Música, por favor
Maria Bethânia - Casinha Branca
Aos poucos, a transformação que se vinha operando na vila começou a ser notada. O progresso crescia, novas lojas abriam, o dono da residencial expandiu o edifício, o número de restaurantes duplicou, as pastelarias aumentaram e vinham já pessoas de fora para passear, ver as bordadeiras e comprar os doces regionais
O presidente do município organizou uma série de conferências, tendo convidado Ana para explicar qual tinha sido o seu papel, dado que era unanimemente reconhecido como determinante.
Ana, com simplicidade, explicou que se limitou a aplicar um dos princípios empíricos da economia e que consiste em que o que é necessário é pôr a máquina em movimento, restituindo a confiança aos consumidores e investidores. Uma vez isso acontecendo, as coisas correm por si. O dinheiro em circulação até pode ser o mesmo mas muda de mãos, gerando sustentabilidade. Explicou ainda que se o dinheiro em circulação for o mesmo mas mudar de mãos já não é mau, pois mau mesmo é haver retracção, uma vez que isso conduz à paralisia da actividade, à saída de cena dos agentes mais fracos, ao desemprego e, logo, ao empobrecimento. Mas que bom mesmo é entrar dinheiro de fora pois havendo mais dinheiro em circulação, isso significará crescimento. Explicou que foi isso que aconteceu na vila pois, ao passar a haver produtos inovadores e amplamente divulgados, começaram a acontecer vendas superiores a clientes de fora, o que acrescido da vinda de pessoas em turismo - mesmo que apenas para gastar em restaurantes - significava mais dinheiro livre entre as pessoas da vila, que o aplicavam em poupanças, em consumo ou em investimento.
Alguns ainda se interrogavam como é que uma bordadeira falava assim mas a maioria já se tinha habituado a conviver com a estranheza da situação.
E Ana sorria, agradecida por ver o fruto da sua iniciativa. Ana sorria porque sentia que as pessoas se queriam unir, queriam progredir, apostavam na juventude, apostavam na troca de experiências e saber entre novos e velhos.
A melhoria de rendimento escolar e a empregabilidade dos estudantes da vila começou a aumentar e essa era a maior alegria e a maior recompensa que Ana poderia desejar.
Ana andava feliz.
Na sua casa, no rés-do-chão forrado a estantes, com sofás, mesas, com as paredes decoradas com fotografias, pinturas, havia sempre jovens a ler, mulheres das oficinas que vinham praticar informática com os jovens, havia gente que tirava dúvidas aos miúdos, lia-se poesia, ouvia-se música. Era um local de tertúlia, de aprendizagem, de partilha.
A sua pequena casa com um pinheiro e uma pequena horta, as suas pequenas divisões muito claras, cheias de luz, muito simples, a alegria que ali reinava, enchiam-na de orgulho.
Mas não há paz que sempre dure.
Música, de novo, por favor
Nat & Natalie Cole - Unforgettable
Um dia, quando Ana se levantou e, como sempre fazia, abriu as janelas do piso de cima, apercebeu-se de algumas vizinhas espreitando a rua, por detrás das cortinas. Estranhou e, então, espreitou ela também.
Ia-lhe dando uma coisa. O primeiro impulso foi fechar a janela e esconder-se. Com o coração descompassado, sentou-se. Ficou assim sentada, como se tivesse levado uma pancada na cabeça, por largos instantes, sem saber o que fazer.
Aos poucos foi vindo a si. ‘Estupor!’, ‘raios o partam!’, ‘estou feita!’, ‘o que é que eu faço agora à minha vida?’, ‘mas como e que o estúpido me descobriu, senhores!?’, ia ela dizendo num desespero, num lamento ,enquanto girava pela casa, sem saber o que fazer.
Voltou a espreitar mas agora com muito cuidado, não fosse o estupor vê-la. Devia estar metido dentro do carro porque não se via. Mas o carro, o carrão, estava mesmo encostado à porta, seria impossível sair sem ser vista.
Então foi tomar banho e, aos poucos, foi serenando. As feras encaram-se de frente e assim o faria.
Arranjou-se com cuidado como há algum tempo não o fazia, cuidou dos pormenores, perfumou-se, e foi à luta.
Ele devia estar atento pois, mal sentiu a porta a abrir-se, saltou do carro e colocou-se em frente dela com um ramo de rosas na mão. Sorria a medo mas o ar de galã tímido era o mesmo de sempre.
Ana reparou que as rosas estavam quase murchas, estava mesmo a ver-se que devia ter comprado as flores na véspera e deixado ficar no carro. Mas fez de conta que não tinha notado.
Ana aguentou firme : 'O que é isto?! Não deixei bem claro na carta que enviei há tempos atrás?!’
Ele não disse nada, Ana sabia que devia estar um pouco nervoso. Continuou a barafustar, ar de zangada: 'E vires para aqui neste espalhafato, pores-te aqui assim à minha porta com esse carro... e não percebes que as pessoas te conhecem? E olha essa figura de flores na mão...! Estás habituado a dar espectáculo, não é? Não perdes uma oportunidade... Ridículo.'
Ele nada, nem uma palavra. Com a habitual falta de perspicácia masculina, ainda não tinha percebido no que aquilo ia dar.
Ana continuou, mas quem a conhecesse pressentiria que, na escolha das palavras, estava já um indício e cedência: ‘Posso saber o porquê deste acto de desobediência civil?!
Ele arriscou: ‘Admiti que o castigo para a desobediência valesse o risco… Admiti mal...?’ e, olhando-a nos olhos, pressentiu que a coisa estava a ficar bem encaminhada. E, então, sorriu, sorria, com o sorriso de quem pede indulgência intuindo, à partida, que já a tem.
Ana, ainda simulando ar de má: ‘E as flores são para ficares aí, nessa figura triste, plantado no meio da rua com elas na mão, para as vizinhas todas te poderem tirar uma fotografia com o telemóvel, ou serão para eu as ir colocar numa jarra?’ mas já se ria, e ele conhecia bem esse sorriso.
Riu-se também: ‘Não te quero dar trabalho. Diz-me onde está a jarra que eu trato disso’ e entrou dentro de casa, atrás dela.
Mal a porta se fechou, agarrou-a pela cintura e dobrou-a, um verdadeiro beijo à Hollywood. Depois ela deu-lhe uma palmada no peito, como se estivesse zangada: “Mas isso faz-se? És mesmo um estupor!”.
A seguir, levou-o pela mão a ver a casa. E, pela primeira vez, chegou atrasada à oficina.
Cinema, por favor: it's Hollywood time
Richard Gere e Julia Roberts, o beijo do reencontro - Pretty Woman
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Recordo, de novo, que, se quiserem ler a história de Ana desde o início, poderão procurar nas etiquetas aí ao lado, em baixo, 'Ana muda de vida'.
E, de resto, hoje no meu
Ginjal e Lisboa as minhas palavras voam em volta de um belíssimo poema de Manuel António Pina. A música é maravilhosa, Donizetti claro. Se estiverem para isso, eu gostaria de vos receber lá.
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E tenham, meus Caros, uma terça feira cheia de beijos (reais, imaginados, consentidos, roubados... como queiram). E divirtam-se à grande, está bem?