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quinta-feira, maio 19, 2016

Pedro e Clara - a vida continua




Uma pessoa que tem acompanhado o que tenho escrito disse-me que esta história é um drama. Tive que concordar. De facto, assim é. Mas as coisas são o que são.

E não são apenas Pedro e a sua família que estão a passar por isto. Muitas outras pessoas estão ou já estiveram a atravessar as mesmas provações. Não é novo. Em muitas outras épocas ou circunstâncias, situações destas tiveram lugar. Desde logo, muitos dos que geralmente foram designados por retornados se viram nesta situação. E todos quantos se vêm submersos pelas falências e dívidas a mesma coisa. Até uma dada altura, são abastados e encaram com tranquilidade e até displicência o futuro e, de um momento para o outro, assistem ao desaparecimento do seu mundo, vendo-se, inesperadamente, sem património, sem trabalho, com despesas com advogados e de toda a ordem e, por vezes, sem o esteio familiar.

Não pretendo, contudo, acentuar o lado trágico da história. Mesmo quando uma pessoa tenta ser objectiva, não tomar partido nem fazer juízos de valor, por vezes a verdade dos factos é tão crua que pode ferir o nosso olhar. E é sabido que o olhar se move melhor em ambientes amenos.

Não me referirei, pois, ao susto que Pedro levou quando viu uma cama vazia com o nome do pai, ou quando, chegado aos cuidados intensivos, continuou a não reconhecê-lo tendo que ser uma enfermeira a guiá-lo atá à cama em que um homem magro, entubado, parecia mais morto do que vivo. Não contarei que o pai não acordou nem que ele nada disse ao pai. Não contarei que, apenas, ao sair de lá, fez, ao de leve, uma festa na mão esquálida e fria do pai. 

Quando entrou no carro de Clara, ainda em silêncio, ela perguntou-lhe como estava o pai.

Pedro disse: ‘Talvez não volte a vê-lo com vida. Não vou, sequer, com certeza, conseguir despedir-me dele. Nem, sequer, dizer que vá em paz, que perdoo as filha de putices que fez a vida inteira’.

Clara disse: 'Nunca se sabe. Deixe. Às vezes a vida surpreende-nos, e ele é forte'.

Pedro encolheu os ombros, quase como se lhe fosse indiferente. Depois, mais tarde, acrescentou como se estivesse a continuar uma frase: ‘E eu pergunto-me se alguma da antiga glória valeu a pena. Agia como se fosse eterno. Afinal acaba sozinho, quase sem conseguir respirar, numa cama de hospital, desgraçadamente humano. A família desfeita e a contas com a justiça, a fortuna desaparecida, todos impreparados para a vida normal. Não tem junto a ele os muitos que viviam às suas custas, não tem sequer a família. Uma tristeza. Aposto que nunca reparou nas árvores em flor, que nunca abraçou a minha mãe enquanto olhavam a beleza de uma montanha coberta de primavera’

Clara fez-lhe uma festa na mão. Depois disse-lhe: ‘Olhe, agora coração ao largo. Não há nada que possa fazer. Vamos aguardar.’ Como ele permanecesse em silêncio, lembrou-o ‘Não se esqueceu que temos reunião com o vereador da cultura e com o chinês, pois não?’.

Ele sorriu, ‘Temos que nos habituar a tratar o chinês pelo nome, senão, quando quero falar com ele ou dele, nunca me lembro como é que o tipo se chama’.

A reunião correu muito bem. Clara e a Srª Lin são as grandes dinamizadoras do projecto. Num palacete da vila onde já funciona um pequeno museu, vai agora existir, também aberta ao público, a Biblioteca que leva o nome Lin e o nome de família de Pedro, digamos que Vaz Telles. Biblioteca Lin e Vaz Telles. De vez em quando, a Srª Lin chega e diz que devia ser ao contrário Biblioteca Vaz Telles e Lin. Clara diz que não soa bem, que fique como está. Nessa tarde a Srª Lin, muito sorridente, comunicou que ela e o marido tinham decidido que deveria ser apenas Biblioteca Vaz Telles. Clara emocionou-se. Surpreende-se sempre com a atenção que os chineses dedicam a estes pequenos aspectos. Para a Srª Lin isto era uma cortesia e ficou contente por ver a sua proposta aceite como um presente. Clara pensou em como Pedro iria ficar contente e ficou igualmente contente.


Os estatutos já foram redigidos, o processo de inventariação e desmontagem da biblioteca para montagem no outro lado já está em curso. Clara sugeriu que se recorresse ao apoio universitário e a autarquia, descapitalizada, achou muito bem. Há estagiários a trabalhar na identificação, catalogação e informatização da base de dados. São também estudantes de arquitectura, no seu projecto de final de curso, que estão a estudar a adaptação do novo espaço. Pedro gosta de acompanhar os trabalhos, é com carinho que ajuda, sempre disponível para tirar dúvidas, para contribuir com a sua opinião e experiência. É também Pedro que já está a ajudar a seleccionar firmas de carpintaria e montagens para que, logo que se seleccione o projecto vencedor e que haja orçamento, se possa avançar.

Clara e a Srª Lin estão a angariar fundos. Tornaram-se quase amigas. Clara, ao princípio, pensava na forma, provavelmente escusa, como a fortuna dos chineses tinha sido adquirida e isso mantinha-a à distância. A Srª Lin, um dia, explicou que tinham um casino legal em Macau e que se preparam para investir em força em Portugal. Clara acabou por nem pensar nisso. De vez em quando vão às compras, ao cinema, lanchar. Entusiasmadas com o projecto, o difícil é não estarem sempre a ter ideias. Já estão em conversas com a universidade para se arranjarem mestrados para estudar aquele vastíssimo espólio. 

Nesse dia, depois da reunião, Clara disse a Pedro, ‘Olhe, pelo facto de se ter portado bem e não ter ficado a olhar, feito parvo, para a Srª Lin, como já o apanhei outras vezes, convido-o para jantar.'

Pedro virou-se espantado: 'Está a gozar, não está, Clara? Onde é que me viu a fazer isso?'

'Ora, Pedro, sempre feito sonsinho enquanto não tira os olhos dela. Mas deixe. Hoje portou-se bem'.

Ele riu 'Ui! Não me diga que é ciumenta'.

Clara defendeu-se: 'Nunca. Mas não gosto de o ver a fazer figuras tristes. Só isso'. Ele riu.

Ela continuou: 'Portanto, como ia dizendo, convido-o para irmos jantar a um sítio bonito'

Pedro mostrou desconforto, ‘Já sabe que não gosto disso. Não consigo habituar-me a não ter dinheiro para oferecer um jantar condigno’.

Clara repreendeu-o ‘Deixe-se de mariquices. Sabe bem que não tenho muita paciência para frescuras. De resto, não tenciono gastar muito dinheiro.’

Ele, lastimando-se de verdade, fez de conta que se lastimava: ‘Já não tenho voto na matéria em lado nenhum’.

Clara conduziu até à praia. Dirigiu-se então a uma tasca e pediu que fizessem sandes de choco frito e que, num pacote à parte, pusessem bata doce em palha. Depois pediu umas minis, umas águas e, com um saco de plástico na mão, dirigiram-se para as pedras do paredão.

Pedro ainda disse: ‘O meu pai tão mal e eu aqui’.

Ela retorquiu: ‘Olha! E lá por o seu pai estar mal, ia você fazer jejum? Ora, vamos mas é comer que estou cheia de fome’.

Comeram de gosto. Depois Clara enfiou o braço no braço de Pedro, deitou a cabeça no seu ombro e, com ar de brincadeira, perguntou ‘E agora o que é que sabe cantar?’.

Ele virou a cabeça admirado ‘Está a brincar? Acha que sei cantar?!'

Ela fez um ar muito admirado: 'Sério...? Não...?

Pedro confirmou: 'Nem canto nem danço’.

Ela fez um ar aborrecido, ‘Mau. Estou a ver que fui enganada. Mas faz outras coisas… Ou também não…?’.

Ao fim de tantos meses, de novo a malícia no ar.

Ele ‘Depende. Está a pensar em alguma coisa em concreto?’.

O ar estava frio. As cores do pôr do sol rosavam o rosto de Clara: ‘Estou pois. Para já quero um beijinho. Depois mais um. A seguir um que não seja inho, A seguir quero que sinta com as suas mãos como é que eu fico quando estou com frio. E a seguir não digo porque não quero que pense que sou escandalosa. Mas sou. Por isso, faça favor de não me desiludir’.

Pedro riu. Clara olhou-o nos olhos e disse: ‘Agora não são horas para rir. Agora é para agir’. E beijou-o longamente.

Depois desse beijo, abraçados, mal conseguindo soltar-se, Pedro disse: ‘O meu guião foi alterado ou devo começar agora eu com aquilo do beijinho, beijinho, e depois um beijo não beijinho e depois aquilo do frio…?’ e olhava-a nos olhos.

Clara segurou-lhe o rosto com as mãos e disse, ‘Olhe, esqueça, senão estou a ver que ainda se vai atrapalhar. Deixe por minha conta’ e voltou a beijá-lo, um beijo sem fim.

Não chegaram a olhar para o mar.



THE END
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Lá em cima, Agnes Obel interpreta Dorian
Aqui em baixo é Brenda Lee com I'm In The Mood For Love

Os campos com pessegueiros em flor situam-se em Yili.
Fotografei o mar na terça-feira ao anoitecer.
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Este último capítulo vem no seguimento de 'De quantas camadas de pele tem um homem que se despir até que os outros percebam que está em carne viva?' e de lá poderão encontrar os precedentes. 
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E queiram, se quiserem, claro está, descer até à descrição de uns momentos meus para esquecer. Salva-se o vídeo que, pelo menos a mim, me faz rir de gosto.

sexta-feira, novembro 30, 2012

Quando lá chego e ainda não está ninguém, preferia que a luz estivesse apagada




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Preferia que as luzes estivessem apagadas quando lá chego antes da hora. Geralmente tento chegar antes das outras pessoas.

Atravesso Lisboa por uma das vias mais movimentadas. Gosto de conduzir ao lusco fusco, quando a noite tomba e as luzes da cidade se acendem. Ouço música, hoje era violoncelo, um lamento, e esgueiro-me entre os outros carros conforme posso a ver se chego antes.

Em alguns dos mais modernos edifícios de escritórios da cidade, edifícios totalmente envidraçados, transparentes, quando o escuro cá fora realça as luzes do interior, as pessoas parecem pequenos animais em gaiolas, muitas gaiolas. Ali andam, pequenas e insignificantes, as pessoazinhas que fazem com que os serviços do país funcionem. Formiguinhas, bichinhos, gente indistinta a quem os governos podem facilmente atropelar. Olho-as: podiam ser pequenos números animados, podiam ser células de uma folha de cálculo; mas, por acaso, são apenas pessoas enjauladas. 

Com o telemóvel vou fotografando estas gaiolas transparentes cheias de pequenas e inofensivas figuras e fico cheia de pena delas, de mim, de nós.

Depois chego. Dispo-me rapidamente e visto o meu fato de banho de natação, azul escuro, coloco a touca, também azul, e atravesso a porta que me separa da piscina.

Ao contrário das piscinas dos hotéis ou das piscinas públicas em que a água está morna, ali não, ali está quente, 33 ºC.

Se não está ninguém, chego a um espaço azul só para mim, paredes azuis, piscina azul e entro na água quente. Tão bom.

Na parte em que gosto de estar a água tem um metro e quarenta de altura. Se eu estiver de pé, a água cobre-me o corpo até ao peito e é quente a água em que o meu corpo se envolve, um manto macio de veludo azul.

Nado tranquilamente, livre, liberta. Preferia que as luzes estivessem apagadas. Preferia que o veludo fosse azul escuro, preferia que o espaço cá fora também fosse escuro, íntimo.

Mas, mesmo assim, é uma sensação apaziguadora, aquilo de que qualquer pessoa precisa.

A seguir começam a chegar os meus companheiros e a fisioterapeuta, vestida de branco. Nessa altura, começo a fazer os meus exercícios como se tivesse chegado naquela altura. Os meus exercícios começam sempre por andar de ponta a ponta, várias vezes, com os pés no chão, assentando a sola do pé no chão. Caminhar dentro de água, numa piscina cheia, não é fácil, a água oferece resistência e o nosso corpo tende a deixar-se levar pela impulsão.

Os meus companheiros não são muitos, em média seremos entre seis e oito. Quando estamos todos, estou eu, uma senhora de alguma idade, muito bonita, com uma touca branca, tem uma bursite, mal mexe um ombro, uma outra muito conversadora que partiu uma perna, um senhor bem mais velho que eu que está aflito das costas, uma miúda muito novinha com problema nos joelhos, e uns três rapazes, altos, atléticos, cabelo rapado que aparece sob a touca, fortes bíceps, um está aflito das costas, vai ser operado, outro está muito atrapalhado com um joelho, mal pode andar, o outro não sei, tem a cana do nariz amolgada mas não deve lá estar por isso. Pelo físico que têm, presumo que se tenham lesionado a fazer desporto. São muito bem dispostos, conversam uns com os outros, riem, metem-se com a fisioterapeuta que é novinha, e tratam a senhora de idade por 'amor'. Mas a população não é fixa. Há dias em que não estão alguns destes e está uma senhora chinesa, elegantíssima, com um sorriso discreto, outras vezes não está o senhor com dores nas costas e aparece outro, muito sisudo, que não sei de que padece. Quando as pessoas chegam, ao cruzarmo-nos uns com os outros, sorrimos ao de leve, e prosseguimos com os nossos exercícios.

Gosto muito destes exercícios dentro de água quente e gosto, em especial, no fim, da massagem com jactos de alta pressão, jactos submersos. É, então, um veludo quente em sobressalto, e o corpo agradece.

Depois da hidroterapia, passo para a electroterapia, ondas curtas e ultra-sons. Num gabinete silencioso, com uma luz moderada, depois de quase uma hora dentro de água quente, falta sempre pouco para adormecer. A tranquilidade invade de novo o meu corpo. Ouço, do lado de lá da cortina, as vozes das fisioterapeutas, dos doentes, conversam de tudo, mas não lhes presto atenção. Por vezes, dou por mim de olhos fechados.

Aqui são cerca de trinta minutos. Depois vou até ao ginásio. Exercícios, pesos, eléctrodos, alongamentos e, também, massagem.

Ao meu lado, ouço por vezes alguém a gritar. É alguma fisioterapeuta em cima de uma marquesa a alongar ou a repuxar alguém mais aflito. Outras vezes, parece que meditam, doente e terapeuta. Também não presto muita atenção. Enquanto estou com os eléctrodos aproveito para ler as revistas que por lá há, antigas ou novas, pouca diferença faz. Hoje li uma revista que se chama Happy e na qual estive a ler o artigo principal que se referia a uma investigação científica sobre sexualidade. Lá se concluía, a partir das palavras usadas nas pesquisas na internet, que os homens afinal pouco procuram mulheres novas, elegantes. Pelo contrário procuram muito mães, mulheres gordas, mulheres maduras. O artigo exemplificava e dissertava sobre o assunto. É capaz de ser verdade. Também estive a ver as novas tendências na moda que, como sempre, é igual à do ano passado.

Quando saio de lá já é noite cerrada, há muito menos trânsito, a rádio já toca música para a noite, jazz. Como, então, uma maçã fresca, sumarenta, que me sabe tão bem. Depois telefono à família a saber se está tudo bem. Quando chego a casa já é bastante tarde.

Em dias assim, trago o veludo quente da água azul colado à minha pele. Ainda está, agora que vos escrevo. 

Mergulhem comigo, sim?





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A música inicial é Blue Velvet, interpretado por Brenda Lee na versão original. Esta música faz parte da banda sonora do filme homónimo de David Lynch.

O vídeo já aqui acima é uma cena do filme Blue (que integra a trilogia das três cores de que fazem parte também o Red e o White) dirigido por Krzysztof Kieslowski. A artista principal, luminosa e profunda, é Juliette Binoche.


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Hoje, para além deste texto que acabam de ler, já escrevi um outro texto sobre o penteado da Judite de Sousa e sobre a técnica de apanhar chocos com fisga. Convido-vos a descerem um pouco mais para o lerem.

Contudo, antes de me despedir, quero ainda convidar-vos a virem também até ao Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje não escrevi nada para que possam degustar com vagar os poemas que dois Leitores me enviaram e que coloquei, agradada e agradecida, junto à poesia de Sophia.

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E, por hoje, é isto. Agora que me estou a despedir, chove muito. É tão bom o som fresco da chuva na minha janela. O rio está ali em baixo, escuro, frio mas hoje não me apetece mergulhar nele, hoje apetece-me prolongar em mim a suavidade do macio e quente blue velvet.

Tenham, meus Caros Leitores, uma bela sexta feira. Aos que estejam engripados, desejo que se ponham bons, até para poderem voltar a passear à chuva. Ao que estejam com qualquer outro mal estar, desejo também que se curem rapidamente. Aos que estão bons, desejo que apreciem a vida que é uma coisa tão boa quando estamos bem.