Mostrar mensagens com a etiqueta Liszt. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Liszt. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, maio 20, 2021

Nesta vida, o que é que faz sentido?

 



Os hábitos mudam. Dantes, não assim há tanto tempo, ia uma meia dúzia de vezes por ano a Madrid. Eu gostava muito de Madrid e chegava a dizer que não me importava de lá viver. Estudava as exposições, avaliava as que valiam a pena, estudava a melhor altura para as visitar. E antecipava o prazer de andar no Retiro no meio daquela tremenda diversidade dos domingos de manhã. Vinha de lá carregada de fotografias. Tudo me agradava: a arte, os jardins, a alegria das pessoas, as lojas, os restaurantes. 

Até que, por isto ou por aquilo, as viagens foram ficando mais esparsas. Agora, se penso em Madrid, não sei bem o que lá me atrairia. 

Os museus de Paris ou de Amesterdão também são daqueles aos quais haverá sempre mil razões para lá voltar. E, no entanto, se pensar em ir passear, não me ocorre ir para lá.

É estranho, isto. 

Apetece-me passear mas, se pensar onde quero ir, só me ocorrem lugares por aqui mesmo, por perto. Ir até à Gulbenkian, por exemplo. Ir descobrir parques, ir a pequenos museus, coisas assim.


Se calhar é outro dos efeitos colaterais do confinamento. Vi que, no dia em que abriram a cancela aos turistas, aviões carregados de ingleses aterraram no Algarve. Ainda bem mas, numa altura destas, não consigo perceber esta atracção pela fuga.

Hoje falaram-me numa pessoa ainda jovem que, supostamente, terá apenas cerca de três meses de vida. Não sei como se vivem esses três meses. Não sei se será possível racionalizar, desdramatizar, programar, com a qualidade possível, o que falta para viver na plena posse das faculdades.

Nunca me hei-de esquecer da cunhada de uma amiga que, sabendo que estava às portas da morte, deu largas à sua vontade de cantar. Surpreendeu toda a gente: parecia a Janis Joplin. Fazendo anos a poucos dias do que sabia ser o seu fim, já de cama, muito mal, pediu de presente um blusão de cabedal. Eu ouvi isto com a perplexidade de quem ainda não sabia nada da vida. 


Nessa altura eu achava que as coisas deviam fazer sentido. Hoje sei que não. Hoje sei que mais de metade do que fazemos não faz qualquer sentido. Pode é fazer-nos sentir bem e isso é bom. Não devemos abrir mão do que nos faz sentir bem.

O que se faz quando se percebe, com todas as letras, aquilo que passamos a vida a ignorar, que a vida é finita? Como nos despedimos dos filhos, da sua inocência e amor, do companheiro e amado, das flores, do céu, da vista que temos da janela, dos passos que damos na nossa casa, do sol que entra pelas janelas?

Recordo-me de novo do momento em que, numa descida a caminho de uma movimentada rotunda, o meu carro perdeu os travões e, desgovernado, avançou a grande velocidade contra o que encontrasse pela frente e de como pensei, naquela breve fração de segundos, que se calhar estava a viver os meus últimos momentos e que nem tinha tempo de pensar em cada um dos meus amores. E penso como vivi esse momento sem pânico, apenas com essa prosaica constatação. E, depois do embate, lembro-me bem de, com o carro amachucado, meio no ar, meio de lado, a fumegar, abrir a porta, perceber como sair de lá e, já cá fora, ficar um bocado atónita a pensar que estava viva e sem perceber se estava ou não magoada, inteira. Apenas perplexa. As pessoas vieram a correr ter comigo, vinham aflitas, largaram os seus carros de qualquer maneira, e eu estranhamente calma, tentando perceber se nada em mim se tinha quebrado ou partido. Mas calma. O carro estava de tal maneira que foi declarado perda total. E eu apenas intrigada com a sorte que tinha tido. Aliás, sem perceber como era possível que estivesse ali, viva, a poder dar testemunho do que tinha acontecido. Chegou um carro da polícia, saltaram de lá os polícias, queriam que eu fosse para o hospital. E eu, como que anestesiada, sem precisar de nada. Liguei a um colega e pedi que me levasse. Ele espantado. Cheguei, sentei-me à secretária e comecei a trabalhar como se nada se tivesse passado. Aliás, do que me lembro, nem quis mais saber do carro. 

Tudo muito estranho.

Talvez que, quando a despedida é breve, seja assim, irreflectida e indolor. Quando tem prazo não imagino como seja.

Mas nem é bom pensar nisso. Nem sei porque falei nisto. Não vinha nada a propósito. 


Respectivamente, pinturas de Dali, Magritte, Krøyer e Montferrier, obras em exposição em Paris na companhia de Khatia Buniatishvili a interpretar o Liebestraum No. 3 de Liszt

_____________________________________________________

Saúde e alegria, seja qual for o tempo que estiver pela frente.
Enjoy 

segunda-feira, setembro 21, 2020

Uma mulher poderosa encanta-me no dobrar de mais um dia em que tentei (mas não consegui) esfolar um rabo que está pendente e que não se compadece com as minhas beautiful flowers

 




Tenho cada vez mais para mim que se todos nós, colectivamente, fizermos um esforço para não perdermos tempo com tretas como as lágrimas do populista-achegado ou com outros pseudo-eventos ou com outras pseudo-pessoas-importantes mais depressa essa gentinha perderia protagonismo e melhor saúde mental todos teríamos. 

Cheguei aqui, agora, e todas as notícias internas me parecem treta. Pura treta. Não estou nem aí.

Mas, reconheço, também pode ser porque dias como o de hoje me deixam a deitar por fora.


Apesar de não ser nada de novo ou interessante, conto porque é que o meu dia me foi tão sobrecarregado: as idas à outra casa (eu para separar roupas para dar, outras para o lixo, outras para trazer, o meu marido com selecção de papeladas, projectos de arquitectura transactos, dossiers e dossiers de trabalhos em versões anteriores à definitiva, coisas assim) esgotam-me. Horas. Sacos e sacos e sacos. O meu marido também exausto. Tudo o que é trabalho pesado sobra para ele: carrega com sacalhões pesadíssimos, uns para os contentores da rua, outros para o carro. 

Mas, enfim, pelo menos já trouxe os meus casacos de malha, os meus blasers, as minhas calças. É que a prioridade tinham sido louças, coisas de cozinha, livros, bibelots, candeeiros, móveis essenciais. De roupa tinha trazido sobretudo a de verão, que era o que fazia falta. Mas o outono já aí está e eu já andava sem saber bem o que vestir. Mesmo aqui em casa, quando anoitece e esfria, eu olhava para o guarda-roupa sem saber bem a que deitar mão. E esta semana tenho compromissos presenciais que me exigem que as minhas toilettes anteriores saiam à cena. 

E depois há alguns fatos completos de que, embora já me estejam à justa, não quero desistir assim tão facilmente. Aquele elegantésimo e superlativo fato Armani que foi presente do meu marido, que conseguiu acertar com o meu tamanho e que, ousando à grande, sem que eu tivesse minimamente suspeitado de tal ousadia, conseguiu que me assentasse como uma luva -- esse tive que trazer, claro. Ou aqueloutro que comprei em Madrid depois de ter percorrido os costureiros da Serrano e de me ter posto nas mãos de uma bicha fantastique que adivinhava todos os meus gostos -- que conjunto mais lindo, aquele - quando fui a um casamento de sonho em Seteais, esse também teve que vir. Peças assim, intemporais. Não gosto de coisas tchanan...!, gaiteiras, espaventosas, datadas. Prefiro peças que não passam de moda. Ou seja, dessas, apesar de já me caberem à justa, não ia desfazer-me. E quem sabe, um dia destes, alguma das meninas da família não precisa de alguma destas fatiotas para uma ocasião especial?

No fim, quando já não aguentávamos mais -- cansados, desidratados, saturados -- e enquanto o meu marido andava abaixo e acima, ainda varri, passei com a esfregona, garanti que as casas de banho estavam impecáveis, que as luzes estavam apagadas. Fechei a porta e vim. Aquela casa, que era a minha casa de sonho até há pouco tempo, agora já pouco me diz. Quando viro as costas e fecho a porta, o que fica para trás é passado. Apesar de gostar de visitar as minhas memórias, a verdade é que parece que sou toda feita de futuro.

Como já era tarde, encomendámos uma pizza e, a caminho da casa nova, fomos buscá-la, a pizzaria já a fechar. 

Depois foi aquela frustração: o hall e o corredor da casa nova uma vez mais atafulhados de sacos, mais coisas para arrumar, eu já sem saber como distribuir as coisas. Na cozinha, algumas peças sem caberem onde faria mais sentido e, claro, a impaciência a ir ganhando terreno. Cansaço e fome à mistura é do pior que há.

Enquanto a pizza foi apanhar um aperto no forno, nós fomos tomar banho. E, com isto tudo, acabámos a almoçar às cinco da tarde. 

Não vejo a hora de esvaziar os armários todos, de trazer tudo e deixar a outra casa finalmente vazia para poder usufruir de tempos livres sem ter a necessidade de os anular, sempre a tratar de tudo o que há sempre para tratar. Até porque, quando for vendida, não pode lá ficar nada. O meu filho que, quando saíu de casa, não tece paciência para levar nada nem escolher o que era de guardar ou deitar fora, continua sem paciência para se atirar a isso. Dossiers da faculdade, livros, coisas de computador, sei lá o que para lá ainda há. Hoje, ao abrir gavetas do quarto da minha filha, dei com roupa interior dela. Não a deitou fora e eu não gosto de deitar fora coisas que não são minhas. Hoje aproveitei algumas peças. O resto, que estava ainda em bom estado, pus num saco também para dar. 

Na verdade a casa parece quase vazia mas, na verdade também, ainda com coisas que não acabam.

Bem.

Ah, e fiz o jantar em dose XL para dar para o almoço também de amanhã. 

E, finalmente, quando o sol estava de fugida, ainda fui para a espreguiçadeira ler mais um pouco. Uma bênção. Uma meia hora de descanso e bem-aventurança. 

Depois fiz telefonemas enquanto passeava para trás e para a frente no jardim, fotografando as flores que me trazem apaixonada. Tão lindas, tão perfeitas. Divindades silenciosas.

Mas tudo o que é bom não pode ser em grandes doses pelo que, de seguida, tive que entrar em casa para passar a ferro e sei lá mais o quê.

Portanto, como é óbvio, com este programa de festas, não quero cá saber de minudências e banalidades. E, assim sendo, para aqui tenho estado a ouvir música. Música poderosa, intérpretes poderosos. Em especial uma mulher poderosa. Poderosa em todos os sentidos. A destemida Yuja Wang mostra como se atira a tudo com uma energia que contagia. Mulheres poderosas e, ainda por elegantes e femininas, são uma graça. E um perigo.


___________________________________________________

E nada mais a declarar. 

Quando voltei ao jardim já a noite vinha descendo. Lá em cima, entre o piar discreto das aves nocturnas, uma nesga de lua. Fotografei-a. Ainda não tinha reparado na lua desde que aqui vivo. Gostei. É uma boa companhia, boa como todas as companhias que são cheias de subtilezas.


Desejo-vos uma boa semana, com muitos momentos bons, com boas notícias. 
E que a saúde e a boa sorte vos acompanhem.

sexta-feira, julho 31, 2020

A minha dúvida existencialista a propósito das arrumações





Depois da melancia, não sei o que posso escrever mais pois tenho ideia que é preciso ter cuidado com o que se ingere a seguir, parece que a dita pode encortiçar. Na volta é mais um daqueles mitos urbanos. Mas, por via das dúvidas, tenho que ter cuidado com o que vou dizer a seguir. 

E o que tenho a dizer -- passando ao lado das grandes causas da humanidade e dos casos algo complicados com que tive que me deparar ao longo do dia -- é que, ao fim do dia, voltei às minhas arrumações. Deixei quase para o fim um móvel que tenho na sala de jantar. Há o louceiro e há o aparador. O que mais temia era este aparador: uma verdadeira arca do tesouro. Cheio como um ovo com tesourinhos deprimentes. Tremo de lá mexer. Ao longo de anos fui para lá enfiando tudo e mais alguma coisa. Coisas do enxoval, coisas herdadas, presentes que diferentes ofertadores e que atravessam épocas, estilos díspares, utilidade por vezes duvidosa. Numa ginástica que desobedece às leis da física, encaixo, sobreponho, enfio. E lá fica tudo, esquecido.


Em dias de festa ou de maior número de comensais, tenho que me afoitar e, quase a tacto, enfiar a mão e, devagar, qual jogo do micado, tirar a travessa, a terrina, o balde gelo ou a taça de vidro em forma de morango para servir os morangos, de maneira a que tudo não se desmorone e não aconteça uma desgraça. Depois, no fim do dia, depois da louça lavada, é o castigo final: conseguir que o espaço volte a acomodar a peça que, à primeira, à segunda e à última vista, parece não caber. 

Há bocado, quando o meu filho me ligou e perguntou o que temos feito, lá lhe contei que continuo (continuamos) nesta faena, que parece que não acaba, que aparecem peças em quantidade infinita. Ele passa-se: diz que nada daquilo serve para o que quer que seja, que só serve para encher, que não percebe, que nada daquilo tem qualquer valor. Pergunto-lhe se acha que deite fora serviços da vista alegre, travessas e terrinas de valor, garrafas de cristal, coisas assim. Diz: cristal é aquela coisa que é feita de chumbo. Digo que pois é mas que deve estar inertizado, que não deve ter problema, são peças atlantis, coisas de valor, não vou deitar fora. Diz que não se lembra de eu servir vinho ou água naquelas garrafas de cristal. Pois não, tem razão, mas é que acho que não se justifica, sei lá, tenho medo de partir. Digo: quando eu e o teu pai formos desta para melhor, tu e a mana fazem um leilão. Ele diz: podes fazer isso em vida. E pronto, ficamos assim. Esta conversa é recorrente. Os meus filhos não ligam muito para este género de coisas. Nem muito nem pouco. E eu, para dizer a verdade, acho que agora também não. Mas as coisas foram-se juntando. Vou fazer o quê com elas?


O meu marido, neste processo, ficou com o pelouro das estantes. Sim, que posso ser maluca mas parva acho que não sou. Não me arriscaria a pô-lo a mexer em louças e vidros. Assim como assim os livros não se partem. Mas, quando vou ao pé dele, está passado. Diz que encontra livros absurdos, que não percebe porque foram comprados. Para alguns encontro explicação. Para outros não. Coisas que vêm de mil anos antes, que se vão adquirindo porque se resolveu fazer uma colecção, sei lá. Diz-me: metade deles iam mas é para o lixo. Aborreço-me. Jamais (dito em francês, se faz favor). 

Mas a verdade, verdadinha, é que, por dentro, fico cheia de dúvidas. E das existencialistas que são as que custam mais. Dúvida existencialista é como bolha do sapato a roer o pé. Para que ando eu com tanta tralha agarrada a mim? Mas, se não quiser andar, faço o quê? Desfaço-me de peças valiosas? Não sou como a minha avó paterna que vendia por tuta e meia propriedades no Algarve porque os filhos não davam mostras de ligar àquilo, não queriam saber da apanha das alfarrobas ou das amêndoas. Quando davam por ela, já ela tinha despachado tudo. Ou a minha avó materna que tinha um móvel que eu achava o máximo e que, quando um dia disse que gostava de ficar com ele quando ela não o quisesse mais, obtive de resposta: Onde é que isso já vai... Já o vendeu a um antiquário qualquer que por lá passou a saber se ela queria desfazer-se de algumas coisas. Desfez-se do que calhou, sem ligar a nada. Família desapegada a minha. Quando os meus avós morreram, quer os paternos, quer os maternos, nenhum dos meus primos quis o que quer que fosse. Eu sim. Coisas simbólicas. A enxada do meu avô, o cadeirão onde ele via televisão, os copinhos de vidro coloridos da minha avó. Tive pena que já não houvesse a grande avenca que estava no parapeito da sala, numa janela com as portadas meio fechadas porque 'a avenca gosta mais do escuro e do fresco'. Dou valor a coisas que têm vida agarrada.


No fundo, no fundo, prefiro a simplicidade, os ambientes arejados. Mas o que faço a tudo o que a vida me foi pondo no regaço?

------------------------------------------------------------------------------------

Bem, isto vai longo demais, tenho que parar. Começo a escrever e distraio-me. Sorry.

As fotografias são da autoria de Terry O’Neill e achei por bem ir buscar Liszt, La leggerezza, pela mão de Martha Argerich 

------------------------------------------------------------------

E, como agora ando numa de coisa divertida e sorridente como forma de vos dizer 'até já', aqui vos deixo com mais um destes vídeos deliciosos e ternurentos. Have a big smile.


E queiram descer caso queiram aprender a comer melancia em sociedade

E um dia feliz. Saúde e alegria.

quinta-feira, janeiro 31, 2019

Jardins e suspiros





Tanto trânsito, tantos acidentes. A grande e bela cidade tem isto de mau: muitos carros em circulação. E, quando vem a chuva, vêm os acidentes. Hoje passei por vários. Felizmente, não vi feridos. Num deles, dois carros amachucados e uma mota literalmente desfeita. Impressionante o estado em que estava a mota. Mas não havia ambulâncias, apenas pessoas com coletes, trocando informações. Por isso, porque olho e não vejo sofrimento, não me compadeço. E repare-se que digo que olho não porque me detenha a olhar, empatando ainda mais o trânsito, mas porque, dada a redução de vias, quem conduz não tem outro remédio senão ir a passo. E o que acontece é que uma pessoa, às tantas, só quer é poder chegar ao destino a tempo e horas e já fica é furiosa por não o conseguir, enredada naquele horrível pára-arranca. Quer-se lá saber se é só chapa ou se algo mais, quer-se é passar ao largo e seguir viagem. E digo isto com total franqueza, sabendo que pode parecer insensibilidade, porque a verdade é que tanto tempo perdido todos os dias já nos torna impacientes, indiferentes. E, no entanto, quem se vê metido nesses assados também não tem culpa, não o faz de propósito.


Naquela altura em que parecia que tinha uma nuvem negra a pairar em cima de mim, maçadas e pressões por todo o lado, na mesma semana bateram-me duas vezes por trás, escaqueirando-me o carro. Numa das vezes foi de tal forma que o meu carro saltou e foi espetar-se no da frente, ficando o carro também espatifado à frente e até de lado, tal a violência do impacto. A seguradora chegou a equacionar perda total. Em qualquer das vezes eu estava parada. Em qualquer dos casos, quem me bateu, fê-lo por distração. No primeiro caso, o rapaz viu abrir o verde para a fila do lado e pensou que era também para ele, avançando à confiança. Três dias depois, foi um homem de uns cinquenta e tal anos que, passado um bom bocado, quando conseguiu sair do carro, apenas me disse: há dias em que uma pessoa não devia sair de casa. Pediu-me muita desculpa, perguntou-me várias vezes se eu estava bem. Estava enervado, preocupado. Tinha os óculos partidos, a cara e a camisa cheias de sangue, parecia ter o nariz partido. Presumo que, com o impacto, tenha disparado o airbag e lhe tenha feito todo aquele estrago. Não consegui perceber como foi possível aquilo. Estávamos parados e, de repente, o carro veio bater-me com aquela inexplicável violência. O do carro da frente também estava espantado com o que tinha acontecido mas o causador não se explicou, apenas pediu muita desculpa, aparentemente também sem perceber o que lhe tinha acontecido. O que sei é que durante uma meia hora ali estivemos a atrapalhar o trânsito e a atrasar a vida a muitas dezenas de pessoas. Por acaso, agora estou a lembrar-me que nem me lembrei de vestir o colete. Aliás, estava muito vento e os papéis voavam todos. Uma chatice. Quando liguei ao meu marido e lhe disse: 'Bateram-me outra vez' ele fez um tom de voz preocupado, como se fosse o cúmulo da pouca sorte, como se ficasse receoso do que poderia vir a seguir. Como não sou fatalista, não me preocupei demais, fiquei foi arreliada por tanta maçada na mesma semana.


Depois de almoço fui a um sítio sem estacionamento próprio mas com um parque público subterrâneo ao pé. Pois estava completo. Tive que ficar à espera que um carro saísse para que a cancela levantasse. A seguir, tive que dar várias voltas, em vários pisos, até encontrar o lugar vago.

Imagino que quem me lê, tendo a sorte de viver numa terra pequena onde se pode ir a pé para o trabalho, onde, querendo usar o carro, há sempre onde estacioná-lo, nem consiga perceber o que é viver assim, gastando, em média, cerca de três horas por dia dentro do carro.

Há vantagens, claro que há. Há a possibilidade de ter acesso a muitas coisas boas, interessantes. Ainda hoje. Gostei muito. Não é todos os dias que se tem uma sorte destas.

Mas a verdade é que chego a casa, chego aqui ao meu sofá, e só tenho vontade de me evadir. Não consigo falar de temas românticos, não consigo ter vontade de falar de política, não consigo pensar em assuntos com alguma substância. Só me apetece ver vídeos tranquilos, jardins, bailados, ouvir sonetos, sei lá.


Passa da meia-noite, vou ainda fazer um bocadinho de tapete que só eu sei o que vai ser este dia e, se não desligo, se não esvazio a cabeça para acordar brand-new, não vou ter as asas soltas, os pés decididos a descobrir e a fazer caminho, os braços fortes para afastarem todo o mato que se me atravesse, todos os escolhos, a cabeça arejada, os olhos limpos para verem ao longe e pacientes para verem ao perto. Por isso, não levem a mal que me ponha aqui, sossegadinha da vida, a ouvir umas musiquinhas boas, umas boas pianadas, a olhar o verde da natureza, a descansar a alma. Vou buscar um soneto à toa sem querer saber do que diz, só para escutar a beleza das palavras, vou escolher um bailado solto, um jardim no meio da natureza. Fiquem comigo, está bem?.








Be happy. 
Be lucky.

domingo, abril 30, 2017

Estar a levar uma massagem tão, mas tão boa... e adormecer.





Há alturas em que me ponho a marcar passo, quase vencida pelo politicamente correcto. Ainda não escrevi a primeira letra e já as ouço a remorderem que a vida não é só isto, coisas boas e sorrisos, ou que sou uma exibicionista ou que rebéubéu, pardais ao ninho. Embora, em geral, me esteja nas tintas para comentários verdes de raiva -- pois acho que, quem não gosta tem bom remédio, basta não ler o que escrevo -- a verdade é que, volta e meia, parece que me sinto reprimida avant la lettre.

Na verdade não sei se hoje estou assim pelo tema sobre o qual me apetece escrever ou se o ter lido uma notícia triste me deixou desconsolada. Vão desaparecendo as pessoas que, de uma maneira ou de outra, atravessaram a nossa vida. Este sábado foi um cronista que me acompanhou durante anos e me proporcionou belíssimos momentos de leitura, reflexão e gáudio. A minha mãe dizia-me que o meu tio, quando lá vai a casa, está o tempo todo a falar de pessoas conhecidas e de episódios passados e que, de vez em quando se esquece dos nomes e pergunta à minha mãe se se lembra. E que, por vezes, conclui que cada vez há menos vivos nesse grupo de quem fala. E a minha mãe disse-me: 'E é. Vão morrendo'. Fiquei sem saber o que responder porque isto é mesmo assim, a vida parece uma bateria que, apesar de várias recargas, um dia, inexoravelmente, chega ao fim e já não há recarga que lhe valha. Contudo, por muito que racionalmente se pense assim, a verdade é que deve dar muito medo quando se vê que os anos já estão a entrar naquela zona de risco em que, face à esperança média de vida, o que vier a mais já é ganho e em que se começa a sentir uma nostalgia antecipada por se saber que, muito provavelmente, já não se acompanhará a vida toda daqueles que amamos.

Mas, enfim, é o que é.

De resto, falar sobre isto, não é propriamente registo que me agrade.

Portanto, para trás das costas as angústias que, de quando em vez, tentam abeirar-se de mim -- e vou mas é contar aquilo que tinha em mente. Uma coisa boa.


Massagem.

A lista de opções é longa. Massagem só aos pés, outra só às costas, outra qualquer coisa linfática, outra muscular para desportistas (esta que ainda se divide em massagem de preparação ou para depois, para relaxar os músculos mais retesados depois da prova desportiva), outra de reiki, outra de aromaterapia, e várias outras. Perante tanta coisa que me parece boa e outras que desconheço e, por isso, me atraem, fico com dificuldade em escolher. Arrisquei: uma geral, se puder ser um misto de tudo isso, melhor, uma que me deixe descansada.

E lá fui à hora combinada. Já estava à minha espera. Talvez uns trinta e tal anos, quarente e poucos. Olhos verdes, sorriso doce. Toda de branco, descalça.

Despi-me, deitei-me de barriga para baixo, a cara no buraco que há na marquesa. Como habitualmente fui tapada com uma toalha que ia sendo puxada para deixar à vista a zona do corpo que estava a ser trabalhada.

Uma música conhecida que eu, estupidamente, não identifiquei.  Agora, ao escolher uma que se assemelhasse, foi em Lizst que pensei. Talvez. E, ao contrário do que é habitual, desta vez as cortinas para o exterior não estavam corridas. Contudo, dado o ângulo, nada se veria da rua, em especial dos barcos. Mas eu via o mar, os veleiros. Um sensação boa.

E, então, começou a espalhar-me óleo quente e perfumado. Fez, de facto, um pouco de tudo. Começou pelos pés e, logo ali, comecei a flutuar.

Depois foi subindo e vértebra a vértebra, músculo a músculo, foi descontraindo, amaciando. O ar perfumado, a música, a vista -- tudo perfeito. Mas tinha um plus: ela dançava enquanto fazia a massagem. Não tanto com os pés mas com os braços, com as mãos. Ao som da música, ela passava os braços e as mãos pelo meu corpo, ora energicamente, ora com suavidade. Dançava e o meu corpo era, ao mesmo tempo, o plateau e o seu instrumento musical.

Depois de barriga para cima. Uma toalha dobrada a fazer de almofada para a cabeça ficar mais alta. A mesma coisa. Mas aí, embora geralmente eu estivesse de olhos fechados, ia abrindo ao de leve para a ver. Ela nem me via a olhá-la, de tal forma estava concentrada na dança, na música, uma coisa extraordinária, os olhos praticamente fechados, as mãos quase como se tocando piano ou harpa.

Por fim, puxou de um banco com rodas, baixou a marquesa e colocou-se, sentada, atrás de mim. Nessa altura já eu estava toda coberta pela toalha. Puxou-a um pouco para baixo para deixar o colo à vista. E começou então uma massagem que abrangia os braços, os ombros, o pescoço, o colo, a nuca.

E, como será fácil imaginar, aconteceu aquilo que adivinham. Sou de sono fácil. Não durmo muitas horas mas o meu sono, quando caio na cama, é imediato e profundo. Idem, no carro, quando não sou eu que conduzo. Ou no sofá, se estou sem nada que fazer. Imagine-se ali, naquele ambiente, naquela situação de relax total.

Comecei, pois, a sentir que estava a passar para o lado de lá, já meio a dormir. Mas tentei evitar. Sobretudo, parecia-me um desperdício estar a levar uma massagem tão boa e deixar-me de dormir.

Mas ela avançou, massagem na cara, na testa, dos lados, nas maçãs do rosto, no queixo, depois na cabeça, devagar, devagar, com as duas mãos. E aí não teve jeito: caí mesmo num sono profundo. Apaguei.

Acordei momentos depois, não sei quanto tempo decorrido. Falando-me como quase em segredo e tocando-me na mão, pareceu-me ter recebido um subtil sinal de que devereia despertar. Devo ter aberto os olhos, estremunhada. Ela sorriu lá na língua dela que me pareceu ser de leste travestida de espanhol: 'Muito sono...?'

E eu, furiosa comigo mesma, que não era que o sono fosse muito... mas que a massagem era tão relaxante...

Ela sorriu, perguntou se eu tinha gostado.
Sessenta minutos de reiki, aromaterapia, massagem localizada e geral, dança ao som de piano... como não gostar? Pena mesmo é que durante os últimos minutos não tivesse dado por nada.

_____________

E agora que já assistiram à minha sessão de massagem, caso estejam a sentir um certo apelo místico, queiram descer e assistir à refrega polemista que se avizinha. César das Neves desafia duas doutas vozes e afirma, contra todas as celeumas, que ele sabe, porque sabe, que Nossa Senhora apareceu mesmo, em pessoa, aos três pastorinhos

______________

domingo, março 05, 2017

Um dia bom





Ontem à noite, já bem tarde, estive a enviar fotografias à minha filha. No exacto momento em que tinha começado a vê-las e tinha parado numa fotografia dela com o sobrinho mais novo ao colo, recebi uma sms: Se houver alguma foto daquelas q me tiraste c o baby q tenha ficado fixe envia-me para eu ficar com o recuerdo. "As nossas telepatias", respondeu ela quando eu lhe disse que tinha justamente começado a vê-las.

E tinha fotografias fixes, sim. Com uma definição e uma luz pouco famosas já que foram tiradas de noite, cá em casa, sem flash, apenas com a luz ambiente, mas, ainda assim, bonitas. Fotografias em que transparece a ternura dela pelo baby. Também ela me tirou a mim com ele e enviou-mas logo por sms. E um dos miúdos também me tirou fotografias com o bebé ao colo. Como a fotógrafa de serviço sou eu, geralmente depois fico com pena de ter poucas fotografias com as crianças. Desta vez não me posso queixar.

Também estiveram a tirar fotografias uns aos outros. E o mais velho tirou umas bem curiosas a si próprio. Direi, mesmo, que têm qualquer coisa de artístico -- e estou a falar a sério.

Também, nessa altura, ao ver as fotografias reparei, perplexa, que a grelha da lareira tem duas figuras delicadas. Pode parecer mentira mas nunca tinha reparado. Quem tirou a fotografia (aquela ali em cima) foi um dos miúdos. Mostrei ao meu marido e também ficou admirado, também não tinha visto. Não dá para acreditar.


Cá estiveram todos e, como sempre, mal se viram logo os três rapazes se puseram a lutar. Não sei que coisa é esta. Não é a lutar zangados. Nada disso. Adoram-se. É apenas uma forma explosiva de manifestarem o seu afecto. Ela não é disso: pediu-me uma folha branca e foi para a sua mesinha fazer uma história com autocolantes. O bebé, nessa altura, ainda dormia.

A semana passada tínhamos estado no parque do Jamor e aí, na largueza, a jogar à bola ou a trepar por cordas, têm muito espaço para gastar energias. Dentro de casa, o espaço é demasiado confinado para o pico energético que desenvolve quando se juntam sem estarem completamente cansados. Depois das lutas, depois do tio ter ensinado judo aos mais velhos (o filho, apesar dos seus tenros quatro anos, já é praticante), depois de terem andado às lutas no tapete e sei lá que mais, lá se aquietaram. O mais novo cantou, o primo tocou guitarra e acabaram a cantar o hino nacional. Entretanto o bebé, que mal tinha deixado a coitada da mãe jantar em paz, mamou, andou entre o meu colo e o da tia, sempre sob o olhar atento e maternal da maninha.

Depois foram para casa, que já era hora das crianças irem para a cama.


Antes disso tínhamos estado em volta da mesa a refeiçoar (como dizia o outro). Coisa simples, já que antes tinha ido a casa dos meus pais e, de caminho, tínhamos ido a uma adega comprar vinho. Portanto, não havendo tempo para demoradas confecções, a ementa foi:

Canja 
(numa panela coloco uma cebola grande, um pedaço de frango e miúdos; deixo cozer; quando cozido, retiro a carne e, com a varinha mágica, desfaço a cebola; volto a colocar os miúdos e a carne, agora tudo cortado aos bocadinhos; junto dois ovos inteiros e desfaço-os ao de leve com um garfo; junto massinhas de letrinhas; coze durante uns quinze minutos)
e grelhada mista
(pernas de frango, costeletas de porco e costeletões de vitela, temperadas com azeite, sal, alho, louro; umas peças, para além disso, foram temperadas também com tomilho limão e outras com alecrim -- primeiro forno ao máximo, vazio, durante uns 10 minutos; depois, quando introduzo a carne na grelha, reduzo para 160º: vou virando de vez em quando até a carne estar tostada; a carne de vaca entra a meio da confecção das restantes carnes, pois, para ficar macia, não pode ficar muito passada)
acompanhada por arroz basmati 
(num tacho coloco um fio de azeite, 1 dente de alho e um pouquinho de bacon cortado aos bocadinhos; frita ligeiramente; junto o arroz e envolvo na fritura; junto o dobro da água; quando está quase sem água, desligo, ponho num pirex e levo ao forno), 
e feijão preto
(numa frigideira, com um fio de azeite, frito umas lasquinhas de bacon  e cebola picada; depois junto feijão preto enlatado com algum caldo e envolvo -- por acaso, quem preparou o feijão foi o meu marido) 
e salada de tomate.

Antes da hora de almoço, tínhamos passeado na praia. Não havia um único surfista, o que não era de admirar: maré cheia e mar alteroso. 

Não estava muito frio mas havia algum vento. Apesar de tudo, agradável andar à beira da água e um prazer andar a fotografar as águas revoltas e as pessoas por ali andam.


Tirando isso, as tarefas domésticas normais, ida ao supermercado e assim. Nada de mais. Mas um sábado bom. Bem bom.

---------------------

Abaixo um poema para Trump por um dos mais elogiados escritores da actualidade.

............................

sexta-feira, dezembro 30, 2016

Com uma maçã, ele surpreendeu Paris





Debaixo de anti-histamínicos e anti-piréticos mas, felizmente, sem dores de cabeça ou no corpo, apenas alguma tosse e dor de garganta, depois de um dia de trabalho e outras preocupações, aqui estou finalmente na minha sala. Envolvo-me em sono e calor, desligo do que me traz apreensiva e espreito as notícias. 

Não há uma única notícia que me motive. Ou melhor: haver até há. Não sei é escrever sobre ela. A ver se me informo melhor pois é tema que me acorda. Refiro-me a saber-se que há um rio de ferro que corre a uma velocidade crescente no interior do nosso planeta e que está a uma temperatura quase equivalente à do sol. Acho interessante e acho que é coisa não neutra. 

Mas não vou pôr-me, para aqui, a dissertar sobre assunto que requer conhecimento. Só se me pusesse a ficcionar mas, no estado em que estou, mal consigo reportar-me à realidade, quanto mais à ficção.

Em dias assim movo-me para outro comprimento de onda. Prefiro a companhia daqueles que são independentes do seu corpo, cujas ideias ou obras sobrevivem ao corpo. Por vezes, em vida, são pessoas atormentadas e custa-me pensar nisso ao apreciar o seu legado nem me ocorrendo o que pensava ou sentia o artista enquanto executava a obra.


É o caso de Cézanne. Gosto de Paul Cézanne. Já vi obras suas ao vivo e é sempre aquela emoção de a gente ver uma celebridade ao vivo.
(Estou a gozar.)
Mas há um pouco de verdade nisto. Já se conhece e reconhece e depois está-se ali e vê-se ao vivo. Há um certo sentimento de déjà-vu mas, ao mesmo tempo, a satisfação por ver a obra tal como o pintor a deixou.
Abro um parêntesis para dizer que, de vez em quando, a sensação é mil vezes mais do que isto. Por exemplo, quando vi Caravaggio ao vivo fiquei quase aterrada, quase não conseguia fitar tamanha energia, tamanho frenesim telúrico. Outras vezes também uma emoção grande. Rothko, nos antípodas, também me deixou quase sem palavras, como se tivesse vontade de ser sugada para dentro daquele vazio, um vazio que, no entando, estava tingido de cores vibrantes. Ou o pano de boca de cena de Chagall, uma imensidão onírica.
Mas volto a Cézanne.


Vi um escrito sobre ele e entretive-me a ler e a ver mais umas coisas.

Transcrevo um pouco:
Cézanne sempre trabalhou sozinho, sem alunos. A sua pintura era sua maneira de existir. Sua vida fora marcada e envolvida por sua melancolia e cólera que permeava a sua vida inócua, instável, indecisa. Pinta na tarde em que sua mãe morre. Não é admirado por parte da família. Ao envelhecer acreditava que a sua pintura era fruto apenas dos distúrbios visuais que perseguiam seu corpo. Duvidava do seu talento e da genialidade que o transbordava, pois as circunstâncias e as reviravoltas da vida, não permitiam o reconhecimento de suas produções. A fraqueza e a baritimia o perseguiram no percurso de sua vida. Quando se mudou para Paris, decidindo ser pintor, escreve “Não faço mais do que mudar de lugar e o tédio me persegue”. Não conversava, pois não sabia argumentar. Preferia a solidão. Encontrar os amigos em Paris, quando via casualmente algumas vezes, apenas os cumprimentavam à distância evitando conversas prolongadas. “A vida assusta”, dizia Cézanne. 
(...)

Um dia, apanhado por uma tempestade, continuou a pintar à chuva durante duas horas. Dias depois morreu com uma pneumonia. Em 1906. 

E, no entanto, ao vermos as suas pinturas, que diferença faz o ano em que morreu, ou se tinha sessenta e sete anos quando isso aconteceu ou setenta ou oitenta ou se já se foi há mais de cem anos ou apenas há dez ou se ainda está vivo?

Divago, talvez. Mas penso isto, mesmo. 
..........................





¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
¨

"Avec une pomme, je veux étonner Paris!" 


Gustave Geffroy rapporte que Cézanne répétait souvent cette phrase. C'est dire la place qu'il attribuait à la pomme : à la fois insignifiante et essentielle.

Selon Meyer Schapiro (Style, artiste et société p 224, Ed Gallimard), ce calembour réunit toute sa carrière, depuis Paris-Pâris jusqu'au motif exemplaire qui fait de la pomme un équivalent de la figure humaine et de ses passions. Effrayé par les modèles féminins, il préférait ces objets détachés de leur fonction sociale, sur lesquels il pouvait projeter ses désirs. (...)

(Cézanne, Pommes sur une table, 1900)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

segunda-feira, maio 30, 2016

E, então, o mar




Talvez por quase ter nascido com os pés na água, muita praia, muita ida com o avô apanhar isco para a pesca, depois com o pai, depois ir com o pai à pesca, e sempre praia, praia, praia, e depois, adolescente, passear à beira rio, e, em casa, levantar-me e ir à varanda ver o rio, e depois já em casa minha, levantar-me e ver o rio, sempre, e, pelo meio, sempre praia. Ou talvez por ser de um signo da água. Ou isso não tem nada a ver e é mesmo de mim. Ou talvez algum bisavô marinheiro, sei lá. O meu avô materno, o que morreu quando eu era bem pequena mas de quem me lembro a pôr-me às cavalitas, enorme, alto, cabelo muito louro, olhos muito azuis, mais um nórdico do que um sarraceno, sei lá de onde veio, talvez tenha sangue viking. Mas sei lá. O que sei é que, se me embrenho pelo meio das árvores -- e gosto de sentir a terra, e gosto de cavar e de plantar e não uso luvas porque gosto de sentir a terra, e gosto de podar árvores e tudo sem luvas porque nada como o toque da terra, das pedras, da madeira viva -- logo depois é a vontade do mar que me invade. O mar. Vontade de estar junto ao mar. 


O azul a sul, a luz azul do sul, as gaivotas que quase parecem brancas, longas asas, as gaivotas omnipresentes, na praia, nos lagos, junto às casas, nas igrejas, dir-se-ia que esta é a terra das gaivotas. Não estranham as pessoas, não se inibem.


Vivem em liberdade, fazem o que querem, brancas e descansadas ao sol do sul. Mergulham, esvoaçam, brincam, nadam, dançam, repousam, contemplam.


A cidade tem pouca gente, é bom andar por aqui nesta altura. Dos veleiros saem homens tisnados que se sentam, ruidosos, bebendo cervejas, rindo. Por vezes, vêm mulheres com eles, igualmente tisnadas. Ao nosso lado, a jantar, uma mulher louríssima, muito bronzeada, toda vestida de branco e com unhas em verde brilhante como escamas de sereia.


Muitos alemães, ingleses, franceses. Sobretudo terceira idade. Mas não só. Mas nada que se compare com Julho ou Agosto. Agora a cidade está por conta das gaivotas.

Queria apanhá-las a voar sobre o branco casario mas tão alegres e velozes andavam, fazendo danças e rodopios pelos ares, que não consegui. Só as apanhei assim como aqui as vêem, deslizando feitas cisnes, banhando-se feitas patas, brincando feitas crianças ou empoleiradas feitas cegonhas.


E eu caminhei rente à água, li, preguicei, vi o pôr do sol dourando os rochedos, o azul das águas e do céu reflectindo-se no ar que eu respirava. Vivo num país tão diverso e tão lindo.


Depois, entreguei-me àquele injustificável hábito que mantenho desde menina: apanhar conchinhas. Não resisto. Acho-as tão lindas, tão perfeitas, peças lindas que o mar esculpe, brilhos e tons tão subtis, umas com superfícies nacaradas lisas como seda, outras com pequenas formações como se sobre elas se tivessem alojados outros pequenos seres.

Escuso de dizer aquilo que já se sabe: o meu marido pergunta para que ando eu a apanhar conchas, se é para ele as deitar fora algum tempo depois.

Zango-me, não quero que deite fora as minhas conchas. Mas depois não digo mais nada pois penso que, se ele não o fizesse, onde poria eu conchas apanhadas ao longo de anos?


Para preservar a memórias destas peças tão lindas, quando chego, ponho algumas em cima da blusa que vou vestir à noite e fotografo-as, tão bonitas. Um dia tenho que fazer um quadro com conchinhas e pedrinhas e restos de corda e espelhos e o som das ondas e dos gritos das gaivotas.

A ver se acho ou, se não achar, se compro a concha de um búzio, daquelas que, se lhe encostarmos o ouvido, escutamos o rugido do mar. Talvez, tendo a concha de um búzio comigo, suporte melhor a distância do mar quando, na cidade, estiver num lugar onde as janelas não se podem abrir e de onde não me chegam os sons da rua.

_____

No meio de tanto azul, vi há pouco, na televisão uns quantos betinhos e beatinhas, convenientemente pintados de amarelo, com crianças a fazerem umas coreografias e outros a actuarem, de cartazes em punho e muita mobilização dentro deles. 


Parece que uma espécie de instinto revolucionário se apoderou deles, andam eufóricos. Mas, pensando melhor, o que dá mesmo é a ideia de que uma força organizativa poderosa os anda a apoiar - ou melhor: a manobrar (a JSD, a JC e a Igreja em promíscuo conúbio?) - e, quequemente, querem, porque querem, que o zé povo suporte, com os seus impostos, as mordomias a que se acham com direito. Querem, porque querem, poder escolher o que, na cabecinha deles, é a 'melhor escola'-


Podem ter, lá na rua, uma escola pública mas não pessebem puque é ke hão ter que ir estudar com os pobrezinhos se podem ir para um colégio supé bom só pa eles. Parece que o senhor cardeal acha que eles têm supé razão e que a madame cristas também não pessebe puque é ke não fecham antes as escolas públicas. E, como as televisões gostam muito de fuzué, estiverem montes de tempo a mostrar aquela supé manifestação, podre de grande.


Ora eu, numa de indignação, poderia dizer-lhes: a pata que os pôs! mas, dado estar na terra das gaivotas, até fico sem jeito de dizer isso. Mas, como acho que eles não precisam de ajuda para se enterrarem ainda mais e, de resto, até já se pintaram de amarelo, acho que não preciso de dizer nada. O ridículo de qe andam a cobrir-se se encarregará de os pôr na ordem.

__

Lang Lang interpreta um sonho de amor: Liebestraum de Liszt
_____

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma belíssima semana a começar já por esta segunda-feira.
Saúde, afectos, alegrias e dinheiro para os gastos - para todos quantos me lêem.

...

segunda-feira, outubro 05, 2015

No rescaldo das legislativas 2015 - PàF na corda bamba, PS na hora da verdade, BE na idade adulta, PCP na terceira idade. Será que, para Portugal, finalmente, chegou a hora da Política?







No post que poderão ler a seguir, pronunciei-me, a quente, sobre o resultado das eleições. Já disse quem acho que ganhou, quem obviamente perdeu, já manifestei o meu desencantamento.

Aqui, agora, vou dizer mais algumas coisas. Não estou com muita disposição para grandes raciocínios porque me arrelia sobremaneira perceber como os mais prejudicados e os mais enganados são a grande força de apoio da coligação vencedora, que os tem tão seriamente prejudicado.

Não quero que me tomem por exibicionista porque não sou (como poderia sê-lo se nem revelo a minha identidade?). Não sou rica e vivo do meu trabalho mas, pelas funções que ocupo, recebo um salário que, segundo o critério do governo dos PàFs, mereceu ser cortado à catanada. Mais de metade do ano trabalho para pagar impostos - e isto reportando-me apenas aos impostos que incidem sobre o fruto do meu trabalho. Por isso, pelo que me diz respeito, teria muita razão de queixa. 

Mas aquilo que recebo, ainda assim, chega para as minhas necessidades e ainda sobra, tanto mais que sou casada em comunhão de adquiridos com uma pessoa que está nas mesmas condições que eu. Do que ganhamos, ainda ajudamos quem, na nossa família, precisa. E, ainda assim, não me queixo. Como é fácil perceber pelo que aqui conto, posso ir a restaurantes, ao cinema, passar férias fora de casa, comprar livros, etc - coisas inacessíveis a tanta gente no meu País. 

E, no entanto, queixo-me do governo PSD e CDS. Mas não é, pois, por mim que me queixo.

Queixo-me pelos inúmeros desempregados (e na minha família também os há - mas ainda que não houvesse), pelos que têm empregos precários (e na minha família também os há - mas ainda que os não houvesse), pelos que tiveram que ir trabalhar para fora (e são inúmeros os amigos dos meus filhos que tiveram que emigrar), pelos idosos que se viram depauperados (e na minha família também os há - mas ainda que os não houvesse), pelos que se viram sem condições de pagar empréstimos que tinham contraído, queixo-me pelos que empobreceram, pelos que não podem viver a vida com que sonharam, pelos que viram as famílias separadas, pelos que perderam a esperança e vivem deprimidos em casa, vendo o dia em que nem o subsídio de desemprego vão receber - e queixo-me porque sei que tudo o que foi feito pelo Governo de Passos Coelho foi feito à toa, sem produzir resultados.

A dívida continuou a aumentar, a pública mas também a privada, o défice está muito mais alto do que seria suposto, não há investimento, não há criação de emprego sustentável, não há aposta na educação, na investigação. E não houve reforma de Estado. Zero. E as grandes empresas foram vendidas a grupos estrangeiros (ou a a estados estrangeiros), desacautelando os interesses estratégicos do País. Nunca o País esteve tão à mercê de especuladores de toda a espécie. Nunca os portugueses estiveram tão vulneráveis, tão à mercê do que outros queiram fazer com eles. Pode o crédito estar barato, podem as famílias ter recomeçado a consumir como se não houvesse amanhã, tudo isto simulando o sucesso que agora se apregoa - mas as grandes debilidades do País mantêm-se ou agravaram-se.

E, no entanto, o que tenho visto é que são os mais lesados que mais medo tiveram de mudar de governo. De facto, o síndroma de Estocolmo, tal e qual. Os prisioneiros afeiçoam-se aos que os aprisionam. Vivem subjugados, intimidados, teriam razões para odiar os seus algozes mas, não apenas desistem de fugir, como temem que, sem a 'protecção' deles, fiquem à mercê de outros ainda piores. Custa a perceber este mecanismo mental mas acontece frequentemente às vítimas de quem vive subjugado, agrilhoado, maltratado.

Os PàFs ganharam. É certo. Estão de parabéns. Conseguiram o que queriam.

À hora a que escrevo, os PàFs estão com 99 mandatos, mais 5 do PSD (contra 85 do PS, 19 do BE, 17 do CDU e 1 do PAN). Ou seja, PSD e CDS conseguem 104 mandatos enquanto os partidos à sua esquerda conseguem 121. Não somei o PAN porque não faço ideia do seu posicionamento. Ou seja, há uma maioria na Assembleia da República contrária ao que defende a coligação que ganhou.


Ora é preciso ver que, com o resultado destas eleições, Passos Coelho e Portas, num novo governo, vão ver-se confrontados com o irrealismo das suas promessas vãs. Os números do défice, do desemprego, da dívida não deixarão de continuar a falar verdade. Podem eles continuar a mentir, pode a comunicação social continuar a levá-los ao colo, que a verdade vai doer na vida de quem votou nesta gente sem ética, sem competência, sem respeito pelos portugueses.

Face a isto, acho que é mais do que tempo do PS acordar.

Os tempos são outros, a população já não é maioritariamente a que conheceu os tempos de ditadura e que se mobilizava em torno de ideais nobres. A população agora é maioritariamente uma população que dá como adquirido o pouco que tem, que não se habituou a pensar, que consome abundantemente a televisão pimba, novelas intragáveis, futebol a toda a hora, viciada na futilidade dos facebooks, uma população que pouco sabe de política, que apenas consome as 'bocas' e as 'cenas' virais que são postas a circular nas redes sociais. O PS tem que saber falar a esta gente, tem que chegar até ela.

E depois há um grupo de pessoas que lê, que acompanha alguma imprensa mais séria (geralmente estrangeira), que tem alguma cultura e exigência - e que anseia por um arejamento na política, que não se revê na partidarite, que está disposta a apoiar quem se apresente com um discurso de ruptura, que acha que apenas com uma disrupção se conseguirá que entre oxigénio na vida pública. Esta gente mais facilmente se revê no Bloco de Esquerda do que num PS manietado por lógicas aparelhísticas, preso a fidelidades bafientas do passado onde as estruturas concelhias, distritais e por aí fora atolam em mediocridade os ideais políticos.

O PS tem, pois, que se renovar. Tem que atrair independentes, tem que ter mulheres, tem que ter jovens (que não necessariamente os que se enfiam nas jotas e se portam como as claques do futebol), tem que ter intelectuais, artistas, cientistas, e, sobretudo, gente que pense de forma diferente, com a cabeça no futuro.

O PS tem que olhar para o Bloco de Esquerda com respeito. Portugal acordou para a realidade deste partido que se renovou e se relançou pelas mãos de Catarina Martins e Mariana Mortágua, duas jovens mulheres que nada temeram, que falaram de forma límpida e corajosa, que sabem dizer com clareza o que querem e o que não querem. Pode dizer-se que têm toda a liberdade para falar porque é apenas isso que fazem: falar. Mas falar é importante em política: falar com consistência, com firmeza, sem medo, com acutilância e inteligência. E o BE já disse que está na disposição de passar da teoria à prática - e isso deve ser tomado em linha de conta.

Quanto ao PCP, tenho pena. É gente séria, boa gente. Mas é gente que vive presa a fantasmas, que se deixa agrilhoar mentalmente a preconceitos difíceis de compreender. A raiva que mostram em relação ao PS é incompreensível. As pessoas que não são do PCP não percebem essa atitude, parece que os comunistas padecem de uma questão psicológica mal resolvida. Parece que estão anquilosados. O mundo muda e o PCP continua com uma conversa que, frequentemente, não cola com a realidade. Os resultados destas eleições foram também um desastre para o PCP. Não sei se vão a tempo de inverter o declínio. Contudo, parece que Jerónimo de Sousa, talvez atordoado com os resultados, terá dado a entender que, se necessário, se colocará ao lado do PS.

Não sei o que nos reservam os próximos dias mas era bom que um PS revigorado (depois do abanão destes resultados e com o António Costa também revigorado, com desenvoltura, animado, com sentido de humor e com peito feito) conseguisse estabelecer pontes fortes com o resto da esquerda. Se os interesses do País e dos Portugueses estiverem à frente de tacticismos, de prudencialismos, de atavismos, talvez se consiga trazer alguma esperança a Portugal. Caso contrário, será para esquecer -um dia destes ainda acordamos e descobrimos que fomos anexados pelos chineses (por exemplo).



....

As fotografias foram feitas este domingo in heaven.

A música é de Franz Liszt - Years of pilgrimage "Le mal du pays" por Lazar Berman (Haruki Murakami) - não percebo o que faz o Murakami aqui nesta legenda mas não tenho tempo para investigar, vai como estava no youtube)

....

Relembro que no post a seguir falo, em cima do acontecimento, dos resultados que se começavam a conhecer destas eleições e de como me senti desanimada.

....

Desejo-vos, meus Caros leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

..