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terça-feira, setembro 19, 2023

Dias mais complicados...
E as minhas últimas comprinhas (na Gulbenkian)

 

Um dia complicado. 

Na véspera tinha estado até às últimas a acabar umas coisas. O meu marido perguntou-me qual a pressa. Disse-lhe que prefiro ter as coisas despachadas não fosse surgir alguma situação que me impedisse de levar a água a bom porto. Sempre assim fui e agora ainda mais: gosto de acabar as coisas antes da data limite pois gosto de guardar uma reserva de tempo para imprevistos.

Parecia eu que adivinhava. Uma das coisas que mais impressão me faz, que sempre me fez, isto é, que me custa, é não poder ser eu a gerir inteiramente o meu tempo e as minhas actividades. Mas quem tem pais de idade sabe bem o que é andarmos com o coração nas mãos. Ou é uma coisa ou é outra. E, quando estão sob orientação permanente de terceiros em quem se confia para garantir que a medicação é seguida ou que os sinais de alarme são despistados, é uma coisa. Quando estão autónomos, independentes, orgulhosos de serem senhores do seu nariz, aí a coisa fia mais fino. Fazem o que querem. E não podemos obrigá-los a fazer o que não querem pois estão na plena possa das suas faculdades e ainda bem que assim é. 

O pior é quando o seu querer tem consequências. E não reconhecem como consequências mas, sim, como uma contingência de algo que não percebem ou não querem perceber: é que há dez ou vinte ou trinta anos faziam coisas cujas consequências eram nulas ou negligenciáveis mas, nos noventas, a fragilidade do corpo, já prega partidas.

Enfim. É o que é.

E, portanto, o dia foi daqueles com longas horas, preocupações, canseiras.

Agora parece que a coisa estará mais controlada. Mas, até que tudo passe, não fico tranquila. 

Tenho a sorte de viver muitos anos com os meus pais vivos. 

Mas assisti ao declínio do meu pai e ele também assistiu e sofreu muito por isso. Desde que teve o último e grave AVC ficou altamente debilitado, estando acamado nos últimos anos. Quando ele morreu, obviamente custou-me muito mas, racionalmente, compreendi que tinha chegado a hora dele, a hora de parar de sofrer, a hora de descansar, de chegar ao fim do seu caminho.

A minha mãe, felizmente está ainda bem, apesar das suas doenças e condicionantes. Mas está também a assistir às crescentes limitações que o seu corpo demonstra. E não está a aceitá-las bem. Receia muito essas limitações, desgosta-se muito, não aceita nem compreende, assusta-se. E, portanto, embora por razões diferentes do que aconteceu com o meu pai, com a minha mãe também não está ser fácil.

É lugar comum dizer que não se escolhe. 

Os jornalistas, quando entrevistam pessoas com alguma idade, têm o péssimo gosto de acabar as entrevistas com perguntas sobre a morte: pensa muito na morte? como gostaria de morrer?

Se me perguntassem parvoíces dessas mandá-los-ia à fava. Mas, por dentro, ficaria a pensar. Obviamente gostaria que fosse o mais tarde possível mas que acontecesse quando eu deixasse de gostar de estar viva e que fosse rápido, indolor e, de preferência, sem me aperceber que estava para acontecer.

Mas, pronto, isto não é conversa que se tenha. A questão é que estou cansada, um pouco esgotada.

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(...)
O que desaparece? E o que sobra?
Uma nuvem de aves brancas em céu de cinzas...

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Contudo, não me esqueci do que ontem disse, que ia mostrar os livros que trouxe da Gulbenkian. Contudo, vendo bem as coisas só um é que talvez possa ser cabalmente considerado como livro. Mas eu, que não sou purista, considero-os.

Mostro-os.














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Manon - final pas de deux - Sylvie Guillem & Jonathan Cope


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Um dia bom
Saúde. Tudo a correr bem. Paz.

segunda-feira, setembro 18, 2017

Outros luxos



Há alturas em que vagueio por entre leituras, sentido-me bem, apreciando o sabor das palavras, a elegância da escrita, contente por ter a sorte de gostar de livros.

Mas há outras em que, talvez porque mais predisposta, talvez por afortunadas coincidências, a experiência de ler é mais do que isso: é sinónimo de pura felicidade. Leio e sinto um envolvimento profundo que me transporta para aquele espaço indefinível em que a nossa matéria se dilui na felicidade de viver o momento.

De vez em quando, se o meu destino inclui a Gulbenkian no percurso, arranjo maneira de fazer coincidir um almoço rápido com uma ida à livraria. Mil vezes que pelo parque ou pela livraria eu ande, mil vezes me encanto como se fosse prazer inaugural. Desta vez o que trouxe de lá, para além da serenidade que o passeio por aqueles recantos frondosos sempre me proporciona, foi o Colóquio de Letras, Setembro/Dezembro 2017. 

Esta do Colóquio de Letras foi tema durante anos. Eu vinha de um namoro erudito. O meu namorado era todo artes e letras e eu, sendo naturalmente interessada por estes domínios, vivia imersa em informação, em revistas, livros, discos. Sendo ele pessoa muito dada à literatura, o Colóquio de Letras era uma lufada de arte, saber e ar fresco que consumia com avidez e do qual também me tornei devota. Ao começar a namorar o que viria a ser meu marido, todo ele de áreas mais exactas e concretas, falei-lhe uma vez no Colóquio e, para meu espanto, descobri que era coisa que ele desconhecia. Fiquei escandalizada. E ele deve ter achado o meu escândalo uma coisa disparatada pois, quando queria ridicularizar algum intelectual de pacotilha, acrescentava logo, 'ah... e não deve perder um Colóquio de Letras...'. Não me deixei abalar. Troquei de namorado, nada de mais, mas ao Colóquio de Letras mantive-me fiel.
No Colóquio gosto de tudo. A começar é o objecto em si. Agrada-me o design, a paginação, a qualidade do papel, o peso (é pesado, um compacto de luxo), o cheiro a tintas quando é novo. E gosto da selecção de temas, gosto do que lá se escreve, gosto do cuidado da feitura, gosto das imagens.

Mas este número é, de facto, especial: é um luxo. 


António Ramos Rosa e Herberto Helder. A poesia de ambos, a amizade que os unia, a correspondência trocada. A imagem das cartas, a letra deles, a insegurança de HH, o conforto que procurava junto do amigo, a palavra certa de ARR -- tão bom ler, ver, ter a poesia deles assim materializada.


E os poemas de ambos, poemas maiores, vozes a um tempo vindas das entranhas da terra, das entranhas da alma, da seiva das árvores, dos cavalos quando correm na noite, da seda das pétalas das rosas, do sangue das mulheres, da luz, das trevas, da imaterialidade do amor... O prazer de ter uma edição destas nas mãos, folheá-la, palpá-la, fechar os olhos e, ao voltar a abri-los, aquelas palavras ainda ali estarem, disponíveis, belíssimas.

Para acescentar ainda mais espessura à 'alquimia verbal da escrita de Herberto e à voz inicial de Ramos Rosa', as imagens de 'algumas peças da obra ao negro de Rui Chafes -- tal como Nuno Júdice o refere no Editorial.


Entretanto, este domingo, dia muito tranquilo: caminhada à beira rio, fotografias, almoço no cantonês, a aragem que faz dançar suavemente o arvoredo, as gaivotas, os veleiros, as cores doces deste fim de verão que já sabe a outono.


E, de tarde, um outro livro. Estou no princípio. Mesmo no princípio. E, no entanto, já lá estou dentro. Daqueles livros, pura literatura, em que as palavras nos levam pela mão. Bem sei, como no outro dia li a Javier Marias, que uma tradução é uma reescrita, a toada é outra porque a língua é outra, as subtilezas das palavras são, certamente, outras. Uma reinterpretação do original. Mas é uma tradução o que estou a ler (a cargo de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues). Se calhar, se estivesse a ler o original, o meu maravilhamento seria ainda maior. Mas é em português que leio e é em português que falo do prazer que o livro, desde já, está a trazer-me. Chama-se Pedro Páramo e é de Juan Rulfo que o publicou em 1955.


Ler sentindo o toque das palavras

E estou aqui a escrever e com vontade de parar já para ir ler o livro. E há livros em que retomo no exacto ponto em que os deixei porque cada palavra conta -- e não são muitos autores com quem isso acontece. Neste sim. Neste livro não poderei perder palavra. Se calhar, quando a ele voltar, vou até reler a última página para ter a certeza que a cerzidura na leitura fica perfeita porque este livro não é um livro qualquer. Vou no princípio mas já sinto que é raro. Um luxo.

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Excertos de Pedro Páramo lidos por Juan Rulfo



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E, porque este post é também deles, poemas de António Ramos Rosa e de Herberto Helder 
(lidos por José-António Moreira)

O teu rosto



O amor em visita


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Fotografias feitas este domingo


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Abaixo fala-se de uma pessoa pouco recomendável pelo que deverão avaliar bem se é de vossa conveniência perturbar a alegria que as gaivotas vos estão a enviar

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