Ao abrir a porta, veio aquele ar gélido, quase húmido. Duas semanas sem virmos e a casa ressente-se logo. Escura, triste e muito fria.
Arrumei a comida no frigorífico, fui abrir as janelas.
Depois disse, como geralmente digo, 'vou dar uma volta'. Peguei na máquina e lá fui. O ar bem mais quente do que em casa, um ceu azulinho com algumas nuvens, uma aragem muito leve, um perfume bom no ar, a terra ainda húmida das frescuras da noite. Tudo verdinho, tão bonito.
A perfeição da natureza é uma lição: não é preciso que tudo esteja alinhado, não é preciso que seja tudo da mesma cor para que o conjunto seja harmonioso. Vejo beleza na delicadeza das estrelinhas verdes e macias de que é feito o musgo, vejo beleza na caruma, nos líquenes, nos restos de folhinhas secas, vejo beleza nos contrastes cromáticos. Vejo beleza na paz e no canto dos pássaros que habitam in heaven.
Aproximei-me. Comecei a ver manchas claras. Aproximei-me mais. Uma renda fina. Orvalho.
Fui andando e verificando que nos sítios mais escondidos, junto aos troncos, por debaixo dos arbustos, um pouco por todo o lado havia destas pequenas rendas brancas e delicadas. Pensei: sou ma caçadora de orvalhos. E agradou-me a ideia. Talvez um dia escreva um conto autobiográfico com este nome: a caçadora de orvalhos. Ou talvez a ideia me anime quando, entre vidros e paredes brancas, numa torre asséptica e sem janelas, me sentir aprisionada e cansada,
As gotinhas muito visíveis, a graça de se encontrarem suspensas na cama de caruma e musgo, tudo tão quase invisível.
Depois, uma pintinha branca. Aproximei-me, fui rente ao chão. Um cogumelo ínfimo. Como saem estes bichinhos perfeitinhos e tão frágeis do interior da terra é coisa que sempre me espanta.
Fui então em busca de mais. Desapareceram os gigantes, desapareceram os amarelinhos do outro dia. Aparentemente desapareceram todos com excepção daquele pequenino, ali refugiado junto ao orvalho. Se calhar acabou a época deles.
Mas mantive-me atenta, deslizando silenciosa como uma gata, espreitando a terra. Até que descobri. Lindos, quase da cor da caruma, muito pequeninos, muito elegantes, quase irreais.
E ia eu assim, enlevada, quando ao fundo, na curva, junto ao cedro grande onde a terra é fofa e está coberta de musgo, umas grandes pegadas. E, ao longo do caminho, aquelas marcas. Que bicho grande por ali andou não faço ideia. Depois, em alguns locais, a terra um bocado revolvida. Um bicho a tentar encontrar comida enterrada? A desenterrar raízes? Não sei. Não coloco as fotografias pois não ficaram bem, não se percebem as pegadas pois, sendo tudo terra escura, ficaram com contraste insuficiente. Amanhã tentarei usar flash pois gostava de vos mostrar, talvez alguém perceba o que pode ser.
Depois as marcas desapareceram. Ainda um dia gostava de deixar uma câmara a filmar o que se passa na nossa ausência, em especial de noite. São pegadas recentes, presumo que durante a noite.
Mais à frente, no chão, o que, num relance e vindo eu intrigada com as grandes marcas na terra, algo estranho.
Parecia a cabeça de um monstro vista de perfil, a cavidade do olho, a boca aberta com os dentes à vista. Aproximei-me. Ah... não. A casca de uma árvore. O monstro que anda in heaven não deixou ali a cabeça.
E mais à frente outro espanto. Afiadas como lanças dirigidas ao céu, umas pequenas pontas verdes. Será possível que as folhas das figueiras já estejam a querer despontar? Ou são espadas a que o monstro deita mão quando luta contra nuvens, fazedores de orvalho, pássaros invisíveis?
Também não sei. O que se passa aqui, in heaven, é um permanente mistério. E eu adoro isto, adoro estar aqui, faltam-me é as palavras para o dizer.
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E queiram adivinhar qual é um dos lugares que o Guardian elegeu como um dos melhores lugares que descobriram em 2018
[só digo que é no centro de Portugal, o resto podem ver no post abaixo]