Música, por favor
Melody Gardot - Love me like a river does
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Olho-me ao espelho com atenção. Esta sou eu. Olho-me nos olhos. Tento captar o meu olhar mas não consigo, o meu olhar parece não querer deter-se nos olhos que me olham. Quase sinto em mim alguma timidez.
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Vénus ao espelho - Ticiano Vecellio (1473/1490 - 1576) |
O espelho devolve-me a imagem de uma mulher bonita, de uma beleza franca. Penso: sou desejável. Mas, depois, um súbito pudor faz-me cobrir os seios. Olho de novo. Subo um pouco a mão que descobre um dos seios. São pequenos, macios. Olho o espelho e quase sorrio. O meu cabelo já está entretecido, pronto para me apresentar ao meu amor.
A nudez branca parece-me impúdica, assim ao espelho. Cubro-me, ao de leve, com a capa macia, o veludo é tão macio e a orla bordada, tão bonita. Coloco as pulseiras. São fundamentais, quando me despir não parecerei tão nua.
Nesta cama, sobre esta capa macia, gozarei mais logo com o meu amor. Quero ver-me como ele me verá.
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Vénus ao espelho - Peter Paul Rubens (1577 - 1640) |
Nasci talvez de uma concha, sou feita talvez de espuma, não sei. Os meus cabelos são louros, longos, leves, perfumados, e eu deixo-os cair sobre os ombros. O meu corpo é farto, rijo, feito para ser acariciado, carnes macias que devem estar entre mãos. Desperto amor em quem me vê. O meu rosto tem as cores de quem tem saúde e o meu olhar olha-me, quase a desafiar-me. Mulher fêmea, sem dúvida. Mulher de carnes férteis, seara fértil, macia.
Cubro-me com este fino cendal, branco, macio. Ignoro o olhar de quem me quer vestir, agora sou apenas eu aqui, eu e eu. Quero ver-me, quero ver o que os olhos do meu amor vão ver. Quero ver-me para perceber como será o meu olhar quando o olhar do meu amor estiver preso ao meu.
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Vénus ao espelho - Diego Velásquez (1599 - 1660) |
Deito-me agora sobre a chaise longue que, antes cobri com sedas naturais, marfim, antracite, deito-me e eu sou agora uma outra maja desnuda. Pensativa, olho-me no espelho. Esta sou eu. A minha anca eleva-se, e eu sei que sou desejável, farta, macia, uma mulher livre dentro de um corpo livre. Afasto de mim os véus, as capas, as vestes. Esta sou eu, nua, descoberta, eu. Olho-me tranquila. A mulher no espelho olha para mim. Entendemo-nos. Sem censuras, sem pudores, ela, a mulher nua no espelho e eu que olho a mulher que os homens desejam.
Poderia dizer que os homens que me amaram, amaram sempre demais. Mas não digo. Eu é que sempre fiz com que me amassem demais. Eu a mulher amante, amada.
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After Velásquez in my Apartment - Helmut Newton (1920 - 2004) |
A cama em que agora me deito é outra, pele acolchoada e negra, armação metálica, linhas direitas, quase austera mas larga, confortável. O leito está no meio de uma sala vazia e as janelas estão abertas ao exterior. Por estas janelas abertas entra a luz do dia. Talvez quem, dos outros prédios, se chegue à janela, me consiga ver. Não faz mal.
Olho-me ao espelho. Esta sou eu. Sensual. Não disfarço. Para quê disfarçar?, esta sou eu. Os meus lábios quase se abrem num breve sorriso. Este é o esboço de sorriso que deixa doidos aqueles que gostam de ser seduzidos. Este é o assomo de malícia que se disfarça de inocência para melhor iludir, para melhor seduzir.
Penso no que Leanor, formosa e segura, disse. Num tempo de cansaço e de tecnologias, num tempo em que todos sabem tudo de todos, mas num tempo em que as pessoas mal se vêem, mal se tocam, vital a linguagem do corpo, a linguagem da sensualidade que brota dos corpos cingidos na relva, à luz e ao calor do sol: transfiguração do medo, na esperança deste tempo.
Assim é. Cingidos umas vezes na relva, outras cingidos numa cama que, aqui no meio desta sala vazia, será um altar, o altar do amor, do desejo, dos prazeres do amor, transfiguremos o medo na esperança destes tempos.
Daqui a pouco vou cobrir-me, vou cobrir-me para que o meu amor me descubra, quero ocultar-me para o ofuscar, como Natália me ensinou num Outubro, quero enleá-lo para melhor o deslumbrar. Jogos de sedução, jogos de amor, premissas de um desejo que se quer demorado, com um final longo como se diz dos vinhos encorpados, sábios.
Junto a mim, outra mulher segura o espelho e poderia, alguém que a visse, inventar histórias. Mas não me importo. Que seja o meu inocente filho, a minha criada de vestir, uma amiga, uma deusa, um ser imaginário que me impele ao sexo e ao amor, tanto faz. Alguém tinha que segurar no espelho. Agora estou apenas a preparar-me, a conhecer-me, a reconhecer-me, enquanto espero. Daqui a pouco, por esta porta entrará o meu amor e eles sairão. Ficarei só eu e ele. Agora estou à sua espera e eu estou calma, descansada, liberta, uma mulher livre que nasceu para viver o amor.
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Notas
* Designei as pinturas como 'Vénus ao espelho' mas encontrei também referências com os nomes 'Vénus e o espelho' ou 'Vénus e Cupido' ou outras.
* A frase '
os homens que me amaram, amaram sempre demais' pertence a um poema de Alice Vieira.
* A Leanor a que me refiro no texto é a Leitora 'Leanor, formosa e segura' que escreve de uma forma que me agrada imenso e que, no outro dia, num
comentário no meu Ginjal e Lisboa escreveu aquela frase, tendo-me autorizar a usá-la aqui. A ela os meus muito sinceros agradecimentos.
* A Natália a que me refiro é, obviamente Natália Correia no seu poema 'De amor nada mais me resta que um Outubro'.
* Aos puristas de tudo o que mexe e que apenas conseguem fazer leituras literais, faço um alerta que me pareceria escusado mas que, just in case, aqui fica: o que acima escrevi é ficção e não um registo autobiográfico (não costumo ter ninguém a segurar-me no espelho), ou alguma recensão, apontamento histórico ou o que quer que seja que pretenda ter rigor de qualquer espécie. No entanto, as legendas apresentam o nome correcto dos autores das pinturas e da fotografia e as datas correctas em que viveram (pelo menos assim o espero) - ... e aqui, com vossa licença, para que confirmem que, de facto, me estou a rir, vou ter que incluir um smile (um smile no feminino, é claro).
Tenham, meus Caros leitores, um belo sábado. Sorriam à vida para que a vida vos sorria a vós.