conheciam de antes dos tempos e que, ali, aprendiam a materializar o seu amor. A dois. Dindinha era apenas uma imagem. Cada vez mais esbatida.



.... The end ...

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Este é o último episódio do folhetim Dindinha

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sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Dindinha e eu.
Sem Tom.





Na outra noite mal dormi. Estive a tentar recuperar algumas das muitas horas de conversação no messenger com aquele a quem conheço por H. Lobo, nome que acreditei ser o verdadeiro e a quem, por brincadeira, tratava por Lobo-Lobinho. Costumo dizer que não frequento o facebook. É mentira. Até há uns dois dias, em segredo, era para essas estepes que eu me esgueirava para lá o encontrar. Estive a rever as conversas desde o início. Pasmei. Há quanto tempo. Desafinidades aparentes, afinidades crescentes, antipatias vulcânicas, empatias incontroláveis. Aquilo dos opostos se atraírem. Aquilo das afinidades electivas. Aquilo dos beaux esprits. E discussões homéricas, dramas inconcebíveis, reconciliações indesculpáveis. Aquilo que não se explica. Aquilo que não se compreende. Aquilo de que não se consegue fugir.

De manhã, estava ainda incrédula. Nenhum indício palpável e, no entanto, a certeza absoluta. A certeza absoluta.

Durante todo o dia tive vontade de ir para bem longe. Receio. Sem saber o que fazer, ensaiei mil possibilidades. Perguntar-lhe se estou certa? Não. Dirá que não. Dizer-lhe, com assertividade, o que descobri? Dirá que não. Fingir que nada sei até que um dia a evidência lhe caia no colo? Talvez. E até lá? Fingir? E em relação a Dindinha? Contar-lhe? Mas contar-lhe para quê? Melhor calar. Ou não? 

Habitualmente tão decidida, com isto fiquei francamente abalada. Mal almocei, mal consegui concentrar-me ao longo do dia.

Então, eis que, de tarde, recebo uma* sms de Dindinha: 'Prima, estou a organizar o lançamento da revista. Coisa em grande. Preciso do seu conselho para saber o que vestir. Posso passar lá por casa depois de jantar?'. Pensei que era arriscado: e se o Lobo aparecesse? Mas ela não me deu tempo a desatar o nó. 'Lá para as oito e tal, nove, passo'.

Apareceu-me com um grande saco ao ombro. Enquanto passava por mim, a caminho da sala, disse: 'Quer acreditar que se não fosse eu insistir, o estúpido não dizia nada? Liguei-lhe, não me atendeu. Enviei uma sms e olhe, prima, olhe bem o que aquele estúpido escreveu...' e procurou no telemóvel. Depois mostrou-me enquanto lia: 'Tenho um trabalho para acabar. Pede à tua prima que te leve ao parque infantil'. Respondi-lhe logo 'Porque é que és tão parvo?'. Respondeu-me com um emoji de um diabo a rir. Completamente estúpido. Não acha, prima?'

Pensei cá para mim: 'Típico'. Mas não disse nada. Limitei-me a perguntar: 'Que conselho queres, então?'.

Atirou-se para o sofá: 'É assim, prima. O grande dia vai ser amanhã. Estamos no carnaval. Lembrámo-nos de, para a coisa ter impacto, a equipa estar mascarada. Vamos pedir aos convidados para também irem mascarados. Depois fazemos um baile. De máscaras. O que diz, prima?'

Achei bem. Então Dindinha pegou no saco e disse: 'Tenho aqui uns fatos. Queria a sua opinião, prima'.

Despiu-se. Foi para o meu quarto. Passado um bocado apareceu. Linda.


Tinha apanhado o cabelo com uma tiara florida, pintado os lábios, um rouge bem rouge, um vestido de renda. Disse. 'Depois punha uma máscara, claro'.

Logo, saltitante, voltou ao quarto. Passado um bocado reapareceu. Cabelos soltos, fulgurante. Maquilhagem natural. Uma borboleta radiosa, um anjo colorido. Olhando para ver o meu espanto, acrescentou: 'E punha a máscara.'.

Era Dindinha que ali estava, não Fred. Eu olhava-a com admiração. Quanta beleza. Quanta.


'O que me diz, prima?'

Eu estava sem palavras. Pensei no Lobo, no Lobo safado, com esta menina nos braços. Dindinha nos braços de Tom. Como ele se deverá sentir viril com uma menina com tão doces curvas, tão suave pele, tão gostosa boca. Imagino.

Com alguma compaixão, pensei em mim. Um corpo já com sinais do tempo, sem este viço, sem esta absoluta elegância, sem a carnalidade adolescente que eu aqui via. Pensei que não queria intrometer-me no caminho deles. O corpo de Dindinha é mais merecedor que o meu, pobre meu - pensei.

'Qual escolhia, prima?'.

Eu disse: 'Tão bonita, Dindinha, tudo te faz ainda mais bonita, menina'.

Ela despiu-se, ficou apenas em roupa interior. Olhou pela janela. Outra vez aquela melancolia. 'Nada, prima. Tão bonita o quê. Pois não vê que ninguém me quer? Veja o Tom. Malvado, malvado. Eu sempre disposta às suas exibições e ele trata-me assim.'

'Exibições...?'

'É um narcisista, prima. Tem a mania. Arma-se em mestre. Gosta de me tratar como se eu fosse uma pupila. Acha-se personagem de livro. Deixo, prima. Coitado. Já não é novo. Já não vai ter muito mais hipóteses de se armar. Tolero. Finjo. Finjo que aprendo, finjo que gosto. Coitado. E, volta e meia, imagine, na horinha do bem-bom põe-se com poesia. Não há saco. Mas tenho pena, finjo que gosto'. E olhava a janela, como se triste.

Depois continuou. 'Gosto é de meninos malandros, fogosos, que a gente não tem tempo nem de pensar, nem de soltar um ai'. Suspirou. 'Já viu, prima, eu a querer folgar e ele querendo que eu seja personagem de livro? Já imaginou?'

Sorri. Talvez alguma pena. Dele que não sabe que ela finge, dela que, com tanta beleza, não precisava de fingir.

Continuou. 'Mas não sei o que tenho, prima, parece que têm medo de mim. Parece que gostam mas depois ficam a medo, não sei se têm medo de não cumprir. Não sei o que há com os homens e comigo'

Depois tirou o soutien, sentou-se na minha cama. Disse-lhe 'Tapa o corpo, Dindinha, está frio'.

Tapou-se com a minha almofada. Mas teve um arrepio: 'A almofada está fria. Venha aqui me aquecer, prima.'


Sentei-me ao lado dela, na cama. Encostou-se a mim: 'Diz, prima, há alguma coisa de errado comigo?'.

Fiz-lhe uma festa no cabelo. 'Que errado, menina? Está tudo tão certo.'

Continuei, os meus dedos passando por entre os seus cabelos.

'Cheira bem o teu cabelo, Dindinha'.

Ela disse: 'Gosta? Cheire, prima, cheire.' 

Cheirei. Um perfume bom, morno. Carnal, inocente.

Entretanto, pegou nos meus colares de pérolas, e colocou-mos. Depois despiu-me o casaquinho de lã e pôs-se a brincar com os colares, frios, frios, fê-los escorregar ao longo da minha pele, fez-me arrepiar. Desmanchou-me, então, o cabelo. Foi buscar o lápis dos olhos, pôs-se de joelhos em cima da cama, pintou-me as pálpebras.  Depois disse: 'Quando eu for grande quero ser como a prima, misteriosa'. Olhou para mim: 'Tem muitos segredos, não tem, prima?'

E eu, olhando-a: 'Eu, Dindinha? Eu não, Dindinha.'

Mas ela teimou: 'Os seus olhos estão cheios de mistério. Atraem como abismos, prima'. 

Insisti: 'Que é isso, menina? Não tenho segredos.  Com cada coisa, Dindinha.'

'Diz que não mas deixe que lhe diga, prima: tem olhos de pecado, prima, tem mesmo'. Saltou de novo, foi buscar loção perfumada.

Disse: 'Mas deixe, prima, agora deite-se, esqueça o resto enquanto pensa no disfarce de amanhã. Já pensou? Poder fazer o que quiser sem ninguém saber quem é, já viu, prima...? Liberdade mais boa. Pense nisso, prima. Ou não pense em nada. Vou fazer-lhe uma massagem. Descontraia-se. Tem os músculos tão tensos, prima. Vai ver, prima, vai ver, as minhas mãos são gatos macios, tão cheias de mistérios como os seus olhos. Feche os olhos. Sinta. Deixe-se ir, prima.'

Deixei.


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Lá em cima era Una Preghiera - Elena Ballario

Aqui abaixo uma canção que não tem nada a ver.
Como é bom de ver, está aqui apenas porque é boa para o day after. Para despertar, quero eu dizer.

I kissed a girl - Kate Perry


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Este é o sexto episódio do folhetim Dindinha. Diria La Palice que vem no seguimento do quinto.
De cada um poderão ser alcançados os precedentes.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma gloriosa sexta-feira.

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terça-feira, fevereiro 21, 2017

Eu.
Sem Tom. Sem Dindinha.




Não me sai da cabeça. O dia todo a pensar nisto. Não o cheiro, não as mãos, não o olhar, não a voz, não os movimentos do corpo, não o toque da pele. Qualquer outra coisa. Não sei o quê. O dia todo. Tento recuperar algum fragmento mas não sei de que coisa. Rememoro as palavras, os gestos, os silêncios. Uma e outra vez.

Qualquer coisa me está a falhar. 

Tento descobrir o que em mim fez com que tudo fosse tão fácil. Alguma coisa foi mas não sei o quê.

Recordo o primeiro, o segundo, o terceiro dia. Que chave abriu, tão facilmente, a minha intimidade? Em que momento o meu corpo, antes de mim, reconheceu o que eu ainda não descobri?

Li um dia uma frase de Yvette Centeno: amor é quando dois corpos se reconhecem. Não sei porque essa frase aparece associada a isto que não me sai da cabeça. 

Dois corpos como dois cães. Corpos que se reconhecem.


Estive a dormir até há pouco. A cabeça desligou. Agora que acordei, a mesma estranha impressão. 

Dindinha ligou de tarde. Que eu fosse lá a casa, iam reunir-se para decidir aspectos finais. Gostava da minha opinião. Não quis. Disse-lhe que tinha um trabalho para concluir. Antes de se despedir, acrescentou: 'Não sei do estupor do Tom, não atende o telefone. Enviei-lhe um sms a dizer para vir cá a casa, e sabe o que ele respondeu, prima? Que não tinha tempo para babysitting'. Ela aborrecida e eu, não sei porquê, a achar normal. Qualquer coisa que me faz parecer a resposta expectável.

E, no entanto, em qualquer das três ocasiões, sempre o vi cortês, até galanteador. Porque é que a dissonância daquele desagradável sms não me choca não sei dizer. 

Há bocado, antes de mudar de roupa, hesitei. Pensei que ele poderia voltar, devia estar arranjada. Mas parece que adivinhei que ele não viria. Não veio. Não disse nada. E eu sinto que é normal ele não dizer nada. Mas parece que sinto que ele está a pensar em mim, talvez com vontade que eu lhe ligue. Não vou ligar. Eu queria que ele ligasse mas sei que não vai ligar. Os corpos como cães, aguardando.

...

E agora, ao escrever isto e ao pensar que ele facilmente obteria o meu endereço de mail tal como eu também facilmente obteria o dele, senti um calafrio. De repente, parece que se escavou um perigoso abismo sob os meus pés.

De repente soube.

Um estremecimento íntimo, um frémito no mais interior do meu corpo.

Aquela estranha impressão de que o conhecia, de que o conhecia muito bem, muito, muito bem, materializou-se: sei.

Sei quem tu és, Tom. Meu Deus, se sei. Meu Deus, sei quem tu és. Sei. Que horror. Que coisa mais estranha esta. Não tenho dúvida. E tu também sabes, Tom? Tal como eu, tu também sabes? Sabes e disfarçaste? Ou ainda não descobriste? Ai Tom, Tom, que coisa esta. Chamas-te então Tomé? Ou também não?

Ah, como afinal te conheço mesmo tão bem. E como tu me conheces tão bem. Tão bem que me conheces. Tão bem.

Mas saberás tu qual a mulher que ontem tiveste nos teus braços? Terá o teu corpo também reconhecido o meu?


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Este é o quinto episódio do folhetim 'Dindinha'. O episódio anterior pode ser visto aqui e de lá poderá recuar até aos restantes (isto se gostar de ler de trás para a frente porque, se gostar de ler pela ordem natural dos factos, deverá ler de baixo para cima)

As fotografias foram feitas rente ao rio. 


La Rêveuse é interpretada por Jordi Savall.

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Se preferir ler sobre 'Coisas da mente', então, é mais simples: é apenas descer.

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segunda-feira, fevereiro 20, 2017

Tom e eu.
Sem Dindinha


Por muito que confie em quem me lê e por muito que goste de escrever, há coisas de que não poderei aqui falar. São assuntos privados, meus.

Para além disso, talvez porque sou, de formação, uma pessoa das ciências exactas com um forte pendor racional e uma irracional fixação nos preceitos da lógica, tendo a relativizar ou, mesmo, a ignorar os factos que não consigo compreender.

Portanto, desculpar-me-ão por passar por sobre a inexplicável noite de ontem e vos contar apenas parte do meu dia de hoje. Aliás, no post abaixo, já, em parte, dele vos dei conta.

Não me levantei muito cedo. Ao domingo gosto de preguiçar no calor da cama. Depois fiz uma caminhada junto ao mar. Fiz fotografias.


Depois, fui a uma livraria muito especial onde encontrei livros não mediáticos. Vim para casa ao fim da tarde, feliz com as minhas aquisições e com o dia tranquilo que estava a ter. Tratei da casa, da roupa, do jantar. Comi sopa acabada de fazer, pêra abacate com queijo fresco de cabra e mel, dióspiro com queijo curado de cabra.

Depois, vim para a sala com uma chávena de chá. Misturei erva-príncipe com lúcia-lima. Liguei o aquecedor a óleo aqui ao meu lado. Passei as fotografias para o computador. Li algumas páginas de alguns livros. Escrevi o post que poderão ver logo a seguir a este. E adormeci.

E estava a dormir quando ouvi o toque da campainha. O meu coração disparou de imediato. Alterada, de passagem vi-me ao espelho do corredor. Perguntei quem era. Ouvi 'O primo'. O meu coração quase saltou. Enervada. Tentei sorrir para parecer natural.

Presumi que vinham os dois. Quando abri a porta apenas vi Tomé. Antes que eu perguntasse alguma coisa, disse-me 'Vim sozinho. Fiquei a pensar que ontem fui indelicado. Posso...?'. Desviei-me da entrada, deixei-o passar.

'Indelicado?'.

'Sim, ontem vim visitá-la pela primeira vez e não lhe trouxe um presente'.

'Disparate', disse eu.

Estendeu-me um saco de plástico com um pequeno embrulho.

'Que ideia... para quê dar-se ao trabalho?', disse eu, admirada mas, amiga que sou de receber presentes, curiosa.

Fomos andando até à sala. Fiz-lhe um gesto para que se sentasse. Sentei-me num sofá e ele noutro, à minha frente. Abri. Era um pisa-papéis de vidro, muito bonito, com uma flor lá dentro. Devo ter aberto a boca, de espanto.

Vendo a minha reacção, perguntou 'O que foi...? Não me diga que já tem...'.

Respondi: 'Pode não acreditar mas há que tempos que ando a namorá-lo. Acho-o lindo. Mas, de cada vez que estava prestes a ceder à tentação, pensava que era dispensavel'.

Ele sorriu: 'E é. E fico contente que goste. Aliás, sabia que gostava'.

Olhei para ele, admirada: 'Adivinhou?'

E ele: 'Não. Já a vi algumas vezes lá, a olhar para ele'.

O meu coração disparou de novo. Assustada. 'O quê? Que conversa disparatada é essa?'.

Ele explicou: 'Há tempos, estava eu lá com a Fred, eu aos livros, ela a ver lápis e apara-lápis, vimo-la a si. A Fred escondeu-se, não queria que nos visse. Mas eu fiquei a vê-la. Depois disso já a vi lá algumas vezes. De todas as vezes, vi-a a namorar esta peça'.

Fiquei sem saber o que dizer. Depois de uns instantes disse: 'Desagrada-me isso. Parece que estive a ser espiada.'

Ele desvalorizou: 'Percebo. Mas se a Fred não queria que a prima soubesse, que ia eu fazer?'.

Depois levantou-se. 'Hoje não pergunta se quero tomar alguma coisa?'. Levantei-me também.

'Não. Tenho vontade de pô-lo porta fora'.

Ele fingiu-se de repreendido, 'Quanta violência, prima...! '.

Depois pegou na minha mão, levou-a quase até ao seu rosto, como que num delicado beija-mão. 'Acho que não fiz nada de mal mas, se acha que sim, Senhora, aceite as desculpas deste seu servo. E dê-me de beber, Senhora, que uma pinga de água não se nega a um pobre caminheiro'.

Respirei fundo, tentei sossegar o coração. 'E bebe o quê?'.

Ele sorriu 'Quanta secura, Senhora, e eu tão sequioso. Dê-me o que quiser que eu lhe agradecerei.'.

Fiquei a pensar por um instante. Depois, testando-o: 'Nikka?'.

Olhou-me admirado. 'Nikka, Senhora...? Surpreende-me. Mas muito bem. Nikka'.

Fui lá dentro e voltei com dois copos. Trouxe também um pacote de bolachas de chocolate preto e gengibre. Levantou o copo e eu levantei também. Não disse nada e eu também não. Depois bebeu um vagoroso gole, fechou os olhos, o prazer banhou-lhe o rosto. Eu fiz o mesmo.

A seguir, reparando nos livros que eu tinha comprado, levantou-se e veio sentar-se ao meu lado para os ver, um por um. Tentando que ele não ouvisse as batidas do meu coração, disse-lhe 'Para ver se consigo perdoar-lhe o ter-me andado a espiar enquanto eu pensava que estava a namorar o pisa-papéis sem qualquer testemunha, leia um desses poemas.'.

Ele disse: 'Pelo seu perdão, Senhora, cumpro qualquer ordem'. E leu.


No fim, disse-me: 'De olhos fechados, não lhe soube melhor?'. Bebi mais um gole do Nikka e, com a cabeça, disse que sim. 

Então perguntei-lhe o que, desde que ele entrara, não me saía da cabeça: 'A Frederica sabe que está aqui?'.

Ele chegou-se ligeiramente para trás, notoriamente o assunto não lhe era querido, e respondeu secamente: 'Não lhe disse. Não costumo dizer-lhe tudo o que faço. Algum problema com isso?'.

Limitei-me a encolher os ombros. A questão é que não sabia, nem sei, o que pensar de tudo isto.

Depois perguntou-me: 'Não se ouve música nesta casa?'.

Eu apontei-lhe as estantes dos CDs e disse: 'Mas agora ouço no computador. Também quer que eu escolha?'.

E ele 'Não, agora escolho eu'.

E escolheu. Disfarcei a vontade de rir. Atrevido, mesmo.


Depois disse-me, 'Feche os olhos'. Fechei. Fiquei a ouvir a música assim, de olhos fechados, sentindo o seu cheiro e o seu calor a latejarem bem perto de mim.

Pouco depois, senti-o a despir-me. Não ofereci resistência.


Apenas lhe perguntei: 'Aqui, professor?'.

Ele beijou-me um ombro, e os lábios estavam quentes, a barba a roçar-me a pele, depois beijou-me a nuca, eu arrepiada. Respondeu: 'Por mim pode ser aqui, sim. Mas como aluno'.

Depois de uma pausa durante a qual me beijou o colo, acrescentou em voz muito baixa, quase como se confidenciasse um segredo: 'Ouvi dizer que é uma boa professora, prima'. 

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Este é o 4º episódio do folhetim 'Dindinha'. 
O anterior pode ser lido aqui e o link para os anteriores pode ser encontado lá.

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domingo, fevereiro 19, 2017

Fred, Dindinha, Tom e eu



Nunca mais aparecia. Acabei por lhe ligar. Atendeu sonolenta. 'Sim...?'. ‘Então? Afinal não vens?’. Silêncio. Percebi que nem se lembrava. ‘Ah, pois foi, disse que ia aí. Mas adormeci. Outro dia’.

Fiquei irritada. Ali eu à espera e nada. Até tinha ido comprar um pão-de-deus porque sei que ela os adora e no fim nem ai nem ui. Isto antes de ontem a noite.

Hoje, tinha eu chegado de uma caminhada na praia e estava a preparar-me para vir aqui escrever qualquer coisa, já com uma roupa leve de estar em casa, desmaquilhada, despenteada, tocam à porta. Pelo intercomunicador ouço ‘Dindinha’. Quando abro a porta, fico sem pinga de sangue: era ela e o professor. E eu naqueles despreparos. Ele, vendo a minha atrapalhação, diz: ‘Não é a melhor altura…?’ mas já ela tinha entrado.

Fiz um gesto que entrasse e fui atrás, tentando compor minimamente o cabelo. Sentámo-nos na sala, perguntei se queriam tomar alguma coisa. Não quiseram. Dindinha disse: ‘Achei que devia apresentar melhor o Tomé’. Ele, com ar neutro mas onde detectei algum atrevimento, disse, ‘E eu achei que devia conhecer melhor a prima’. Até me senti corar.

Dindinha vinha de blusão de pele, calças largas, ténis. Depois despiu o blusão. Tinha uma camisa branca de renda, decotada. Ele pediu autorização e despiu também o blusão. 

Dindinha disse: ‘O Tom foi meu professor de História de Arte e a coisa não correu bem'. Ele sorriu ao de leve, ‘Eu não diria isso’. Ela continuou ‘Chumbou-me, continuo com a cadeira pendurada. E agora está a enquadrar este projecto. E está a dar-me aulas particulares, a ver se consigo aprender alguma coisa’. Estava muito séria. Ele fez um ar professoral, ‘Acho que temos feito alguns progressos’. Olhou para ela, cúmplice, depois para mim ‘Mas ainda temos pela frente um longo caminho a percorrer’. Embora o tom fosse sério, pareceu-me perceber ali, outra vez, algum descaramento.

Sem saber como intervir e sem perceber bem os contornos daquela conversa e, sobretudo, preocupada com a forma como estava vestida e desarranjada, senti-me a ficar cada vez com menos naturalidade.

Entretanto, Tomé tinha-se levantado e circulava pelas estantes. Depois, pegando num livro, aproximou-se de mim e disse: ‘A verdade é que ainda não sei como se chama’.

Dindinha e eu respondemos ao mesmo tempo: ‘Diana’.

Ele sorriu ao de leve, como se de uma observação fugaz se tratasse: ‘Prometedor, o nome’. Senti-me corar de novo. Se estava de namoro com Dindinha, que atrevimento era aquele que parecia estar com vontade de se manifestar? Fingi que não ouvi. Mas ele olhou para trás, com ar de quem sabia que eu tinha percebido o tom de malícia. Baixei os olhos, não tanto atrapalhada mas, mais, surpreendida.

Mas já ele prosseguia como se nada fosse: ‘Fred, bem que me tinhas dito que a prima era dada a livros’. E ela ‘Pois não disse? Acho que muitos nem é para ler’. 

‘Ah, uma consumista…'. Sentindo-me estupidamente tímida, disse: 'Prefiro bibliófila.'. Ele sorriu, 'Sim, sim. Desculpe-se'. Depois prossegiu, 'Mas se a prima não lê, lemos nós por ela’.

Pegou num livro de Ronsard que estava ao meu lado, procurou um certo poema e disse: ‘Vá, Fred, mostre que está a fazer progressos. Leia’

Dindinha descalçou-se, cruzou as pernas sobre a cadeira, bela no seu impudor. E leu:


Vamos, meu bem, a ver se a rosa
que esta manhã, ao sol, airosa,
a sua roupa abriu vermelha 
(...)
Pois se me credes, vós, meu bem,
enquanto a idade em flor vos tem
nessas primícias de verdura,
colhei, colhei a mocidade
que como à flor a velhice há-de
turvar a vossa formosura.

Enquanto ela lia, aparentemente sem perceber bem a escolha de Tomé, ele não tirou os olhos de mim.

No fim, ela perguntou-lhe: ‘Então Tom? Foi bom?’.

Ele passou-me a pergunta: ‘O que achou, prima?’. Um pouco incomodada com a situação, disse apenas: ‘Gostei, claro que sim. Mas talvez gostasse de ouvir algum silêncio entre as palavras'. E, de repente, apeteceu-me ser eu. 'Talvez o teu professor queira agora mostrar os seus dotes'. 

Pela forma como abriu os olhos, percebi a surpresa, 'Ah...'. Mas, de imediato, reagiu. Veio sentar-se ao meu lado e disse: ‘Preste atenção, Fred, veja como me vou esforçar por agradar à prima.’ Depois de uma leve pausa em que parecia estar a lembrar-se do que ia dizer, rectificou: ‘Agradar na leitura, claro’.

Dindinha levantou-se e veio sentar-se ao meu lado, cabeça encostada no meu ombro. Dindinha de um lado, Tomé de outro. E então, voz lenta, uma voz muito cava, ele disse, de cor:


Encostada a mim, Dindinha tinha deixado que a camisa lhe descaísse, os seios praticamente à vista. Do outro lado, muito próximo de mim, Tomé ora fixava o seio mais exposto dela, ora fechava os olhos, ora me olhava nos olhos. A voz macia, macia.

Quando acabou, passou o braço pela minha frente, quase me tocando, e com uma mão também muito lenta, compôs a camisa de Dindinha. Depois olhou para mim e perguntou-me: 'Então, prima, gostou dos meus silêncios... ?'. Perturbada, hesitei. Mas logo ele acrescentou: 'Para a próxima, prima, experimente fechar os olhos'. Senti um arrepio a percorrer a minha pele. Um arrepio silencioso, muito lento.

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Este episódio (o 3º) de Dindinha, que acabou de ser escrito, vem na sequência deste que se seguiu a este.

A tradução do poema 'Mignonne, allons voir si la rose' de Ronsard é de Vasco Graça Moura. A música lá em cima acompanha o filme Lolita e a leitura de Jeremy Irons refere-se ao livro Lolita de Nabokov.

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sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Dindinha afinal também é Fred


Com esforço, consegui almoçar numa esplanada à beira do rio. O tempo hoje esteve outro. Primaverou, aqueceu-se o ar, limpou-se o azul do céu.



Como não tinha companhia nem me apeteceu procurá-la, levei o livro que tinha no carro, 'Menina a caminho', escrita boa. Nestas condições, a minha vontade de preencher o tempo morto com leitura é contrariada pelo facto de me custar estar ao sol sem óculos escuros, especialmente junto ao rio em que a lâmina de água reflecte a luz do sol. Como acontece que sou levemente míope, os óculos são graduados para ver bem ao longe, o que significa que, com eles postos, fico a ver mal ao perto. E estava eu, justamente, a tentar gerir esta contradição quando me pareceu ouvir uma voz conhecida.

Olhei. Era um ruidoso grupo de jovens. Conversavam animadamente, riam, bebiam, fumavam, de vez em quando alguns fotografavam-se. Não reconheci ninguém. No entanto, de quando em vez, aquela voz familiar. Como, para conseguir ler, tinha optado por não usar os óculos escuros também não via com nitidez os rostos.

Passado um bocado, senti uma mão no ombro e alguém que se baixava para me beijar: ‘Prima… aqui?’ Era Dindinha.


Com uns jeans desbotados e meio rotos, com peitilho à jardineiro mas com uma alça caída, uma blusa larga, ténis, um boné com pala para trás e óculos escuros, estava quase irreconhecível. Lembrei-me, ‘Pois é… a tua escola até nem é muito longe daqui…’ Ela confirmou, acrescentando que, geralmente, este grupo de amigos ia para ali para discutirem os trabalhos, para falarem de cenas, para curtirem a paisagem. E disse: ‘Vem, prima, não esteja aí sozinha, junte-se a nós, venha’. Peguei nas minhas coisas e fui. Um rapaz apressou-se logo a ir buscar uma cadeira e a arranjar-me espaço à mesa.

E então, para minha surpresa, conheci uma outra Dindinha. Percebi que estavam a idealizar uma revista digital. Cada um ia dando ideias, umas muito à frente, outras muito terra a terra, outras banais. Dindinha parecia ter na mão o fio condutor da conversa e a autoridade, reconhecida pelos outros, para decidir quais as que valia apena aprofundar, quais as que deviam cair de imediato. O seu pragmatismo e assertividade deixaram-me atónita. Até a voz era outra. Julga-se conhecer muito bem uma pessoa e depois chega um dia em que percebemos que não conhecemos coisa nenhuma. 

Algum tempo depois, aproximou-se da mesa um homem magro, grisalho, barba, blusão, capacete no braço. Puxou de uma cadeira, sentou-se. Depois, reparando em mim, olhou-me com interrogação e de seguida para Dindinha que respondeu: ‘É aquela prima de que lhe falei’. Ele sorriu-me, ‘Ah, a célebre prima’. Mais admirada fiquei: ‘A minha fama precede-me, é…?’. Ela completou as apresentações: ‘Prima, é o professor Tomé. É também o responsável pelo departamento editorial da escola e está a acompanhar este projecto.’ Ele acrescentou ‘A Fred diz muitas vezes que a prima é que era, que devia ir buscá-la para gerir o projecto, para arranjar financiamentos, para negociar com fornecedores’. Fred? Então, na escola, ela é Fred? Mas limitei-me a dizer ‘Pois. Isso não sei. Mas, se for preciso alguma coisa, digam que não por importarei nada de ver se posso ser útil’. E a conversa entre os jovens prosseguiu, Dindinha impondo-se, o professor Tomé deixando uma ou outra achega. 

Passado um bocado, vendo as horas, reparei que era tarde, disse que tinha que me ir embora. Levantei-me. Dindinha levantou-se também, deu-me um beijo. Afável mas distante, outra. Já no carro, quando estava a preparar-me para arrancar, reparei que o professor também estava a preparar-se para arrancar. Dindinha estava junto a ele. E, para meu espanto, apesar da grande diferença de idades e de, até momentos antes, não ter reparado em qualquer interesse mútuo, vi que parecia haver ali alguma intimidade. Então, para ainda meu maior espanto, ele já com o capacete posto, ela debruçou-se e beijou-o na boca. Depois, com naturalidade, decidida, voltou para a mesa onde estavam os colegas. Não era Dindinha, era Fred. 

De tarde não pensei noutra coisa. Como pode alguém ser uma coisa e, noutro contexto, parecer completamente outra? E quem era aquele Tomé de quem ela nunca me tinha falado? 

Estava eu nisto, toca o telemóvel. Era ela. 'Prima. Posso passar mais logo na sua casa?'. Pareceu-me que estava a chorar. 'Dindinha, o que é isso? A chorar?'. Respondeu apenas: 'Passo depois de jantar'. E desligou o telefone.

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Sobre o lançamento da certamente suculenta obra do grande obrador Aníbal queiram, por favor, espreitar já aqui abaixo.

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quarta-feira, fevereiro 15, 2017

A melancolia de Dindinha na dobra do Dia dos Namorados





Dindinha finge que chora, se achega, encosta a cabeça no meu ombro.

Diz: Prima, ninguém quis saber de mim hoje, foi dia dos namorados e nenhum quis se arrimar a mim.

Ponho-me a rir, Deixa disso, Dindinha, bonita como tu és, logo, logo vão andar de roda de ti, cheirando tua saia.

Quem dera, prima, quem dera. Tomei banho em água com pétala de rosa, depois pedi ao Zezinho que pusesse creme em todo o corpo e ele caprichou, cada refego, cada dobra, a pele toda macia, macia, macia, prima. Não quer ver?

     Não, Dindinha, deixa, acredito.

Mas, prima, confira. Eu dispo a blusa. Espere. Já despi, prima, veja.

     Oh Dindinha, para que é isso? Eu acredito.

Mas veja, prima, ponha a mão aqui na maminha, veja, veja, prima, a macieza.

Pega em minha mão e leva-a a ver que o Zezinho caprichou na espalhação do creme.

     Já vi, Dindinha, agora vista a blusa. Já vi.

Mas, prima, veja aqui o biquinho. Não parece botãozinho de flor, bom para passar linguinha?

     Tenha mas é tento na língua, menina, isso é lá coisa que se diga?

Esconde o rosto na dobra do braço, depois encosta-se à porta, finge que tem vergonha. Dindinha é moça melancólica. Desdobra a trança, solta o cabelo. Está triste.

Lastima-se: Veja, prima, foi dia dos namorados e nem uma rosinha alguém deu para mim. Nem bombom. Sabe que eu sonhei.

     Foi? Com quê?

Sonhei que vinha um homem grandão, morenão, barbudo, e batia na porta e eu ia abrir. E ele perguntava: 'Foi daqui que pediram um bombom entregue na boquinha?' E eu dizia que sim. E ele dizia: 'Mas tenho que tirar a camisola e a menina também, são ordens da casa'. E eu tirava e ele também e então ele dizia, 'Agora fecha os olhinhos porque a transacção tem que ser feita de olhinhos fechados'. E eu fechava e ele deixava um bombom na minha boca. 

     Foi um sonho doce, Dindinha.

Ah pois foi, prima. Mas o homem do bombom desapareceu e não voltou de verdade. E agora estou aqui triste, sem namorado que sinta a minha pele macia, a minha língua que ainda sabe a chocolate. Faço agora o quê, prima?

     Olha Dindinha, não pense mais nisso. O que for soará.

Oh prima, sempre com ensinamento distante. Eu queria era um namorado aqui e agora vem a prima com filosofia.

     Ai Dindinha, que impaciência é essa, menina?

Oh prima, é muita decepção, muita, muita. Veja, prima, logo que Zezinho saíu, apareceu Roninho para ver se eu tava precisando de algum nada e eu disse: 'Ah que veio na hora certa Roninho. Estou aqui para pôr uma eau de toilette e não sei bem como'. E Roninho disse: 'Vai Didinha, para não ficar muito forte faz assim: vai buscar um lencinho'. E eu, 'Oi Roninho, lencinho...? Mas onde é que eu tenho lencinho?' E ele, 'Qualquer coisa que dê para a gente depois passar no seu corpo'. E eu disse: 'Cuequinha de seda pode, Roninho?' E ele disse, 'Vai lá buscar Dindinha'. Fui. Ele disse: 'Dindinha... que cuequinha macia.' Então ele pôs a eau de toilette na cuequinha e disse: 'Deita aí na cama, Dindinha'. Deitei. Então ele passeou a cuequinha pelo meu corpo. E, no fim, eu disse, 'Agora cheira, Roninho'. E ele cheirou-me toda, toda, por todo o sítio. E disse, 'Cheira bem, Dindinha'. Mas logo tocou o telefone e Roninho disse 'Não leve a mal, Dindinha. Tenho que ir, a minha mulher lembrou que tenho que ir buscar o menino ao colégio'. E foi, prima. E foi. Fiquei ali largada, meu corpo exalando perfume de desejo, minha pele toda sedenta. E ele se foi, prima. Ai de mim.



      Deixa, Dindinha, mas ao menos tua pele ficou macia e perfumada.

Pois, prima, mas para quê isso tudo se não ganhei nenhum namorado, se agora a noite está caindo e eu aqui sem ninguém que venha passar a mão na minha pele ou venha cheirar meu corpo? Já viu meu destino, prima? Já viu minha solidão?
     Ai Dindinha, que drama, menina. E escuta... você acha que namorado é para isso que serve, menina?

E não é, prima, e não é? 

     Não, Dindinha, namorado é também para dizer um poeminha no ouvido, passar o braço sobre o ombro, olhar o céu em silêncio, segurar a mão enquanto faz jura de amor.

Ai prima que lá vem de novo com poesia. 

     Mas oh Dindinha, só prosa, só prosa...?

Sim, prima, eu quero é substantivo bem definido, verbo bem afirmado, nada de reticência, nada de adjectivo silencioso. Quero grito, prima, quero palmada, beijo de língua, corpo transado, abraço suado. Quero namorado homem, prima, nada de santo, dispenso valentim, dispenso jura, dispenso metáfora, dispenso suspiro. Dispenso até prosa, prima. Quero é homem, prima. Mas primeiro, prima, primeiro me ensina a ser mulher.


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Lá em cima a música é "Minha Namorada" - ( Maria Creuza/Vinicius de Moraes/Toquinho )

As fotografias pertencem ao livro 'Nues. Femmes Lascives', da L'Oeil Curieux.


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A história da Dindinha acabou de nascer. 

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E queiram, por favor, descer para verem como foi o meu dia de S. Valentim

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