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segunda-feira, fevereiro 17, 2020

O teu destino deveria ter passado neste porto
onde tudo se torna impessoal e livre
onde tudo é divino como convém ao real




Diz Heraclito de Éfeso: 
"Não compreendem que o que se opõe se reúne em si mesmo: harmonia de tensões opostas, como a do arco e da lira"
Esta "harmonia de tensões opostas", bela como a do arco e da lira, habita toda a grande arte grega: chaos e kosmos, natureza e geometria, Apolo e Dionysos, tumulto e medida.



Os troncos das árvores doem-me como se fossem os meus ombros
Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal
Dói-me o luar -- branco pano que se rasga


Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.


                                                  Faz da tua vida em frente à luz
                                                  Um lúcido terraço exacto e branco,
                                                                 Docemente cortado
                                                                 Pelo rio das noites.

                                                   Alheio o passo em tão perdida estrada
                                                   Vive, sem seres ele, o teu destino.
                                                                 Inflexível assiste
                                                                 À tua própria ausência.

Murmurei o teu nome
O teu ambíguo nome

Segundo a lei de máscara do teu nome

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Poemas ou excertos de poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen em 'O nu na Antiguidade Clássica e Antologia de Poemas sobre a Grécia e Roma': a primeira parte, em prosa, é o início de 'Os Kouroi'. O primeiro poema é 'Pã', o segundo é 'Penélope', o terceiro é 'Homenagem a Ricardo Reis (V)', as três últimas linhas fazem parte de 'Em Hydra, evocando Fernando Pessoa' bem como o título deste post.

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A todos desejo uma boa semana

terça-feira, novembro 12, 2019

Sopa da pedra com um crime napoleónico e um cisne à procura de uma Leda à mistura





Recomeça a semana e só de pensar no programinha de festas que aí vem já me apetece evadir-me para outros territórios, quiçá para o meio da serra, entre arvoredo e sons da terra e dos ventos, quiçá hibernar num mosteiro nas terras frias, entre granitos, uivos de lobos, voos de águias, cheiro de flor de laranjeiras num pátio onde há, a meio, uma fonte de pedra. 

A manhã foi muito ocupada e a tarde de hoje não foi das piores mas, mais adiante, uns gabinetes a seguir ao meu, a coisa esteve preta. Gritaria, discussões acesas. Fiz de conta que não estava a dar por nada e deixei-me estar na minha, resolvi o que tinha resolver, reuni-me com quem tive que me reunir. E fizemos todos de conta que o elefante não estava ali ao lado. 
Não sei porquê, nos últimos tempos parece que não há conversa em que alguém não fale num elefante no meio da sala. As salas de Lisboa a abarrotarem de tanto elefante, nunca se viu coisa assim. Portanto, por contágio, também digo. Já disse, aliás. 

A meio da tarde, um dos envolvidos na refrega veio, num ápice, ao meu gabinete, fechou a porta, meio a correr e meio em voz baixa relatou o forrobodó. Depois saíu, agitado, avisando que a coisa ia continuar. E continuou. Quando saí, desci ao mesmo tempo que um colega que também fez de conta que não tinha ouvido a berraria que se ouviu toda a santa tarde. Falámos normalmente, ele contou peripécias divertidas e rimos. Temos todos esta camada de indiferença em cima de nós que nos impede de nos importarmos com maçadas alheias. 

Quando entrei no carro, era de noite e estava muito frio e uma grande ventania. Ao abrir o porta-bagagens voou de lá um saco de papel que não faço ideia o que lá estava a fazer. E o meu cabelo andou pelos ares, levitando em todos os sentidos. Já no carro, reparei que as árvores tinham a ramagem na mesma, tal qual o meu cabelo mas em verde. E eu pensei que um dia havia de experimentar uma cabeleira a fingir de ramagem de árvore. Tentei perceber que árvores eram aquelas: creio que jacarandás mas ainda longe de estarem floridos. E pensei que uma cabeleira de jacarandá em flor também haveria de ser bonito.


Estreei um casaco lindo, lindo, feito pela minha mãe. Estava a guardá-lo para o estrear numa cena que aí vem mas hoje não resisti. É uma obra de arte. Cor, cor, cor, um gosto. Contei à minha mãe que o casaco estava a ser um sucesso e ela ficou toda contente. Disse-me que nunca tinha feito nada tão difícil, e não pelo ponto em si mas pela montagem das peças. Eu disse-lhe que era uma obra de geometria e ela concordou. E, então, pensei que assim vestida, com aquele casaquinho lindo, ficaria muito à maneira com uma cabeleira feita de jacarandás floridos.

E vinha a conduzir, a atravessar Lisboa à noite, a ver as árvores a esvoaçarem a sua densa cabeleira, a ouvir uma música boa, nestes pensamentos, quando me ocorreu que só me faltava ter ali ao lado alguém que me fosse a ler um livro. Ou, ao contrário, ir alguém ao volante e eu a ler. Um serviço de taxi mas em que o condutor fosse apreciador de leituras e fizesse o serviço a troco de que alguém, a seu lado, fosse a ler. Parece-me uma boa ideia. Car sharing para gente de boas leituras. 
Já contei algumas vezes, acho eu: quando faço viagens maiores com o meu marido, gosto de levar um livro e ir a ler em voz alta. E ele também gosta de ir a ouvir. Acho um momento bonito de cumplicidade. E não sei se diga cumplicidade ou intimidade.

Mas, nisto do car sharing, o difícil seria convergir no livro a ler. Tenho aqui ao meu lado 'A arte da brevidade', contos de Virginia Woolf. Deve ser bom de ler, de ouvir ler. 
Também não sei se já contei que fico sempre um bocado embaraçada, para não dizer desconfortável, quando alguém, achando que eu sou dada a livros ou cinema, vem, todo contente, perguntar-me se já li dado livro ou se já vi dado filme. Geralmente é sempre tudo na base do mainstream. Daqueles que toda a gente lê ou vê. E eu não. E fico sempre com a sensação que a pessoa fica na dúvida se serei mesmo dada a livros ou a filmes porque nunca li ou vi nada do que me perguntam. E, como digo que não, a pessoa começa a gabar o produto, e o elogio é rasgado, coisa do melhor. E dizem: tem que ler. Ou tem que ver. Vai ver que vai gostar. E eu sinto que fico especada, sem saber como reagir, apenas desejando que a pessoa pare com aquilo. E já tantas vezes isto me aconteceu e ainda não aprendi. Não sei como reagir: ser franca? Não pode ser, poderia parecer que estava a menorizar o gosto da pessoa. Ainda passaria por arrogante. Armar-me em fingida e dizer que sim, que vou seguir o conselho? Não sou capaz. Nestas ocasiões sinto sempre que tenho algumas limitações sociais. 
E isto vinha a propósito de quê? Nem sei.


Ah. Outra coisa.

Lembrei-me agora de uma notícia que li, uma coisa sinistra, sinistra. Mas tudo ali puxa para a comédia. Um filme sinistro mas de gargalhada. Oleg Sokolov, um russo, condecorado, figura ilustre da intelectualidade, investigador e historiador. Gostava de se vestir de Napoleão, o seu ídolo, o seu objecto de grande estudo. Sessenta e tal anos. Apaixonou-se por Anastasia, uma aluna de vinte e poucos, uma jovem linda, que até alinhou na fantasia e vestiu-se à maneira para acompanhar o Napoleão. Viviam juntos. Até que um dia, a semana passada, discutem. E a discussão acaba mal. Dá-lhe tiros. Mata-a. No dia seguinte, há uma festa em sua casa. Mostra-se na maior, entretém os convidados, a rapariga morta na sala ao lado. Não contente com isso, sem saber o que fazer, perturbado, no dia seguinte corta-a aos bocados. E aqui entra o meu espírito de curiosa encartada: como é que um tipo normal consegue cortar uma pessoa aos bocados? Falo por mim: para cortar um frango aos bocados, em especial se for dos grandes, do campo, tenho que fazer uma força.... Faria se fosse uma pessoa (ai, credo!, só de pensar...). Bem, muniu-se de uma serra que, mais tarde, foi encontrada cheia de sangue, em casa, ao pé da cabeça da Anastasia que, vá lá saber-se porquê, também foi separada do corpo. Um pesadelo. Mas, então, não contente com  a habilidade, meteu os braços da rapariga numa mochila, juntamente com a arma, e resolveu ir atirá-los a um rio gelado. Só que, como estava podre de bêbado, ao dar balanço para atirar a mochila, desequilibrou-se e caíu ele à água. Nisto, uma pessoa que passava viu a cena e pediu ajuda. Quando estavam a salvá-lo, descobriram uns braços dentro da mochila. Imagino o susto que apanharam. A sumidade, em estado de total perturbação, contou que tencionava a seguir ir suicidar-se em grande estilo, vestido de Napoleão. Uma maluqueira pegada. Pena é a jovem -- ainda por cima, transformou a paródia em tragédia.


Bem.

Estava agora aqui com uma ideia em mente mas este post está tão sopa de pedra que acho que não comporta bife do lombo, que a ideia tem a ver com um livro que aqui tenho sobre Al Berto. Mas nem pensar. Há que respeitar. E é que nem vinha a propósito.

[Nem vou reler nem tentar captar a essência do que estou para aqui a escrever. Sei que não faz sentido mas, se o comprovo, não posso fazer de conta que não percebo que deveria era apagar tudo e recomeçar. Mas recomeçar com cabeça, tronco e membros (ai, bolas, que agora até parece trocadilho com o triste fim da namorada do Napoleão)]

Portanto, adiante.

Que venham os cisnes e que, por via das dúvidas, as Ledas deste mundo cubram as suas partes mais íntimas. Não é por nada mas é que consta que.


E se há por aí algum empedernido que acha que os cisnes não têm feelings pois que ponha os olhos neste aqui em baixo, uma tendresse viral.

A insólita relação entre um cisne nada franquista e o seu cuidador no El Escorial


Bom, não sei se a poesia ou a mitologia têm cabidela neste contexto mas, qual pedra para rematar a sopa, desculpem que aqui traga Leda e o Cisne, uma cena que já por mais de uma vez me inspirou (por exemplo, aqui).

Este é que o Tom O'Bedlam, um dia que me dê boleia numa noite de Lisboa, os jacarandás em plena revoada, havia de me ler baixinho com esta sua voz grossa e rouca, quase ao ouvido (para me fazer arrepiar).


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As fotografias que usei neste post são de alguém de quem as más línguas poderiam dizer que não bate bem da bola. Mas eu não acho. Chama-se David LaChapelle. O Sì dolce è'l tormento de Monteverdi é muito bem capaz de estar aqui a destoar mas o que é que eu hei-de fazer?

Mil desculpas mas hoje não consigo responder aos comentários: é tarde e tenho que madrugar. Aliás, já devia era estar quase a levantar-me. Li todos, gostei de ler, agradeço. Mas já sabem que não consigo responder a despachar e agora não tenho mesmo tempo para delongas.

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E uma boa terça-feira. E tenham juizinho, ok?
Ponham os olhos aqui na je.

quinta-feira, agosto 30, 2018

Do lago saíram dois cisnes mas, afinal, o cisne negro não era um cisne:
era Leda


O homem estava à beira de um mar tranquilo como um lago. Era um homem grande que, numa quente tarde de verão, olhava o azul imenso. Olhar perdido nos veleiros, nas gaivotas, talvez nas memórias.

Até que viu o cisne. Ah... 




Fascinado, ficou preso à elegância com que ele deslizava sobre a subtil ondulação das águas. Um cisne branco passeava sob o olhar seduzido do homem que tinha chegado de terras longínquas. Seria guerreiro, o homem? Seria um navegador solitário?

Jamais o saberemos. Sabemos, apenas, que não mais conseguiu desviar o olhar do gracioso cisne que, à sua frente, o envolvia num bailado todo ele inocência e tentação.

Mais surpreso ficou o homem quando viu que havia um outro cisne, um cisne negro. Saídos das águas, sinuosamente ondulando pelo areal, deslocaram-se ambos até mais acima, até onde uma quase cama os esperava. 

Ao sol, o cisne branco e o cisne negro. Elegantes, belos. O cisne negro dado à leitura, o cisne branco apenas aos banhos de sol. 

Mas, olhando com atenção, poderia reparar-se no olhar pouco amigável do cisne branco. Talvez despeitado. Enquanto isso, o cisne negro, inocentemente entregue à leitura, não se apercebia dos riscos que corria. O cisne branco, balouçava-se e talvez não fosse apenas pela aragem: era um cisne ameaçador que esperava a oportunidade para atacar.


E, de repente, já não eram dois cisnes. Agora a mulher era Leda e o seu belo corpo preguiçava ao sol, e toda ela absorta, entregue às palavras, ao romance. A seu lado, o cisne desviava o olhar da escultural mulher que resplandecia ao sol. 

O tempo passou, entardeceu com vagar, a luz dourada e morna fazendo brilhar o maravilhoso ébano  da pele de Leda.

Terá adormecido, terá sonhado? Leda não saberá dizê-lo.

Num momento era um cisne que a olhava e não olhava e, no instante seguinte, ao despertar, já era um homem que se curvava sobre ela, a mão na sua coxa, palavras tentadoras, sorriso perigoso. 

Entre eles, o cisne silencioso baixava a cabeça. Talvez já fosse apenas um invólucro vazio, talvez se tivesse transformado no homem que tenta e é tentado por Leda.

A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.







sábado, novembro 25, 2017

Se a sorte te surgir quando menos esperares, be gentle, não vás estragar o momento... Ok?


Não é que esteja a dar-me para a filosofia. Sou lá eu disso. Muito menos a esta hora. Muito menos depois de várias centenas de quilómetros em cima. Filosofia só quando acordo às onze da manhã e tenho a cama já só para mim, eu atravessada, à larga, descansada, bem dormida, sem ralações em cima, sem quaisquer afazeres em carteira. E isto se puder ficar mais meia hora a preguiçar sem pressas para coisa alguma.

De costas posso parecer-me com ela. De frente, apenas nos atributos superiores.
E mais não digo.

Aí, sim, quando estou assim, dá-me para filosofar. Pena é que isso aconteça tão raramente que já nem me lembro de quando foi a última vez. 

O que se passa é que estou aqui reclinada, meio a dormir, um olho no burro e outro na Sils Maria. La Binoche, la femme sagrada. Kristen Stewart, la anti-diva. Cinema. Filme sem perseguições, tiros, ruído. Silêncios, bons textos, boas representações. Agora caminham na montanha, um carreiro sem árvores. Anoitece. Gostava de estar agora naquele carreiro. Deve cheirar a terra. Terre. Apenas as palavras habitando os caminhos da noite.


Enterneço-me. Não propriamente com o filme. Mémoires. Sweet memories. Palavras, jardins suspensos, poemas, mundos cruzados, acasos.

E, enquanto isto, enquanto divago, vou espreitando os mails, as notícias, as sugestões do youtube. 

E o youtube pensa isto de mim. Aparece-me com estes vídeos. O dos gnus com uma valente dose de burrice naqueles palitos e agora este, aqui abaixo, tão ternurento e tão verdadeiro. Quantas vezes não são os pequenos golpes de acaso que modelam a nossa vida? Com um gesto involuntário podemos afastar alguém do nosso caminho, com um irreflectido passo podemos mudar a rota do nosso destino. Com um olhar podemos enlouquecer a nossa vida, com uma palavra podemos fazer transbordar de sonho o resto dos nossos dias.

Filosofo de novo. Ou será que não? Será que dizer lugares comuns não é sinónimo de filosofar? Se calhar, não. 

Bem. Adelante.

O meu filho enviou-me um vídeo e escreveu apenas 'para o blog'. Mas gostaria de lhe juntar umas palavras e a esta hora já poucas me sobram. Fica, pois, para amanhã.

A verdade é que noite vai alta e ainda não espreitei a lua. Há pouco, na autoestrada, estava envolta em neblina, uma esbatida luz dourada num céu indefinido. Agora não sei. Talvez pudesse abrir  a janela para conferir. Mas quem me garante que, se abro a janela, o meu coração não vai sair por aí,  livre e louco, evadindo-se por entre as brumas?



Sketchy Blues


Some unlikely characters turn up to spread a smile across the face of a heartbroken man. Will they succeed?


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E queiram descer para mais um vídeo do Birdbox Studio

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domingo, outubro 16, 2016

A mitologia grega e a violência doméstica




O deus do Tempo mutilou o pai, mutilou Uranus, cortando-lhe as partes genitais, que caíram sobre a Terra sob a forma de uma chuva de sangue. Desse sangue de Uranus nasceram muitas divindades benévolas, nossas conhecidas, por exemplo, as Ninfas ou as Oceânides. Mas nasceram também umas figuras temíveis, chamadas Erínias, as divindades que vingam a morte entre familiares; alimentando-se do sangue vertido, pedem mais. Ora, como o correr do sangue entre familiares não conhece sossego entre os mortais, as Erínias não têm mãos a medir.

Um dia, elas chegam a uma família, mercê de um crime que faz parte de um dos casos assinalados por Aristóteles na Poética como aqueles de que tratam as tragédias, a saber, o matricídio. Por sugestão de sua irmã Electra, Orestes mata a mãe, que vivia, desde a partida de Agamémnon para a guerra de Tróia, com Égisto, primo direito daquele. Convém não esquecer o fundamento escondido e gritante que subjaz a esta relação: o pai de Agamémnon havia morto os irmãos de Égisto, seus sobrinhos, dando-os em seguida a comer ao próprio pai, seu irmão. Égisto, que escapou ao monstruoso crime, não perdoou ao tio e resolveu vingar-se, daí a sua relação com Clitemnestra que, por sua vez, tem, também ela, uma boa razão para matar Agamémnon: a morte de Ifigénia, a filha que ela mais amava, às mãos do próprio pai, que sacrificou a virgem de modo a obter ventos de feição para prosseguir viagem até Tróia. Com a mesma arma, um machado de dois gumes, ela mata Agamémnon e aquela que, como despojo de guerra, o acompanhara até Micenas, a princesa-sacerdotisa em quem ninguém acreditava, Cassandra, que, por não ter aceitado levar até ao fim os impulsos amorosos de Apolo, tinha sido condenada à descrença.

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Etc.
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[Excerto de Rebuçados Venezianos de Maria Filomena Molder]

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E agora, depois das cenas de 'Maria, não me mates que sou tua mãe', caso queiram ver stratus, cumulus, cirrus, nimbus desçam, por favor, até ao post que se segue.

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] Leitores, não me matem pela heresia que eu sou a vossa UJM [

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sexta-feira, março 25, 2016

Leda
- e, com vossa licença, à laia de ovinhos da Páscoa, um link para a verdadeira história da Leda e do cisne e outro para uma derivação



Podem não acreditar mas cheguei a casa, depois de um dia tramado e, em especial, depois de uma tarde do mais arreliador que há, com aquela sensação que volta e meia tenho às sextas-feiras à noite, de só me apetecer desopilar. Terão percebido isso pelos posts que se seguem. 

Depois interrompi e preparei-me para começar um livro. O primeiro capítulo, 'A origem da obra de arte', começa assim:
'Origem' significa aqui aquilo a partir do qual e pelo qual algo é aquilo que é e como é. Àquilo que algo é, [sendo] como é, chamamos a sua essência. A origem de algo é a proveniência da sua essência.
Pensei: 'Mau'. De facto, para o meu gosto, a coisa não está a começar bem.


E lembrei-me de um colega que tive que punha toda a gente doida. Se uma pessoa simplesmente lhe pedia para mudar a posição da cadeira, era capaz de começar por nos pedir que definíssemos cadeira, depois que lhe explicássemos o objectivo da coisa e, a seguir, que lhe definíssemos prioridades. Preferíamos, claro, fazer nós a ter que o aturar com tanto preciosismo. Uma vez, estando o presidente da empresa a pedir-lhe que fizesse uma coisa qualquer, simples, o fulano virou-se para ele e disse que o pedido estava mal formulado e que o mal de tudo era não haver procedimentos actualizados e mais não sei o quê, deixando o presidente à beira de um ataque de nervos. Confessou-me ele, depois, que ficava nervoso de cada vez que falava com o tal pica-miolos, achava que o fulano era maluco e não estava certo de que não fosse dos perigosos. 

Adiante.

O facto é que, estando eu nestes pensamentos e a ganhar balanço para ultrapassar a minha resistência àquele tipo de proseado, tentando convencer-me de que, se conseguir superar a prova e ler ao menos o primeiro capítulo, me tornarei uma pessoa intelectualmente mais apta a enfrentar os desafios da vida, não é que me lembrei que, afinal, não apenas não era sexta-feira como, ainda por cima estamos em período pascal, período dado ao recolhimento e não à desbunda...?


À hora a que lerem isto já será efectivamente sexta-feira mas não é uma sexta-feira qualquer, é sexta-feira santa -- e, portanto, tenho que me esforçar por ter aqui alguma coisa mais apropriada.

Já pensei pôr aquele coro de que tanto gosto, dos crucificados dos Monty Phyton a cantarem o The Bright Side of Life, mas é muito déjà vu. Depois hesitei a propósito de um outro deles, uma caçada ao coelho, que isto da Páscoa puxa ao coelho. Mas, bolas, era um coelho maligno, assustador e, para isso, já temos a avantesma do post mais abaixo. Ocorreu-me, então, um número de burlesco a propósito de coelhinhos da páscoa. Mas, valham-me todas as santinhas, o que me apareceu foi de tal forma de bradar aos céus que, de imediato, bani a ideia.

Colocar imagens de Cristos mal encarados ou pensamentos profundos seria mais condicente com o momento mas, a sério, é coisa de que hoje não sou capaz. Já penei demais durante o dia para ter apetite para mais uma dose de sofrimento.


Por isso, fiquei aqui a patinar. E o que me ocorreu talvez o Freud ou alguma dessa rapaziada dada às correlações possa explicar. Eu não consigo. Presumo que, na realidade, não tenha mesmo nada a ver com nada. Lembrei-me, simplesmente, de um bailado em que Leda se soergue como se ressuscitasse, ou ela ou o cisne, tinha ideia de ter visto e ter achado que parecia que alguém se levantava da pedra, revivendo. Uma coisa nessa base. E encontrei o que procurava.

Numa coreografia de Kim Brandstrup, dançado por Zenaida Yanowsky e Tommy Franzen sobre o poema de Yeats lido por Fiona Shaw: Leda e o Cisne.

Só depois fui buscar imagens para 'enfeitar' o texto e que me perdoem os puristas pelas minhas heresias que eu própria reconheço que tempero fraca comida com raros condimentos. Mas se me apetece e não tenho aqui ninguém para mo proibir, porque não haveria de fazê-lo? 
Perdoem-me, pois, os que acham que intercalar pinturas destas com um texto tão desasado é de loucos. Receptiva à vossa sensibilidade, prometo voltar a fazê-lo.
Portanto, resumindo e concluindo, o bailado que aqui vos trago é muito bonito e gostava mesmo que vissem.

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Quem queira ler a verdadeira história da Leda e do seu cisne de estimação, queira, por favor, clicar aqui.

Quem queira ver umas derivações da dita que, inclusivamente, metem galinhas chocas, cliquem, então, por favor, aqui.

E volto a penitenciar-me: os puristas que, por favor, não me fustiguem. E não é por nada, é só porque não vale a pena. Reincido sempre.
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E relembro: os posts que se seguem não têm nada a ver com o espírito da época. São até muito inapropriados. Por isso, alertados que estão, não venham depois queixar-se de que foram ao engano.


...

sábado, junho 16, 2012

Vénus ao espelho - e algumas palavras soltas sobre a beleza, o amor, a sedução, a sensualidade no feminino


Música, por favor

Melody Gardot - Love me like a river does

*


Olho-me ao espelho com atenção. Esta sou eu. Olho-me nos olhos. Tento captar o meu olhar mas não consigo, o meu olhar parece não querer deter-se nos olhos que me olham. Quase sinto em mim alguma timidez.



Vénus ao espelho - Ticiano Vecellio (1473/1490 - 1576)


O espelho devolve-me a imagem de uma mulher bonita, de uma beleza franca. Penso: sou desejável. Mas, depois, um súbito pudor faz-me cobrir os seios. Olho de novo. Subo um pouco a mão que descobre um dos seios. São pequenos, macios. Olho o espelho e quase sorrio. O meu cabelo já está entretecido, pronto para me apresentar ao meu amor. 

A nudez branca parece-me impúdica, assim ao espelho. Cubro-me, ao de leve, com a capa macia, o veludo é tão macio e a orla bordada, tão bonita. Coloco as pulseiras. São fundamentais, quando me despir não parecerei tão nua.

Nesta cama, sobre esta capa macia, gozarei mais logo com o meu amor. Quero ver-me como ele me verá.



Vénus ao espelho - Peter Paul Rubens (1577 - 1640)


Nasci talvez de uma concha, sou feita talvez de espuma, não sei. Os meus cabelos são louros, longos, leves, perfumados, e eu deixo-os cair sobre os ombros. O meu corpo é farto, rijo, feito para ser acariciado, carnes macias que devem estar entre mãos. Desperto amor em quem me vê. O meu rosto tem as cores de quem tem saúde e o meu olhar olha-me, quase a desafiar-me. Mulher fêmea, sem dúvida. Mulher de carnes férteis, seara fértil, macia. 

Cubro-me com este fino cendal, branco, macio. Ignoro o olhar de quem me quer vestir, agora sou apenas eu aqui, eu e eu. Quero ver-me, quero ver o que os olhos do meu amor vão ver. Quero ver-me para perceber como será o meu olhar quando o olhar do meu amor estiver preso ao meu.



Vénus ao espelho - Diego Velásquez (1599 - 1660)


Deito-me agora sobre a chaise longue que, antes cobri com sedas naturais, marfim, antracite, deito-me e eu sou agora uma outra maja desnuda. Pensativa, olho-me no espelho. Esta sou eu. A minha anca eleva-se, e eu sei que sou desejável, farta, macia, uma mulher livre dentro de um corpo livre. Afasto de mim os véus, as capas, as vestes. Esta sou eu, nua, descoberta, eu. Olho-me tranquila. A mulher no espelho olha para mim. Entendemo-nos. Sem censuras, sem pudores, ela, a mulher nua no espelho e eu que olho a mulher que os homens desejam. 

Poderia dizer que os homens que me amaram, amaram sempre demais. Mas não digo. Eu é que sempre fiz com que me amassem demais. Eu a mulher amante, amada.



After Velásquez in my Apartment - Helmut Newton (1920 - 2004)


A cama em que agora me deito é outra, pele acolchoada e negra, armação metálica, linhas direitas, quase austera mas larga, confortável. O leito está no meio de uma sala vazia e as janelas estão abertas ao exterior. Por estas janelas abertas entra a luz do dia. Talvez quem, dos outros prédios, se chegue à janela, me consiga ver. Não faz mal. 

Olho-me ao espelho. Esta sou eu. Sensual. Não disfarço. Para quê disfarçar?, esta sou eu. Os meus lábios quase se abrem num breve sorriso. Este é o esboço de sorriso que deixa doidos aqueles que gostam de ser seduzidos. Este é o assomo de malícia que se disfarça de inocência para melhor iludir, para melhor seduzir.

Penso no que Leanor, formosa e segura, disse. Num tempo de cansaço e de tecnologias, num tempo em que todos sabem tudo de todos, mas num tempo em que as pessoas mal se vêem, mal se tocam, vital a linguagem do corpo, a linguagem da sensualidade que brota dos corpos cingidos na relva, à luz e ao calor do sol: transfiguração do medo, na esperança deste tempo.

Assim é. Cingidos umas vezes na relva, outras cingidos numa cama que, aqui no meio desta sala vazia, será um altar, o altar do amor, do desejo, dos prazeres do amor, transfiguremos o medo na esperança destes tempos.

Daqui a pouco vou cobrir-me, vou cobrir-me para que o meu amor me descubra, quero ocultar-me para o ofuscar, como Natália me ensinou num Outubro, quero enleá-lo para melhor o deslumbrar. Jogos de sedução, jogos de amor, premissas de um desejo que se quer demorado, com um final longo como se diz dos vinhos encorpados, sábios.

Junto a mim, outra mulher segura o espelho e poderia, alguém que a visse, inventar histórias. Mas não me importo. Que seja o meu inocente filho, a minha criada de vestir, uma amiga, uma deusa, um ser imaginário que me impele ao sexo e ao amor, tanto faz. Alguém tinha que segurar no espelho. Agora estou apenas a preparar-me, a conhecer-me, a reconhecer-me, enquanto espero. Daqui a pouco, por esta porta entrará o meu amor e eles sairão. Ficarei só eu e ele. Agora estou à sua espera e eu estou calma, descansada, liberta, uma mulher livre que nasceu para viver o amor.

*

Notas 

* Designei as pinturas como 'Vénus ao espelho' mas encontrei também referências com os nomes 'Vénus e o espelho' ou 'Vénus e Cupido' ou outras. 

* A frase 'os homens que me amaram, amaram sempre demais' pertence a um poema de Alice Vieira.

* A Leanor a que me refiro no texto é a Leitora 'Leanor, formosa e segura' que escreve de uma forma que me agrada imenso e que, no outro dia, num comentário no meu Ginjal e Lisboa escreveu aquela frase, tendo-me autorizar a usá-la aqui. A ela os meus muito sinceros agradecimentos.

* A Natália a que me refiro é, obviamente Natália Correia no seu poema 'De amor nada mais me resta que um Outubro'.

* Aos puristas de tudo o que mexe e que apenas conseguem fazer leituras literais, faço um alerta que me pareceria escusado mas que, just in case, aqui fica: o que acima escrevi é ficção e não um registo autobiográfico (não costumo ter ninguém a segurar-me no espelho), ou alguma recensão, apontamento histórico ou o que quer que seja que pretenda ter rigor de qualquer espécie. No entanto, as legendas apresentam o nome correcto dos autores das pinturas e da fotografia e as datas correctas em que viveram (pelo menos assim o espero) - ... e aqui, com vossa licença, para que confirmem que, de facto, me estou a rir, vou ter que incluir um smile (um smile no feminino, é claro). 



Tenham, meus Caros leitores, um belo sábado. Sorriam à vida para que a vida vos sorria a vós.

quinta-feira, junho 14, 2012

Eu e as galinhas chocas. Os meninos que não nascem de ovos. E, a propósito, Leda e o Cisne revisitada.


Música, por favor

Stasa Mirkovic Grujic interpreta Clair de Lune de Claude Debussy



Quando eu era pequena, com três anos talvez, morava quase ao lado da minha casa um amigo com quem eu brincava assiduamente. Por essa altura, a mãe dele estava grávida. Eu via-lhe a barriga grande e a minha mãe tinha-me explicado que era um bebé que ia nascer, coisa que achei natural.

Por essa altura, uma minha avó tinha patos que andavam à solta no campo. Uma das brincadeiras era descobrir onde tinham as patas deixados os ovos. Era uma verdadeira caça ao tesouro. Geralmente havia sempre um ovo debaixo de uma sebe que havia junto à entrada do quintal. Mas descobrir os outros era uma aventura. Não me lembro de ver nenhuma pata a chocar os ovos mas isso acontecia certamente pois, de vez em quando, havia patinhos bebés.

A minha outra avó tinha uma capoeira e todos os dias a meio da manhã eu estava autorizada a ir buscar os ovos a um pequeno compartimento pequeno e escuro, onde os adultos tinham que se baixar para entrar, compartimento esse que tinha ligação, através de uma pequena abertura em arco ao nível do chão, com o recinto vedado onde elas estavam de dia. Ia com uma cesta de verga, com muito cuidado não fosse lá estar alguma galinha a pôr um ovo nesse instante, e frequentemente tirava os ovos ainda quentes. Muitas vezes a minha avó fazia depois uma gemada, ovo batido com açúcar, uma coisa óptima que hoje recordo como se fossem ovos moles, especialmente quando ela usava apenas a gema.

Por vezes uma galinha ficava choca. Aqui tudo era visível, não era como com as patas que andavam à solta. A galinha choca não saía de cima dos ovos. Havia um outro compartimento, num outro local, junto à ‘casinha’ onde o meu avô arrumava as ferramentas e onde pendurava as résteas de cebolas ou de tomates em cacho. Nessas alturas, era para aí que a galinha que estava nesse estado interessante era levada. Havia um caixote creio que com palha, como se fosse uma cama, onde estavam os ovos e, em cima deles, ciosa e grave, estava a futura mamã. A minha avó tratava-a com muito cuidado e eu não podia fazer barulho quando lá ia. A partir de certa altura, a minha avó começava a vigiar os ovos.

Até que um dia eles começavam a aparecer partidos. A casca de fora partia-se mas tenho ideia que, por vezes a minha avó tinha que ajudar a romper a película de dentro. Depois começava a ver-se o bico do pintainho e a minha avó sempre vigiando, cuidadosa, parteira atenta. Ao fim de algum tempo já os pintainhos estavam cá fora, molhados, trémulos, e a minha avó sempre a recomendar-me que não fizesse barulho para não os assustar, levantando as cascas partidas, os vestígios do parto. Pouco tempo depois já a penugem estava seca e macia e já eles andavam debicando à volta da mãe galinha.

No dia em que nasceu a irmãzinha daquele tal meu amigo, lembro-me que ele foi deixado à guarda da minha mãe pois na casa dele ia grande azáfama. O parto deu-se em casa. Lembro-me perfeitamente de nós dois termos perguntado vezes sem conta à minha mãe se já tinha nascido e da minha mãe dizer que, quando isso acontecesse, nos vinham avisar e que, então,  logo lá iríamos ver.

Até que, finalmente, lá fomos. A minha mãe tinha-nos avisado para não fazermos barulho e eu ia com o mesmo cuidado reverente de quando ia ver a galinha choca ou os pintos recém-nascidos.

Quando lá cheguei, vi a mãe dele no quarto, na cama, e estava com um ar um pouco descomposto, a esta distância não sei bem descrever, achei qualquer coisa de diferente nela. Estava com a bebé ao lado, coisa que achei natural. Mas o que me deixou curiosa foi ver a menina já vestida e de não ver cascas de ovo nem vestígios de tal em lado nenhum. Disfarçadamente ia olhando à volta, depois, como quem não quer a coisa, debaixo da cama. Nada, nenhumas cascas. Não resisti, puxei a minha mãe de lado e quase em segredo, perguntei-lhe onde estavam. Tenho ideia que me disse que já deviam ter deitado fora. Mas qualquer coisa na expressão dela me fez perceber que não devia ser bem assim, que ali havia equívoco.

*

Até hoje, que eu saiba, apenas Polux e Helena e Castor e Climnestra nasceram de ovos mas isso foi porque Leda era danada para a brincadeira e, no mesmo dia, engravidou de um homem, o marido, e de um deus que, não contente com a excentricidade de ser um deus, ainda se disfarçou de cisne.



Leda e o Cisne (... e reparem nos meninos a sairem dos ovos) - Leonardo da Vinci

*

[Claro que a história de Leda tem muito que se lhe diga, ora se não tem, e tem variações, derivações e interpretações para todos os gostos.



Leda e o Cisne (a dúvida sobre quem seduz quem, uma dúvida envolta em azul) - Paul Cézanne


Paixões, seduções, tentações, violações, traições, ilusões, irritações, confusões, punições, aflições, e até, imagine-se, constelações – há de tudo (e, já agora: nem sempre as respectivas descrições acabam em ões, eu agora é que me está a dar para isto, sei lá por que razões ou motivações).



Leda e o Cisne (a abstracção, a euforia da cor, a luz sobre a mulher, o cisne que desce do azul para inquietar a mulher) - Henri Matisse


Mas a mim, geralmente, dá-me para as ligeirezas já que, com toda a humildade reconheço que a coisa a sério está sobretudo ao alcance dos verdadeiramente entendidos e não de mim, moça simples, do campo, que, como é sabido, sou mais dada a folgações do que a erudições.



Leda e o Cisne (a inquietação a negro, um dedo oportuno, a nudez desafiante, sem pudor) - Nikias Skapinakis


De qualquer modo, falando eu assim, que não se pense que sou contra as erudições, qual quê, nada disso, sou a favor, completamente a favor - se bem que nisto de erudições convém distinguir entre os eruditos a sério, que são uns bacanos porreirões, e os pseudo-eruditos, uns maçadores que geralmente são uns... (como estou numa de usar palavras acabadas em ões já me ia saindo que são uns... uns... - mas não desço daí abaixo, não senhor)... são uns pândegos. Pelo menos a mim divertem-me imenso - o que não admira, que eu, simples como sou, dá-me para rir, e graçolas pseudo-eruditas, então, até me levam às lágrimas...! E haja paz no universo.]



Leda e o Cisne - fotografia de Helmut Newton ( Nadja Auermann na célebre fotografia da US Vogue de Anna Wintour)


E adiante que o tempo ruge, como dizia o outro.

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Para enfeitar o texto – porque, como é sabido, também sou dada à bonecada - ousei utilizar algumas menos convencionais visões (e eu a dar com as palavras acabadas em ões…) sobre a extraordinaire história de Leda e o Cisne. Mas, ao tentar localizar estas que já conhecia, deparei com muitas mais, e algumas bem engraçadas, pelo que não estou certa de que não volte a fazer uma visitinha à Menina Ledinha.

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E, por hoje, é isto.

Gostaria ainda de vos convidar a fazer uma visita ao meu Ginjal e Lisboa.
Hoje as minhas palavras olham as águas em volta de um poema lindo, mas lindo mesmo, de Eugénio de Andrade.
A música escolhida refere-se a uma cena de casamento e, claro, ainda estamos com Wagner.

*

Sinceramente vos desejo, a todos, meus Caros Leitores, uma boa sexta feira.

Be happy! Enjoy!

quarta-feira, junho 13, 2012

Leda e o Cisne - e uma história caliente no Dia de Sto. António


Música, por favor

Melody Gardot - La vie en rose



Com este tempo quente não é possível usar os meus mantos de veludo, e o que eu gosto de mantos de veludo, veludo macio e pesado, verde musgo, azul ultramarino, grenat ardiloso, ou até, mesmo, um mel dourado com sabor a alecrim. Não, com este calor, não é possível. Queria vestes luxuosas, folhos armados com tule, rendas sumptuosas, sedas com brilhos discretos e lavados, queria espartilhos que alguém desapertasse com vagar, queria meias com ligas, meias com costura, queria cabelos em cachos sobre os ombros e uma fina camada de pó de arroz para disfarçar os rubores. Mas como, como com este calor?

Gosto de poder conservar o pudor, gosto que me percebam a virtude. Mas como, como com este calor?

Ainda Junho está a meio e já eu não aguento as vestes e as capas e as meias e tudo o resto. 

Vou até ao bosque que lá está mais fresco. Preciso de um pouco de sombra. O excesso de luz aquece-me o espírito, desvenda-me a alma e eu tenho segredos que precisam de recantos sombrios.

Mas, ainda assim, aqui no bosque, este calor...

Não está ninguém, só eu, e a sombra protege-me a timidez.

Baixo, então, com prudência nos gestos, uma manga, ainda ninguém, depois desaperto o botão de cima do vestido. Ninguém. Depois outra manga, e desaperto o resto. Deixo que o vestido escorregue. Devagar. Respiro o ar doce do campo. Reclino-me aqui, sobre as roupas macias, sinto a frescura que vem das raízes. A terra é fresca.

Depois tiro o resto. Mas a virtude é mais forte. Cubro-me, então, ao de leve, com o cendal macio, transparente como se fosse um sedoso lençol apenas imaginado, como um véu nupcial. 

Fecho os olhos, deixo-me ir, não sei se durmo, se apenas sonho, e da terra já não vem frescura mas uma humidade morna que me envolve. E sinto, então, que uma sinuosa plumagem começa a percorrer o meu corpo. Podia gritar, dizer que não, podia abrir os olhos e tentar perceber quem assim se passeia pelo meu corpo, mas não. Deixo-me ficar, em silêncio, de olhos fechados. Apenas a minha boca se abre, sinto-o.

Depois, mais tarde, ouço um pesado bater de asas, e passos que se afastam. Espero, imóvel. 

Quando finalmente apenas ouço o silêncio que vem da terra, abro os olhos. 

O cendal desapareceu. Talvez o tivesse apenas imaginado. Talvez alguém o tivesse levado. Apenas duas penas brancas, grandes, macias, me cobrem os seios. Sorrio.

Vou voltar mais vezes e tomara que esteja sempre este calor.

*

Leda e o Cisne - Michelangelo


Leda serenidade deleitosa,
que representa em terra um paraíso:
entre rubis e perlas, doce riso;
debaixo de ouro e neve, cor de rosa.

Presença moderada e graciosa,
onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser fermosa:

fala de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso nela alegre e comedido.

Estas as armas são com que me rende
e me cativa Amor; mas não que possa

despojar-me da glória de rendido.


*


Um baque surdo. A asa enorme ainda se abate
sobre a moça que treme. Em suas coxas o peso
da palma escura acariciante. O bico preso
à nuca, contra o peito o peito se debate.

Como podem os pobres dedos sem vigor
negar à glória e à pluma as coxas que se vão
abrindo e como, entregue a tão branco furor,
não sentir o pulsar do estranho coração?

Um frémito nos rins haverá de engendrar
os muros em ruína, a torre, o teto a arder
e Agamemnon, morrendo.

                                                                     Ela tão sem defesa,

Violentada pelo bruto sangue do ar,
se impregnaria de tal força e tal saber
antes que o bico inerte abandonasse a presa?


Leda e o Cisne - Rubens

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O primeiro poema é de Luís Vaz de Camões e o segundo é de William Butler Yeats (desconheço o tradutor). 

Já disse também de minha justiça lá para os lados do meu Ginjal e Lisboa. Ao som de Wagner, hoje temos palavras desvendando enseadas secretas em volta da Ilha de David Mourão-Ferreira. Se quiserem lá ir, vão de mansinho para não estragarem a festa, está bem?

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E é isto, meus Caros, que me apraz dizer no Dia de Santo António. 

Tenham, meus Caros, uma quarta feira divertida, feliz, na companhia do vosso Zeus ou da vossa Leda ou de alguém disfarçado de Cisne ou, até, de um cisne de verdade (que ele há gostos para tudo...)!