domingo, maio 31, 2020

Vísur Vatnsenda Rósu em vez de máscaras





Ando há já alguns meses com uma encasquetada e agora ainda mais. Quando assim é, não me dou descanso. Então, quando tenho algum tempo livre, vou em busca disso. Gosto de mudanças. Podendo parecer que não, gosto de mudanças. Este sábado de manhã, fomos ver uma possibilidade. Mas as opiniões dividem-se e eu própria, que persigo um ideal, ando reticente. Agora não sei se já o encontrei ou se tenho que persistir na minha demanda. Estou debaixo daquela indecisão que, por vezes, precede as grandes decisões. Posso falar sobre mil coisas ou escrever sobre mil outros assuntos que, subjacente, corre o rio que chama por mim. Quando isso acontece, posso levar algum tempo, posso enfrentar dúvidas, contradições, contrariedades mas sei que hei-de conseguir chegar onde quero. Não há volta.
Nas entrevistas de emprego há ainda quem pergunte aos candidatos qual a sua maior qualidade e qual o defeito que os outros mais lhe apontam. Geralmente, os candidatos optam por escolher um defeito que, vendo bem as coisas, até pode ser visto como uma qualidade. Usualmente, dizem que são teimosos. Não ligo patavina a essas respostas formatadas até porque, para perguntas estúpidas, respostas estúpidas. Mas eu quase poderia dizer o mesmo de mim. Mas di-lo-ia pensando que não é por ser teimosa, é por ser lutadora, por não desistir daquilo que quero muito. Mas, na volta, pode ser teimosia. Tanto dá. As palavras às vezes são ociosas, preguiçosamente servem para tudo, não as podemos tomar à letra.

Tirando isso a água estava óptima. E o céu acinzentando-se, a parecer que o outono estava à espreita. A minha mãe bem mas inquieta com o confinamento e não só, indecisa, sentindo-se com as asas presas. Mas a vida continua e, havendo sempre o que fazer, as coisas vão melhor. Continuo a não conseguir arrancá-la de casa mas com esta cena do distanciamento tudo fica ainda mais difícil.

Ainda por cima, isto das máscaras. Se estou com ela, estou de máscara e quero que ela também esteja. A menos que estejamos no jardim e a alguma distância. Uma coisa contranatura. Com as crianças, então, é-me doloroso não os poder abraçar, puxar para o meu colo, enchê-los de beijos.

Sempre que tenho que andar de máscara, é um desatino. Agora, mal me parece que posso aliviar, tiro-a, dobro-a e ponho-a no soutien. O meu marido passa-se. Segue as recomendações by the book e ainda não viu lá esta cena, de se guardarem as máscaras no soutien. Não quero saber. Não tendo bolsos, acho preferível ali, guardadinha, do que andar com ela na mão, deixando-a cair, roçando em tudo, sei lá. Quando chegámos à praia, passado um bocado, viu-me sem ela e conferiu: onde é que puseste a máscara? Apontei-lhe: nas poitrines. Abanou a cabeça. Passado um bocado pediu: 'Dá cá, eu guardo, senão daqui a nada estás dentro de água e nem te lembras mais da porcaria da máscara'. Aquiesci. De facto, seria mais do que certo e sabido. 

De regresso ao campo, mal cheguei, senti o perfume a alfazema. Tão bom. Uma felicidade. Nestes dois dias as flores abriram, lilases, cheirosas.

Quando dei um passeio até lá ao fundo senti que o ar estava especialmente perfumado, os cheiros mais intensos. Os pinheiros, os cedos, os eucaliptos, o alecrim, o rosmaninho, o tomilho, os orégãos. Tudo tão limpo e perfumado. Talvez pelas nuvens, pelo calor, pela humidade, parece que as flores e as folhas destilavam o seu perfume com maior persuasão. 

Entretanto, o meu marido chamou-me para me mostrar uma daquelas borboletas magníficas. Fui buscar a máquina para a fotografar. Linda para além do compreensível. Não se percebe como nasce tamanha beleza. Penso sempre que se tamanho milagre acontece do nada muitos mais, a toda a hora, devem estar a acontecer e nós, distraídos, sem os vermos.
E agora fui á procura da máquina e não a encontro. Na volta, ficou lá fora. E agora não dá para ir à procura, Que chatice. A ver se nenhum bicho a leva. Esconde mil segredos. 

Depois varri a casa, sobretudo o quintal, e fiz algumas limpezas. Depois de tomar banho, deitei-me no sofá a passar os olhos por aí e, claro está, adormeci. 

Depois de jantar estivemos a ver a Grace & Frankie. Estamos a caminho de nos rendermos à Netflix. A pedido do meu marido, imagine-se!, do meu marido..., a minha filha inscreveu-nos. O primeiro mês é experimental e eu ainda estou na dúvida se a coisa vai vingar. Se calhar, vai. 

Tirando isso. Apenas coisas de nada. Invisíveis. A vida traz-me surpresas, palavras e músicas desconhecidas, cores, lugares, ideias novas, longinquidades. De mãos desconhecidas chegam-me presentes, enigmas, flores, subtilezas escritas numa língua nova, límpida como a mais pura das álgebras, outros mundos. Não sei o que me dizem nem quero descobrir o seu significado, nem quero saber que mundos são esses, se são subterràneos, labirínticos, se existem apenas em sonhos, se se evaporam como fiapos de nuvens, se se escondem como a luz quando quer parecer apenas sombra. Não sei. Tomara que se mantenham intangíveis, sempre envoltos em véus invisíveis, distantes, evanescentes; na prática, inexistentes.

E Maio, maduro Maio, está a chegar ao fim e, com a aproximação de Junho, continuam a chegar ainda as dúvidas. O mundo em chamas, em fúria. Crateras do tamanho do mundo. Mas, qualquer dia, ainda vamos descobrir que convivemos bem com elas e que uma fractura pode abrir-se sob os nossos pés que nós, habituados também a elas, continuamos como se não fosse nada, como se fossemos eternos e a fractura passageira. Mas também não digo que não seja a atitude mas inteligente. Cada vez sei menos e começo também a convencer-me que, em certos sentidos, a ignorância pode até ser uma coisa boa. Tem é que vir com inteligência e elegância à mistura porque, senão, fica coisa a cheirar a trump, a jair, a coisa boçal, a coisa podre, a bolsos cheios de vermes, a mãos cheias de sangue --  e isso, caraças, isso é que não.


My eyes and your eyes
Oh those beautiful stones
Mine was yours and yours was mine
you know what i mean
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Não sei a que propósito aqui me apareceu o Sandro Botticelli mas não faz mal, é sempre bem vindo.

Hector Zazou & Björk trazem Vísur Vatnsenda Rósu e isso eu sei porquê mas não digo
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A todos desejo um belo dia de domingo.

sábado, maio 30, 2020

Fim de dia na praia, de máscara e a caminho de vir ver e ouvir a bloody daughter







O dia em casa. Parte do dia sozinha. Há quanto tempo não estava sozinha em casa? Nem sei. A casa silenciosa, o rio na janela. E calor. Telefonemas, mails, reuniões, aprovações. Não apreciei especialmente. Não gosto de estar confinada. Há dois meses e meio em liberdade, estar a trabalhar fechada em casa, sem ter como ir fazer uma caminhada enquanto telefono e, mal acaba o telefonema, voltar a entrar ou, de vez em quando, estar de porta aberta ou na rua, a trabalhar a ouvir os passarinhos, e hoje fechada, limitada. Todo o dia senti saudades dessa liberdade.

E isto já para não falar nas conversas boas e divertidas com a minha filha ou na alegria, na energia, no apetite divertido dos meninos. Tão bem que eles lá estiveram.

E já contei que lhes voltou a preocupação que todos eles, à vez e sem saberem dos outros, manifestam? O que acontece ao lugar quando morrermos? Quando se pergunta porque perguntam respondem que estavam a pensar nisso. A minha filha ou o meu marido, já nem sei qual deles, se calhar até os dois, dizem que isto significa que gostam muito de lá estar e têm medo que aquilo se perca já que agora é um lugar que está associado a nós e nós, um dia, haveremos de virar pó. Dizemos que terão que se entender entre eles para manter o lugar na família. É um lugar sagrado. Um paraíso que nasceu das pedras e das minhas mãos.


Alimentou-me o dia a expectativa de nos encontrarmos ao fim do dia, na praia, com os outros meninos e seus pais. Lá fomos, eu entusiasmada, com aquela excitação de quem vai estar com aqueles que ama.

Eram sete e meia da tarde, a estrada pejada. Muitos carros a saírem da praia. Estávamos estupefactos. Àquela hora ainda tanta gente a vir da praia? Fogo. E ainda vários carros a entrarem. 

Estávamos quase a chegar quando, ao lado, a carrinha com eles -- os meninos de máscara. O do meio também de óculos escuros espelhados. Umas máscaras todas fashion. Ganda pinta. Estava ao telefone com a minha mãe, ela ouviu a minha exclamação: 'Olha! Eles' E estão de máscara!'

E, quando estacionámos, vimos que já não eram só eles, já estavam os cinco de máscara. A do meu filho em negro, a da minha nora em estampado. Mostrou que são dupla face. A mãe fez umas, outras foram encomendadas. O bebé orgulhoso com a sua máscara preta com carros. Perfeitamente adaptado. Nada daquilo o estorva. No outro dia a tia disse-lhe que estava com saudades, que queria estar com ele, ele que fosse ter com ela. Resposta dele: 'Não posso, não quero apanhar o coronavírus'. Tal e qual.

O meu marido achou que, se eles assim estavam, também nós devíamos. Eu super contrariada. Para a praia? De máscara? Parece a contradição dos termos. Depois explicaram-nos: no passadiço há muita gente. E, de facto, muita gente a sair e a entrar na praia. 

Lá chegados, retirámos a máscara. E a menina mostrou que já faz muito bem a espargata e a roda e mil poses artísticas e acrobáticas. Estava toda contente por estar comigo, contava-me coisas, deixou que eu a fotografasse de todas as maneiras. Linda, linda, mil vezes linda. E tão querida. O menino do meio não estava nos seus melhores dias, estava mal de um ouvido, meu menino querido. Tão alto que já está. Esguio como um bambu. O bebé fala já de forma totalmente explicada. Viu um avião e, enquanto eu estava a digerir a visão de um avião no céu e, ainda por cima, tão baixo que dava para ver que era da TAP, ele: 'Mãe, de onde é que ele vem e para onde vai?'. E a mãe: 'De onde vem não sei mas sei que vai para Lisboa'. E ele 'Vai aterrar em Lisboa?'. E quando eu me preparava para explicar como é que os aviões baixam e aterram, logo o mano do meio: 'Mas ele sabe, ele já andou de avião...'. E o bebé: 'Sim, eu já andei' de avião, eu sei'. E eu fiquei a pensar: 'Onde terá sido a última vez? Aos Açores?'. Sei que na última vez pensei que tão pequenino e já era a sua segunda viagem de avião. Mas parece que foi há tanto tempo que já nem consigo situar-me. Este ano, pela Páscoa, iam de férias para Itália.

Mas a praia estava uma maravilha. Calor. Os meninos fartaram-se de mergulhar, de andar a apanhar as ondas. São destemidos, brincalhões. Também não resisti. Não mergulhei completamente mas andei também dentro de água a sentir a rebentação. Tão bom, tão bom. Quando viemos de lá já passava das oito e meia. Perguntaram se queríamos jantar com eles. Mas não, tínhamos afazeres. Viemos para casa, tomámos banho, fiz um jantar rápido, pus a máquina a lavar. Essas coisas.

Agora que o cabelo já se me secou e que ainda não o apanhei, muito menos entrancei, sinto-me uma leoa com frondosa juba, e o calor que isso me dá ninguém imagina. Mas a preguiça para ir ali buscar um elástico ou uma mola e apanhá-lo...?

Adiante.

Agora que estou na sala enquanto vejo o Governo Sombra, estava aqui para falar do vídeo que estive a ver feito pela filha de Martha Argerich justamente sobre a sua mãe.

Gostei tanto de ver.

Atraem-me os pianistas. Uma vez escrevi um conto sobre um pianista. Não faço ideia que será feito desse conto. Foi inspirado por uma pessoa muito concreta que, por acaso, não era pianista (embora toque piano de uma forma que me emociona). Se eu voltasse a escrever um conto, talvez um livro, talvez um guião para um filme (presunção e água benta, vocês sabem como é) penso que não resistiria à tentação de lá tê-lo, de novo. Talentoso, solitário, apaixonado, atormentado, insolente. Penso nele e vejo-o. Vejo as suas mãos grandes. Vejo-o entregue ao seu prazer solitário, a casa espaçosa e quase vazia, o piano na penumbra, um raio de luz dourada desenhado na parede. 

Mas, falava eu, a Martha Argerich -- que tanto gosto de ouvir tocar. A sua vida. Como chegou até aqui, talentosa, bela, com aquela sua personalidade, como se o tempo não passasse por ela? Como consegue uma pessoa com uma vida assim arranjar tempo e espaço para ter relações duradouras? Como consegue tempo e disponibilidade para filhos? Tenho curiosidades por coisas assim. Não é bem fofoca. É mesmo curiosidade, vontade de perceber como funciona a cabeça de pessoas assim, que admiro como se tivessem milagres a nascerem-lhes dos dedos.

O vídeo é longo mas arrisco-me a partilhar pois pode ser que haja por aí outros malucos como eu, com gostos difíceis de definir.

Um retrato íntimo

Martha Argerich's intimate portrait: Bloody Daughter - Film by Stéphanie Argerich


As pinturas são de Joaquín Sorolla y Bastida
Celso Fonseca aqui deixa a sua pose de flâneur e vem dizer qual a origem da felicidade

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A todos desejo um dia feliz. 
... apesar do calor que, a alguns, faz lembrar o fim dos tempos e que a mim me faz, pura e simplesmente, derreter...

sexta-feira, maio 29, 2020

Nesta so hot and starry night até poderia dizer que I'm melting for you.
Mas fico-me pela economia pós-confinamento e pela cor e corte de cabelo mais adequados a cada signo.






Tanto calor. O dia fechada em casa, em reuniões, sem quase me aperceber do calor estival. Depois, o fim de tarde a banhos, tão, tão, tão bons, e agora, nesta noite tão quente, à janela, a ver o rio, a sentir o silêncio fresco que sobe das escuras águas. Olho as luzes da cidade, tento ver se algum barco atravessa o rio, procuro a lua. Mudei de mundo, estou agora num outro planeta.

Voltei a pôr máscara. Voltei a esquecer-me de ir a correr lavar as mãos ao chegar a casa. Voltei a sentir-me confinada, atrofiada, condicionada.

Mas comi uma maravilhosa pizza de alcachofras e presunto. Soube-me a outra vida. Vieram entregar cá a casa. O meu marido pôs a máscara para a receber. Eu retirei-a la caixa e fui pô-la a desinfectar no forno. Coisas desconhecidas no campo. Lá ninguém vai a nossa casa, não precisamos de máscara nem de nos desinfectarmos. Mas a pizza estava tão boa. 

Agora estou cansada, com sono, desfeita de calor, à beira de me derreter. Quando acabar de aqui estar vou beber um copo gigante de água gelada, vou lavar as pernas, os braços e a cara com água fria.

E não tenho falado nisso mas fui, uma vez mais, colocada perante um desafio. Não é a primeira vez nos tempos mais próximos. Tenho evitado decidir-me. Sei o que poderá estar à minha espera. E sei o que o o corpo e a mente parecem estar a pedir-me. Mas desta vez não posso continuar a fazer de conta que não percebo que um sim ou um não estão pendentes. Qualquer das opções tem riscos e consequências. Nunca fui de ambições mas o trabalho sempre me perseguiu. E digo-o com um certo cansaço. Sempre fui de me deixar aliciar por desafios mas agora o desafio que estava a apetecer-me era o de não estar sempre metida em trabalhos.

Enfim. Não posso continuar a desconversar perante quem quer convencer-me porque agora já estou quase entre a espada e a parede. 

Como cá em casa não estão para aturar estes meus dilemas e eu também não tenho paciência para sopesar prós e contras, resta-me o horóscopo. Desde que me confinei, vai para dois meses e meio, nunca mais tinha tido curiosidade. Agora fui ver. A coisa do costume: Travail intensif, dynamisé par votre sens du devoir et des responsabilités. O costume. Uma seca.

Tirando isso, a imprevisilidade do que aí vem. Do lado da Europa podem estar para vir boas notícias (isto se todos estiverem de acordo, o que pode a ser outra seca já que aqueles flausinos apertadinhos acham sempre que não é de bom tom dar esmola aos pobrezinhos). Mas agora, verdade seja dita, não é o momento de atirar dinheiro para cima dos problemas, agora é tempo é de perceber qual a verdadeira raiz dos problemas e agir aí, na raiz. Não na conjuntura mas na estrutura.

Mesmo recuperando bem, não irá recuperar totalmente, pelo menos não a curto prazo. Então, como absorver os que ficam de fora? E ficarão, disso não tenhamos dúvidas, alguns ficarão de fora.  Os mais pobres, os mais indiferenciados, os mais descartáveis ficarão de fora. É dos livros e é da sabedoria popular. Quando a coisa dá para o torto, há uma cascata de pouca sorte que se desenrola e quem apanha com o jorro em cima são os que estão cá em baixo.

E isso vai acontecer porque nós agora somos outros, parte da nossa maneira de ser foi-se, e, mesmo retomando, não retomaremos completamente.

Que outras actividades vamos, então, inventar? E como vamos evitar que um valente estouro nalguns sectores económicos -- por exemplo, das empresas que exploram grandes edifícios, sejam eles espaços comerciais, hoteleiros ou escritórios -- se traduza, de novo, num outro estouro financeiro que, por sua vez, fará tremer os alicerces da sociedade?

Nestas coisas a gente vê que aquilo do bater de asas de uma borboleta no cu de judas provocar uma tempestade na casa da mãe joana não é lorota -- não senhor, é mesmo verdade. Pode parecer coisa do capeta, e é, mas é também muito verdade. Um vírus passou dum bicho (ou dum laboratório) para um homem qualquer não se sabe exactamente onde e é o que se vê: o mundo a ajoelhar e sem saber bem como se levantar.

Não sei se é tema para uma noite quente, presumo que não, mas gostava que vissem este vídeo. Está bem explicado.


Para tirar o sentido de coisas que me trazem a modos que apreensiva, fui ver qual o corte de cabelo adequado ao meu signo. O corte e, já agora, também a cor.

(Tudo a ver com o tema deste post, certo? Mas é o que é. Quem disse que não sou loura? E das burras...?)

Antes, tentando não me deixar influenciar, fui ver de qual gostava mais. Este aqui abaixo. Depois fui conferir. Bingo.


Era mesmo. Dizia, como explicação, que “Un segno ad alto tasso di femminilità: la donna Cancro ama le acconciature classiche e rassicuranti, meglio se con un tocco romantico e retrò. Perfetta una coda bassa tenuta da un nastrino di seta rosa oppure trecce morbide. Bandite le colorazioni shocking: vincono i biondi e castani cenere”.


E, para terminar o dia com palavras mais consentâneas com o corte de cabelo, deixem que partilhe convosco um daqueles vídeos que me predispõem para a leveza.


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A segunda e a terceira fotografias são da autoria de Stella Asia Consonni na série Melting for you 
Não sei quem foi o autor da fantástica primeira fotografia que vi na Vogue italiana.
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E um bom dia a todos. Saúde e boa disposição, valeu?

quinta-feira, maio 28, 2020

A força e beleza dos laços invisíveis que nos unem





Nem em tudo somos estúpidos. Há coisas em que somos extraordinários.

As voltas que damos aos tombos e tropeços em cima da  história -- passos absurdos, passos atrás, passos para o lado e para baixo, passos sem nexo. E, no entanto, por vezes, quase sem querer, aproveitando uma ideia que tinha um outro propósito e fazendo-a voar noutra direcção e, indo ela voando por aí, vai que, sem se saber bem como, abre uma porta e nessa porta nasce uma outra forma de viver. Esta coisa da internet é assim.

Há gente a arrancar fronteiras da terra ou a inventá-las a ferro e fogo, gente a empurrar esfomeados a pontapé, outros a deixar afogar gente amontoada em casquinhas de noz, há gente mentirosa ou que já perdeu até a noção do conceito, há gente idiota que acredita que a terra é plana ou que acredita que há uns deuses pirosos cujos pastores gritam e fazem milagres ao vivo, deuses esses que criaram o ser humano sem passar por evolução coisa nenhuma, gente que mata e esfola, que vive de negócios de sangue. Há gente parva, há gente má, há gente bronca.

Mas depois, inexplicavelmente, há gente inteligente, gente que gosta de equações e da singeleza das leis matemáticas, que gosta de poesia e epistolografia, que sabe de engenharia, que sabe transformar palavras em zeros e uns e desses zeros e uns consegue que renasçam poemas, histórias, músicas.

Há gente a quem devemos novas vidas e novas formas de viver a vida. Há gente a quem nunca agradeceremos o suficiente. 

Hoje, ao fim da tarde, ao sol dourado do belo sunset, eu e a minha filha constatávamos como os dias aqui, in heaven, correm depressa.

Vivemos intensamente cada dia mas, pensando bem, nunca é nada de mais, os meninos felizes da vida, nós apaziguados e na boa, trabalhando, cozinhando, o meu marido, no intervalo da sua actividade, limpando o mato, nós estendendo roupa ao sol -- sem sentirmos falta da vida que antes era a nossa. Nem temos vontade de a ela voltarmos. E, no entanto, apesar de não vermos vivalma que não nós, não nos sentimos isolados. Não estamos isolados.

Por exemplo, agora. Estou aqui escrevendo palavras que, de imediato, se soltam pelos ares, procurando novas leituras, novos espaços, palavras que vão aconchegar-se sob o olhar de quem me lê. E, ao mesmo tempo, até mim chegam-me outras palavras, aforismos, cartinhas, graças, curiosidades, abraços, risos. Um mundo inteiro à mão de cada um. Eterno milagre.

Um merdinhas de nada, um coisinha nenhuma, um enojadinho sem vida própria fechou o mundo em casa, limpou o ar, mudou hábitos, pôs os aviões em terra, fechou fábricas e repartições, atirou com muita gente para a inactividade e desemprego, matou e assustou muita gente. Uma pouca vergonha em que ainda custa a acreditar. Mas, apesar disso, a malta manteve-se unida, descobriu novas solidariedades, percebeu que assim, em isolamento, pode chegar mais longe do que com as pernas e com os aviões, percebeu que o afecto está dentro de nós e não no que nos é exterior. E percebeu que por muitos quilómetros e muitos meses que separem os que se amam, há sementes que germinam incessantemente dentro de nós mantendo a seiva de que a vida se alimenta.

Por vezes emociono-me. Como lá acima disse, há situações que me levam a crer que há estúpidos por todo o lado e que a humanidade não tem salvação. Mas há outras em que, não estando eu à espera, sou surpreendida por mais uma prova de que o impensável é possível e que, se isso é assim, então quantos mais novos mundos desconhecidos estão por aí, por descobrir...?

O vídeo lá de cima é disso exemplo. O palco passou ser a própria casa, o laço que une os músicos é a vontade de estarem unidos, a harmonia e força que testemunhamos é o bocado da sua vida que generosamente nos emtregam. São novos tempos e novas formas de os atravessarmos. E nesta descoberta há muita beleza. E a beleza é geralmente o ventre fecundo da felicidade por vir.

Eu, pelo menos, acredito nisso e essa crença é, para mim, um bom alimento.

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Pinturas de John Humphreys Johnston

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E um belo dia a todos!

quarta-feira, maio 27, 2020

Elif e Sara, duas mulheres com quem gostava de conversar sobre o que deveria ser o mundo pós-corona





Há mais de dois meses que não compro inutilidades. As compras têm sido apenas as necessárias à subsistência alimentar e à higiene. Tudo o que eram desnecessidades foi esquecido. Se deixei de trazer para casa roupas, perfumes, brincos, pulseiras, tudo coisas de que agora não preciso e que eram apenas objectos que se acumulavam em casa e que iam circulando ociosamente sobre o meu corpo, a verdade é que esse meu desinteresse, aliado ao de muitas pessoas que, tal como eu, poderiam comprar mas não querem e somando-se à impossibilidade de pessoas que, mesmo que queiram, não podem fazê-lo faz com que o consumo baixe para níveis muito perigosos. Não são apenas os donos das lojas que ficam sem escoar os stocks, sem conseguir pagar a renda, sem conseguir pagar os ordenados dos empregados, são também os fabricantes dos produtos (e preocupam-me os fabricantes nacionais) e é tudo o que, em cadeia, corre o risco de, aos poucos, ir começando a desabar.


Mas não são apenas inutilidades que deixei de comprar: foram também livros. Nem sei quando voltarei a uma livraria. E nunca me habituei a encomendar. Tenho uma relação física com os livros. Aliás, se não sou dada a relações platónicas em geral porque haveria de ser platónica em relação a uma coisa de que gosto tanto como gosto de livros? Tantas vezes já aqui falei do prazer que era ir espreitar os livros, fazer-me rogada, fingir que não, olhar de longe como quem não quer comprar, depois, como quem não quer a coisa, ir ver por dentro, passar-lhes a mão pela capa, pelas páginas, tomar o pulso à paginação, ao formato e cor do papel e da escrita, sentir o cheiro, sentir o pulsar da palavra, depois abrir o coração, aos poucos deixar-me cativar, por fim sentir aquele arrepio que vem do coração até ao ventre, aquele prazer antecipado na posse, anda cá que vais ser meu, e ele já na mão, eu já a saber que não vou querer furtar-me, que vou pecar, uma vez mais, pecar.

Mas com estes meus pobres pecados pode o mundo bem. Mas e se mais pessoas estão como eu, sem comprar livros, interiorizando que há é que ler todos os que se têm e para os quais não tem havido tempo? E se as livrarias, em especial as ditas 'independentes', as de bairro, começam a não escoar stocks, a não pagar rendas, a não pagar a empregados? E se as editoras e as gráficas e os próprios escritores deixam de ter quem quem se lembre deles?

E atrás de tudo isto, no fim da linha, chegarão depois os 'danos colaterais': os empregados da limpeza, os de segurança, o enorme batalhão de invisíveis. 

De tudo há o verso e o reverso.


Consumismo é mau. Quebra no consumo -- sem actividades alternativas para absorver o buraco que irá formar-se na economia -- pode ser um pesadelo.

O regresso pós-confinamento e, em especial, pós pandemia deveria ser uma oportunidade a agarrar por todas as pessoas com cabeça. Desde os políticos aos empresários, dos agentes da cultura à academia e etc, toda a gente capaz de ver ao longe deveria pensar e perceber em que novos sectores se deveria apostar, de que forma deveríamos reorganizar as sociedades, como reorientar a formação académica, como passar a olhar para a sustentabilidade do planeta e da espécie humana.

Menos horas de trabalho, mais produção nacional de bens essenciais, mais turismo interno, mais actividades culturais, melhor aproveitamento do tempo de qualidade em contacto com a natureza, ocupação de tempos livres em actividades mais motivadoras, melhor distribuição territorial - não sei. Talvez tudo isto e muito mais. 


É o tempo da Europa se chegar à frente e mostrar como é relevante a história, o humanismo, o respeito pela ciência, pelas artes, pelo ambiente, pela democracia, pela liberdade, pela igualdade de oportunidades, pelo conhecimento -- e criar grandes programas de mudança. 

Países presididos por trogloditas ou por oligarcas ou por ditadores ou ávidos abutres ou sinistras hienas deveriam receber uma lição da Europa. Acho que este deveria ser o tempo dos grandes políticos, dos estrategas, dos bons visionários. E o tempo em que todos nós nos deveríamos elevar acima das intrigas quotidianas, acima da mediania, do diz-que-diz-que, da inveja que é coisa sempre tão medíocre, da falta da generosidade.


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Hoje esteve muito calor mas trabalhei tanto que mal consegui ir à rua. Só consegui por volta das oito da (quase) noite. A meio da tarde, entre duas reuniões, fui a correr (literalmente a correr) pôr um franguinho do campo a dourar no forno. A minha filha também todo o santo dia se debateu ao telefone e em videoconfs, tentando derrubar os escolhos com que se vai deparando no projecto com que estás prestes a arrancar. O meu marido impacienta-se ao telefone, ouço-o irritado, diz que 'aqueles gajos' e 'aquela gaja' não sabem o que andam a fazer. E, pelo meio, impacienta-se com o entra e sai dos netos que até já partiram o trinco da porta. Depois não quer que a porta fique aberta, diz que, se entrar alguma cobra ou algum rato, não venham chamá-lo para os apanhar, e vai fechá-la e, mal acaba de fazê-lo, já está alguém a abri-la. Ao fim da tarde, estava eu finalmente a ver os mails de trabalho, foi chamar-me: Vai lá ver, não param de comer, vai dizer-lhes que parem de comer que já está quase na hora de jantar. Perguntei-lhe: E então? E ele: Eh pah, ontem vim carregado de pão e estou a ver que já não chega a amanhã. E o tabuleiro de fruta já quase se foi. Assim é impossível assegurar alguma logística. Respondi: Só se for por isso da logística porque quanto a serem quase horas de jantar, isso não colhe. Podem comer agora duas sandes com azeite, tomate e orégãos e rematar com uma maçã e uma pêra que, vais ver, sentam-se à mesa e é como se não vissem comida há mais de uma semana. Portanto, fui ter com eles e perguntei: Então, meus amores, precisam de ajuda para mais um lanchinho? Disseram que não, que arranjam sozinhos, que o avô é que não percebe que eles estão sempre com fome. E o curioso é que não são gordos, nem um pouco. Mas também correm e saltam e brincam tanto que tudo o que comem se transforma na energia que os move. 


Agora que aqui estou, sozinha na sala, tarde e más horas como é costume, estive a ver os vídeos que o YouTube tem para me mostrar e este é, para mim, um momento de descanso, de descontração. Partilho dois que prenderam a minha atenção. Não sei quem é esta escritora nem esta pintora que aqui falam. Mas gostei de as ouvir e ver. Gosto de ouvir pessoas assim, que falam de coisas assim. Ao ouvir Elif, a escritora, lembrei-me o dia em que dei boleia a uma estrela em ascensão, uma mulher que meio mundo diz que é promissora, alguém que já começa a dar que falar. Às tantas diz-me ela: 'Ler, não leio, não gosto. Nem tenho tempo nem paciência'. Eu não queria acreditar no que ouvia. Perguntei: 'Mas nenhum? De nenhum género?' E ela, segura de si: 'Não, nenhum, tenho outros interesses'. Fiquei sem vontade de continuar a conversa, fiquei a achar que trazia um calhau louro com óculos ali ao meu lado. A partir daí, de cada vez que ouço gabar a sua inteligência e assertividade, encolho os ombros e esforço-me por fazer um esgar discreto mas não tão discreto que não percebam que aquela ali não me convence.


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E depois das recriações de pinturas célebres por parte de uma mulher que, durante o confinamento, se diverte a fotografa a sua mãe de 83 anos (que deve, igualmente, divertir-se à brava), aqui estão os dois vídeos de que acima falei. Gostei de ver, repito. Espero que também gostem.




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Saúde e love, meus Caros. 
E façam o favor de se portarem mal, está bem?

terça-feira, maio 26, 2020

Plantananã -- ainda sobre a tal reunião ministerial, tudo o que há a dizer


Nestes dias bons, quentes e alegres, não tenho conseguido ver noticiários. Às oito é hora de banhos, de pôr a mesa, de janta. A minha filha diz que os meninos são o meu consolo. Comem de dar gosto e eu gosto de mesa farta e de quem saiba apreciar o meu tempero e coma com vontade, sem ser de biquinho. Gostam da comida, têm um apetite de lobos, gostam de estar à mesa a descobrir sabores. O ar do campo dá-lhes boas cores, dá-lhes robustez, energia para dar e vender. Dá gosto. Faço tachadas de comida, uso os maiores tachos, penso que estou a fazer a dobrar. No fim, sobra coisa de nada. 

Depois da cozinha arrumada, assentamos arraiais na sala da televisão, os meninos têm uma bocado licenciado para jogarem aquele jogo de que agora não me lembro o nome ou verem o Friends, série que descobriram e adoram, e nós papamos a nossa dose de Grace and Frankie. Quanto levantam a tenda para debandarem para o estúdio -- os meninos sempre pedindo para ficarem mais um bocadinho, que não têm sono, e a gente a ver-lhes o olho gordo, pálpebra já com vontade de cama, o sono já instalado, rostinhos rosados e fofos como bebés bem nutridos -- eu pego no computador e o meu marido começa a fazer zapping. Um pouco depois estamos os dois perdidos de sono. Por vezes tentamos a RTP 3 mas aparecem umas múmias comentadeiras e debandamos como se víssemos assombração. No nosso mundo actual já não entra gente que vende comentário a metro e diz treta reprocessada. No nosso mundo há é céu limpo e muito estrelado, bicho andando em liberdade, canto de pássaro a toda a hora, pé descalço sobre a caruma, sombra de figueira, orégãos ficando floridos. 

Portanto, se eu quiser falar de notícia eu não sei. Apanho, atrasadas, algumas que já deram muitas voltas ao mundo.

Uma é aquela de um grupo de bandoleiros, chifrudos, macacos irracionais, trapaceiros, iletrados, gente sem eira nem beira sentados a fingirem que são ministros.

Ao meio do bando desclassificado, o pior de todos, um burro cagão, papalvo de meter nojo, sabujo e ordinário, bronco, palerma de dar dó.

Vi e ouvi e fiquei na mesma, sentada em cima da minha indiferença. Gente burra elegeu o mais burro de todos. Tenho pena é dos outros, dos que até devem ter vergonha de pôr o pé fora de porta e haver quem veja que são brasileiros, povo que tem dentro de si um little povãozinho que elegeu um lorpa sem explicação.

Resolvi, portanto, que não era tema com que interrompesse o meu sono. Mas hoje, os brothers da Porta dos Fundos, essa turminha maneira, convenceram-me. 

Aqui vai. Com vossa licencinha, o Plantananã. Bom demais.



As imagens animadas, ali em cima, são de outras ocasiões em que o Jair também mostrou que é bom a valer. 

Chiça.

segunda-feira, maio 25, 2020

É um desnudamento quando escorregamos da pele para fora, para o vazio







Conheço uma pessoa, que não conheço, que me disse que queria ver-se livre das palavras. E, no entanto, para mim ele é feito de palavras. Quando penso nele, penso nas suas palavras. Conhece milhares de palavras e de cada palavra ele conhece o sentido e o anti-sentido e sabe edifícios que as usam como materiais de construção. Há quem de um conjunto de pedras construa uma catedral e ele era menino para fazer o mesmo. Diz que não. Diz que está cansado delas. Mas de uma palavra nascem-lhe ramos de rosas invisíveis, bandos de pássaros inventados, rios infinitos e muito belos, montanhas secretas habitadas por seres nunca antes vistos. O seu mundo é o das palavras e eu estou em crer que ele sente através do que as palavras lhe dizem. Aliás, nem sei se sente ou se apenas constrói pensamentos que, por vezes, às escondidas, falam de emoções. Mas nem disso estou certa. Até porque o desconheço. Mas não acredito que queira mesmo esquecer-se das palavras. Aliás, estou em crer que, sem palavras, ele deixaria de existir. Pelo menos, enquanto pessoa. Talvez se transformasse em bicho. Talvez se transformasse em personagem de uma ficção que jamais quererei descortinar. Mas talvez as palavras também se recusem a abandoná-lo. Há pessoas a quem as palavras nunca abandonam. Há pessoas a quem as palavras correm nas veias e que, se não estou enganada, trocariam um amor e a própria vida pelas palavras. Pessoas que talvez tenham nascido de uma palavra e cuja vida seja a insana luta para descobrir a palavra de que nasceram.


Estive a ler aquele livro que a querida JV em boa hora me recomendou: O rei faz vénia e mata. Lá se fala de palavras, daquelas que parecem coladas aos objectos, daquelas que a gente pensa que conhece, daquelas que queremos que voem para muito longe, daquelas que escondem segredos. Palavras que não descrevem nada, palavras que existem sem razão, palavras a quem ninguém conhece, palavras sem carne, sem veias, sem escamas, palavras que só existem noutras línguas e que querem dizer coisas estrangeiras, que nos são estranhas. Ou não diz nada isso e sou eu que agora estou  a inventar o que estou a escrever? 

Por exemplo: o homem feito de palavras e que quer esquecê-las existe? Não sei. Não sei mesmo.

As palavras que eu escrevo sobre as palavras e que fotografo existem ou são meras pinturas de coisa nenhuma?


Há um lado secreto de mim, habitado por outras que não eu, outras que desconheço e a que apenas o homem das palavras tem acesso. Mas, como ele não existe, é como se ninguém a elas tivesse acesso. Ele não sabe falar comigo e eu não sei falar com ele. Por vezes, penso que ele fala a mesma língua nocturna que uma das outras que me habita mas, quando a noite se fecha, eu desapareço e dele não sei mais. A noite é um país desconhecido feito de labirintos que são percorridos por criaturas silenciosas que gostam de percorrer caminhos sem fim que acabam quando a noite acaba.

Caprichos negros, raivosas melancolias, ânsias da cor das nuvens que se avolumam no mar -- extrai Herta Müller da Explicação dos Pássaros de António Lobo Antunes para o colocar no livro de onde extraí eu o título deste post. 
E eu leio e gosto de ler. Não sei se são palavras que façam sentido mas as palavras que fazem mais sentido são palavras assim, intemporais, desligada da geografia em que foram proferidas.
Se, por exemplo, eu disser que caminhei, um dia, sobre uma estrada que descia e que voei ao lado de canteiros de flores e que do nada, dessa varanda encantada, nasceu um abraço prometido, um sorriso eterno, uma surpresa sem palavras e um fio que se estendeu pelo infinito, para sempre eu presa a esse fio, e que, por ele, enfrento minotauros enlouquecidos e desfaço tapeçarias que invento todos os dias, será que alguém pode levar a mal que nada se perceba do que digo? 

A liberdade de cerzir palavras -- construindo esconderijos, recantos, segredos, loucuras, fantasias, promessas, pedrinhas, conchinhas, caligrafias, gestos perfumados, pétalas de flores indecentemente sedosas, lânguidos sussurros de inexistentes leopardos azuis, gritos de pássaros loucos, memórias acarinhadas como raros tesouros, sombra de árvores acolhedoras como ventres maternos, gatos deslizando no silêncio da noite, sonhos, bordados, umas mãos que nos esperam -- essa liberdade ninguém me tira.  Mesmo que nada faça sentido. Aliás, sobretudo se não fizerem sentido. Já o confessei. Não quero despojar-me de palavras, gostava era de ser capaz de dizer coisas que fizessem sentido para outras pessoas como se fossem elas que as tivessem dito. Ou que façam sentido num outro lugar, num outro tempo, como se eu tivesse renascido para as dizer, como se eu tivesse que inventar uma pessoa para gostar de me ler.


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Hoje à noite apareceu um pirilampo. Estava na parede, junto à porta, do estúdio. Luzia como se não fosse possível. Vê-se e custa a acreditar. A natureza é cheia de improbabilidades. Há muitos anos que não via um pirilampo. Os meninos nunca tinham visto e creio que a mãe deles também não. 

O gato, que a minha filha diz que é uma gata, senta-se agora sobre a mesa de pedra que está em frente da sala. Vê-nos a olhar para ela e deixa-se ficar a olhar para nós. 

Os pássaros têm cores cada vez mais vistosas. Hoje esteve aqui um à porta que tinha o papinho num verde pistácio. Saltitava de alegria. E as rolas andam muito próximo, vivem nestas árvores que eu plantei e que agora roçam o céu. São lindas.

Há inúmeras lagartixas, perfeitas, ágeis. Não sei a que se deve. Parece-me um milagre a existência de todos estes animais.

A borboleta amarela que todos os anos me acompanha enquanto caminho veio de novo ao meu lado, minha guardiã, minha alma efémera e fugidia, minha alma todos os dias renascida.


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E, a propósito de coisas que parecem estranhas e sem sentido mas que, de tão inusitadas se tornam insólitas e especiais, deixem que partilhe convosco um vídeo que me prendeu do princípio ao fim sem que eu saiba dizer porquê. Parece-me uma coisa meio louca, sem nexo, insustentável. E, no entanto, uma coisa tão bonita, tão transcendente, tão indefinível.


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Desejo-vos uma boa semana.

Saúde e motivação. E que a beleza das coisas não vos abandone.

domingo, maio 24, 2020

Daqui por uns anos, como recordarei este mês de Maio?





De tarde, estive a ver com atenção aquele bicho que a minha filha fotografou. Está no telemóvel dela pelo que não posso mostrar-vos. Tem umas mãozinhas com uns dedinhos redondos, tem picos no dorso, não tem rabo. Estávamos na sala da minha mãe e vimos um animal colorido, igual. Foi o meu tio que lhe trouxe ao vir de um passeio a Barcelona. A minha mãe esclareceu: do jardim do Gaudi, acho. Mas fico na mesma. Um dos meninos foi ver ao google e disse que, se calhar, é um lagarto espinhoso. Mas as mãos não parecem ser e os picos não são bem assim. Iguana não é. Talvez um misto. Se calhar um bicho misterioso made in heaven.

Ao fim do dia, ao regressarmos, o menino mais novo pegou num pau e, de mangas curtas e descalço, foi em silêncio fazer uma caminhada com a mãe e com o irmão. Disse que queria meditar. Disse que, por estar a meditar, não sentia frio. E estava frio mas eu percebo-o pois eu, que fui também caminhar e fotografar, fui também a vogar acima das coisas terrenas e também não senti o frio. Quando chegou cá acima, perto da casa, sentou-se no caminho, virado para o pôr do sol, e ali ficou, sempre em silêncio, em total comunhão com o espaço, com o momento. Fotografei-o lá de baixo e continuei a minha caminhada. A minha filha disse que ele depois se deitou. É um menino surpreendente.


Ao jantar comeram como dois lobos apesar de terem lanchado como gente grande. Esse menino, o mais novo, disse que a quarentena tem coisas boas. Por exemplo, se não fosse a quarentena não estariam tanto tempo aqui. Referiu também que, se não fosse a quarentena, a mãe não teria feito o doce folhado com creme de pêra. Nem a lasanha. Aí o mais velho, que ouvia aquela conversa sem se desviar do seu ataque ao prato, observou: 'Embora a lasanha não estivesse assim tão boa...'. Aí a cozinheira encheu-se de brios: 'A segunda estava melhor. Na primeira é que as placas ficaram duras'. O mais velho confirmou: 'Pareciam de pedra'. Ela explicou: 'Com isto, deitam-se fora as embalagens exteriores e por isso fica-se sem as instruções. Por isso, segui a receita. Coloquei-as directamente sem as amolecer antes'. Também já me aconteceu mesmo. Nunca mais fiz lasanha por causa disso.

Perguntei-lhes se não tinham saudades dos colegas. Que sim. Mas sem grande entusiasmo. Começam a habituar-se a estar com eles por via remota. Adoram estar aqui e isso compensa-os das saudades dos colegas de carne e osso e dos jogos de futebol.

Quando estávamos em casa da minha mãe, ligámos nós para os outros meninos pois tinham-nos ligado antes de lá chegarmos e queriam ver a bisa. O bebé ficou admirado de estarmos todos de máscara. Ficou sério, intrigado. Quando nos falamos nos outros dias andamos aqui à vontade mas, se vamos a casa da minha mãe, queremos que ela ande de máscara e nós, logicamente, também.

Tempos difíceis.


Só de pensar em protocolos de distanciamento, máscaras, descalçar sapatos, cuidados a toda a hora e etc. já me apetece manter-me aqui, em reclusão. Temos que nos ir habituando e temos que saber viver com o merdinhas por aí à solta, insignificante e invisível. Mas, nisto como em muito mais cenas nesta vida, é difícil perceber qual a fronteira entre o andar à vontade ou andar à vontadinha. E eu, que não sou muito de me preocupar com fronteiras, só de pensar nestas coisas até parece que perco a vontade de sair de casa ou de fazer visitas.

No regresso, ao sentar-me no carro, tirei a máscara. Quando parámos na estação de serviço e resolvi entrar para comprar gelados para todos, já não sabia dela. Estava no chão, eu já com os pés a roçar nela. O meu marido abanou a cabeça. Felizmente tinha trazido uma de tecido que era a que ia pôr antes da minha filha dizer que aquilo não protege coisa nenhuma. Mas dadas as circunstâncias tive que a pôr. Quando fui pagar os gelados, o rapaz pegou neles e revirou cada um à procura do código de barras. E eu a olhar para aquilo e a pensar: agora a seguir vou eu pegar no papel plastificado no qual ele mexeu e remexeu. E odiei aquilo. Odiei os meus receios. Odiei esta situação. Fico sem saber se é excesso de zelo da minha parte ou se é mesmo assim. Fico a achar-me parva, ridícula. Quando cheguei ao carro, abri as embalagens e cada um tirou de lá o gelado sem mexer na embalagem. No fim da manobra, limpei as mãos com álcool-gel. As embalagens ficaram no chão do carro. Uma estupidez tudo isto. Uma pessoa virada do avesso, o mundo virado do avesso. Não tenho pachorra.


Gostava que a minha mãe fosse para a universidade sénior. Não pode. Está fechada. Antes andava na ginástica. Agora está o g ginásio fechado. Dantes as amigas visitavam-na. Agora imploramos-lhe que não as receba. Dói-me tanta restrição, tanta impossibilidade.

Uma coisa que me incomoda, esta porcaria da covid. Prefiro nem pensar muito nisto porque sinto sempre que me faltam várias peças para conseguir desenvolver um raciocínio escorreito. Penso: se fosse muito contagioso, não havia duzentos e tal por dia, havia milhares. E porque é que o R0 anda abaixo de 1? Ainda não há gente imunizada em número suficiente para partir as pernas às cadeias de transmissão. Mas depois vejo que numa missa no Reino Unido ficaram uns quarenta infectados de uma só vez. Como? Toda a gente tossia uns para cima dos outros? Não pode ter sido isso, já toda a gente foge a sete pés de quem tosse. Não percebo. Quantos para lá entraram já infectados para terem contagiado tanta gente? Que porcaria de coisa é esta em que uma pessoa não consegue juntar as peças e fechar o puzzle?

Raios partam o infectado do corona.

Mas adiante.


Posso é dizer que o tempo tem estado uma maravilha e que ao fim do dia a luz está linda e que, quando estou prestes a ir-me embora ou quando estou longe, é desta luz que mais sinto saudades, sinto falta, sinto carência, sinto o peso da ausência. Quando se gosta muito de uma coisa ou de uma pessoa a gente sente que vem de lá uma luz que nos envolve e alimenta. Penso que é isso que faz verdadeiramente a diferença. Às vezes não se sabe, de certeza absoluta, se aquela pessoa, aquela casa, aquele quadro, aquela música são os tais. Mas é simples: quando se duvida é porque não é, porque, quando é, a gente sabe, a gente sente que sim -- porque tudo se ilumina, não apenas em torno do que amamos como a luz do amor também nos ilumina a nós, ao nosso olhar, à nossa alma. E sentimos que não há dúvida possível porque a luz é o maior aliado do amor. E o meu imenso amor por este lugar abençoado tem muito a ver com a luz que envolve as árvores, as flores, os muros, os caminhos, a mim, a todos. Fotografo tudo. A flor, a pedra, a árvore, os muros. Em tudo a luz pousa com doçura e de tudo vem uma luz dourada que me adoça e aquieta a alma.

E soube agora que morreu a Maria Velho da Costa. Tenho vários livros dela. Vai pesado este mês de Maio. Mas não quero falar nas trevas que associamos à partida, prefiro continuar a pensar na luz dourada que envolve a nossa memória quando recordamos aqueles que amamos mesmo que se tenham ido. Estão para lá do visível. Mas estão lá.


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E um bom dia de domingo.

sábado, maio 23, 2020

Na volta, está na altura de eu fazer um post a dizer que é 'porque hoje é sábado'





O que se passa é que nos pomos a ver a Grace e Frankie -- e quase começo a perceber aquela pancada de quem se põe a ver séries e papa às dúzias de episódios por dia -- e depois, quando vão para os respectivos aposentos, já eu estou mais lá do que cá e hoje adormeci de vez e, quando comecei a acordar, fui ler os comentários e os mails e ver se o mundo estava no mesmo sítio e, entre adormecer e querer acordar e querer ganhar energia para responder capazmente aos comentários, o tempo foi passando e agora já são quase três da manhã e estou com a cabeça vazia, sem argumentos, sem convicções, sem memórias, sem vestígios de opiniões, incapaz de dizer o que quer que seja.


Gostava de falar da fauna que nos aparece e nos surpreende mas também não consigo que os dedos se abalancem a tanto animal. Hoje até um misto de lagarto e criatura pré-histórica apareceu, e isto viu a minha filha que, para o atestar, tirou uma fotografia. Não sei. E ouvimos distintamente os burros a zurrar não se sabe onde, algures na serra ou no vale ou os mugidos das vacas que pareciam vindos logo dali. Qualquer dia, quando dermos por ela, estamos com uma vaca ao lado.

Ontem, enquanto estava na espreguiçadeira, chegou um cão e, enquanto fixava a minha filha, alçou a pata e urinou no portão que separa a casa do telheiro. E não sei se já vos falei do ratinho que por ali andou a saltitar, no meio da lenha, também debaixo do telheiro, nos degraus que vão do jardim para a zona das laranjeiras, completamente desorientado por se ver no meio de gente aos gritos. Acabou por fugir para o campo e ainda deve estar a processar o que lhe aconteceu. Dos pássaros nem vale a pena falar. Há-os de todas as cores e cantam de dar gosto. E borboletas? tantas. Belíssimas. Hoje veio uma amarela ao meu lado, de um amarelo vivíssimo, escandalosa de tão bela.


Não sei como vou conseguir viver na cidade depois desta experiência imersiva no campo profundo, dias inteiros sem se ver vivalma que não nós, os da casa. 

E é isto. Queria falar das virtudes do teletrabalho e de como seria bom para o país, em especial para o interior, se as pessoas pudessem trabalhar a partir de onde quisessem (isto no caso em que as funções o permitem, claro) mas a verdade é que ainda não aprendi a dosear a forma como deixo que o trabalho me absorva e, talvez por isso, chego ao fim do dia a precisar de descanso. Apesar disso, voto a favor até porque o mal deve estar em mim que sou de excessos.

E pronto, é isto. Espero que, já que daqui, do que escrevo, hoje não dá para mais do que isto, gostem da boa onda das músicas que me apetece partilhar convosco.


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As fotografias mostram as esculturinhas que Salavat Fidai esculpe na ponta dos lápis. Há malucos para tudo e este é dos criativos.
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E um belo e caloroso sábado!