Onde eu hoje estive, o que vi e ouvi, está acima e abaixo do que posso aqui dizer. Se eu pudesse descrever, e não posso, poderia algum cineasta passar a coisa a filme e, consoante o ângulo, assim seria obra do mais puro surrealismo ou realismo fantástico ou realismo trágico ou comédia da melhor.
Gostava de contar pois acho que aquilo puxa pela minha veia de escrevinhadora. Não sei que personagem elegeria para artista principal pois poderiam ser três. Um poderia encarnar o cristo ressuscitado. Morto, morto, morto de vários dias. Coisa mais louca. Vim desalinhada de mim própria tanta a coisa estranha e fora do comum mundo dos mortais que presenciei. O que me ciceroneou estava muito nervoso e isso manifestava-se no gaguejar e na forma ansiosa como aspirava o ar, quase engolindo a máscara, enquanto os olhos se esbugalhavam na minha direcção, certamente sem saber se sairia vivo daquela provação.
Mas como não posso contar, é com esse filme em subconsciente, que aqui estou. Só espero é que daqui por algum tempo ainda guarde memória desta experiência limite para dar largas ao meu gosto de escrever sobre bizarrias verídicas que todos tomam por ficções amalucadas.
Aqui chegada a casa ainda fomos ao supermercado, estava com falta de bacalhau e queria também comprar corvina (anda a apetecer-me uma boa sopa de tomate com corvina e ovo escalfado) e mais uma ou outra coisita, nomeadamente um baton, e o meu marido queria comprar pellets, mas, se eu tive sorte, ele não. E vi lá uma embalagem que dizia: 'os nossos delicioso pastéis de nata' e, então, a sair que estou do meu período de doença incompreensível que até o apetite me retirou, perguntei-lhe: 'queres uma embalagem de deliciosos pastéis de nata?' Ficou admirado com os termos da pergunta mas disse: 'pode ser'. E, portanto, depois de jantar, aquecemos um pastel para cada um e chamámos-lhe um figo.
E é isto. Estou manietada e sem saber de que falar. Claro que poderia falar do teste positivo de Marcelo. Ainda bem que está assintomático e desejo que assim se mantenha. A minha mãe, que anda irritadiça com os confinamentos, apetecia-lhe sair, conviver, e como, com isto, não pode, dizia-me hoje à hora de almoço: 'esses estúpidos que não têm cuidado nenhum é que fazem isto, estúpidos, andam sem máscara, estúpidos'. Tive que lhe lembrar que não são só os estúpidos que andam sem máscara, é também a Graça Freitas, é a mulher do Macron, é gente por todo o mundo que, apesar de bem informada e cuidadosa, aparece contagiada. O corona é uma besta desencabrestada. Pior: não é uma besta, é uma manada de bestas desencabrestadas, aos pinotes.
Acumulado de casos à data de 11.Jan.2020
Acumulado de óbitos à mesma data
O crescimento acentuado e a inclinação das curvas falam por si. Adiante.
Abro o Youtube a pensar: deixa lá ver o que é que essa grande bicha, a prima algoritma do Youtube, hoje tem para me animar e para me salvar a dia blogosférico. E foi na mouche.
Ferreira Gullar fala de Vinicius e é coisa gostosa de ouvir
Sua poesia mudou. Sua vida mudou. Mas era assim que tinha que ser, pois a desarmonia sempre foi o seu alvo: “Eu não tenho projeto, eu nunca tive projeto”, dizia ele. Agia por impulso permanente de mudar. Revolucionário de si mesmo, sem pudores, mudava de opinião, e talvez corroborasse com Paulo Francis, mesmo em um período de sua trajetória na qual os dois pudessem estar diametralmente opostos, seguindo a máxima do jornalista (também outrora de esquerda): “Toda pessoa inteligente é contraditória. Só gente burra que nunca se contradiz”.
Gullar mudou, mas sem jamais deixar de ser Gullar, poeta que dava peso e medida a cada palavra desmedida de sua poesia, comprometida com a informação de um sentimento ou estado de espírito, mesmo quando parecia não estar.
(...) Gullar, na sua fragilidade física — era mais baixo e magro do que parecia aos que o conheceram somente pela televisão — era glutão como poucos se o assunto era o conhecimento. Sua biblioteca, que transformava sua casa, e especialmente sua sala, em um ambiente belamente claustrofóbico, misturava-se aos quadros e esculturas. Presentes que ganhou de tantos artistas sobre os quais escreveu e a respeito dos quais se calou, mas amou profundamente. Lá havia também sua gatinha, presente da cantora Adriana Calcanhoto, mais um mimo de artista, e mais uma coisa viva que lhe rendeu um poema, no qual se refere à cor dos olhos da gatinha: “olhos azuis safira”, muito mais dignos de interesse do seu sujeito lírico do que os mistérios do mundo, ante os quais se rendia, deles nem querendo saber: a vida presente, os homens presentes, o tempo presente.
O cheiro das tangerinas, Ferreira Gullar (10 de Setembro, 1930 – 4 de Dezembro, 2016)
Ferreira Gullar, poeta, crítico de arte e ensaísta, ilustra o nascimento da poesia a partir de uma situação pessoal. Da experiência repetida, surge um encantamento, revela-se uma nova visão sobre algo já conhecido. Abre-se um novo mundo até então nunca vivido: “É isso que faz o encantamento da poesia, porque o resto é tudo previsto.” Conferencista do Fronteiras do Pensamento 2015.
Ferreira Gullar explica como nasceu um de seus principais e mais autobiográficos trabalhos, “Traduzir-se”: “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo”.
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(Fotografias feitas na manhã deste domingo que começou bem chuvoso.
Na primeira, o cor de rosa é uma ponta da minha esvoaçante écharpe)
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma semana feliz.
Voltei a chegar a casa muito tarde. Não me parece correcto interromper as pessoas, deixo-as falar.
Está a acontecer-me, uma vez mais, aquilo que tantas vezes me acontece nos mais variados contextos. Sem que eu perceba porquê, as pessoas, do nada, começam a contar-me a sua vida, os seus problemas, as suas ansiedades. No fim, agradecem eu ter-lhes prestado atenção, sorriem e, se antes, no início da conversa, estão soturnas, tensas, ansiosas, no fim sorriem, parecem outras.
E eu, por dentro, fico a pensar que não sei porque é que voltou a acontecer e sinto-me preocupada pela responsabilidade que isso representa. Se as pessoas me entregam segredos, preocupações, desilusões, me falam da sua vida pessoal, como posso eu correr o risco de vir a defraudar as suas expectativas? Mas que tenho eu para lhes oferecer?
Porque me acontece isto? Não sei. E, no entanto, passa a vida a acontecer. Se estou no supermercado à espera que chegue a minha vez para o peixe, como sucede que uma pessoa, que nunca vi antes, comece a falar-me das preocupações que tem com o seu filho, das dificuldades dele em manter um emprego, do pouco que liga ao próprio filho? E eu pouco digo, pouco, apenas ouço. De vez em quando faço uma ou outra observação que parece que incentiva as pessoas a prosseguirem os desabafos porque parecem achar que as entendo, ou que posso pronunciar a palavra certa que as vai aliviar.
Ou, noutra vez, estacionar o carro e levantar-se uma senhora que estava sentada num muro e vir contar-me que lhe morreu o filho e que não consegue estar em casa sem ele?
Ou, mesmo aqui, receber mails em que as pessoas me contam a sua vida desde pequenas? Os medos, as dificuldades? Porque o fazem? Será porque acham que as vou compreender? Porque mais ninguém as ouve? Juro que não sei.
Agora também é isto. Falo com as pessoas para perceber o que fazem, pergunto-lhes o que gostam de fazer e, nem sei como, num ápice, já estou a ouvir confidências, já as pessoas parecem não conter a torrente que têm dentro de si. Hoje uma senhora, uma simpatia, dizia que não queria maçar-me, que era só mais uma coisa. Mas depois dessa vinha outra, e eu, que mais ouço do que falo, quando falo, ouço-me a falar como se já as conhecesse há muito tempo e, no meu íntimo, penso que tenho que descobrir maneira de as deixar felizes, de as fazer sentir úteis, a sentir que o seu mérito é reconhecido. Mas saberei eu como fazê-lo?
E as pessoas falam comigo quase como seu eu tivesse o seu futuro nas minhas mãos e eu não sinto isso, eu sinto-me tão insignificante, tão cheia ainda de dúvidas. E digo-lhes isso, que estou a aprender, que quero reunir informação para decidir bem e vejo a compreensão no rosto deles, dizem-me que não é fácil, que mesmo que quisessem não saberiam o que me recomendar mas que confiam que decidirei bem.
Depois, à vinda, no carro, o dia já a querer anoitecer, faço as minhas chamadas, falo com a minha mãe, com a minha filha, com o meu marido (com o meu filho falo depois, a combinação é ser ele a ligar-me) mas, nos intervalos, sinto alguma vontade de chorar porque, de facto, das minhas decisões dependerá a motivação e o ânimo ou a desilução, a continuação do cansaço e da saturação daqueles que parecem confiar tanto em mim. Essa confiança toca-me, comove-me.
Quando se encomenda um trabalho a consultores, eles fazem levantamentos, fluxogramas, escrevem narrativas, elencam aquilo a que agora se chama quick wins, e, se lhes encomendarem isso, até fazem recomendações sobre o nome das pessoas que, na análise deles, corresponde ao profile ou detêm as skills para a função. É uma defesa para quem tem que tomar decisões: dir-se-á que maior transparência não pode haver, que as decisões foram neutras, que se seguiram as recomendações dos consultores e que eles seguiram as best practices. É assim a novilíngua de muito boa gente que pulula na gestão de empresas - e, note-se, não estou a criticar. Na volta, ainda é mesmo esta a forma correcta de trabalhar.
Eu não, eu sou old school. Eu não digo palavrões desses, não sigo modas. Falo com as pessoas com as palavras do dia a dia. Ouço-as.
Depois, claro, não consigo interrompê-las especialmente quando as vejo até emocionadas, coração nas mãos, confiando em mim como se eu fosse uma santa aterrada directamente ali. Daí, muitas vezes, as lindas horas a que agora ando a chegar a casa.
Mas nem tudo depende de mim nem é seguro que eu, perante dezenas de peças, sem instruções, consiga montar o puzzle perfeito.
Ao chegar, tarde e más horas, ainda tive a companhia do meu marido numa caminhada, depois fiz o jantar, fiz a mala, e, então, lá consegui chegar aqui.
E ainda estou com isto na cabeça, as pessoas a confiarem tanto em mim e eu ainda sem saber exactamente o que vou fazer (tanto mais que os meus propósitos não passam exclusivamente pela motivação das pessoas mas, também, por uma série de restrições e objectivos de outras naturezas entre as quais as de índole económica).
Por isso, ao ligar o computador, pus-me a ouvir músicas para ver se lavava a alma e a ver se encontrava imagens interessantes para aqui colocar, na vã esperança de me ocorrer algum outro assunto, tavez até rêveries, coisas à toa. Mas a minha cabeça hoje está noutro lugar. É mais fácil fazer as coisas longe das pessoas, contratar umas empresas para fazerem o trabalho limpo e outras para o trabalho sujo. O que eu faço tem risco, posso falhar e terei sido eu, apenas eu, a falhar.
Enfim. Conversa chata esta hoje, não é?
Páro já.
As fotografias mostram paredes graffitadas e muros de onde pendem flores secas no Ginjal.
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Lianne La Havas, lá em cima, tem uma bela voz e o vídeo é muito bom mas vou ver se descubro também um poema ou um bailado bonito para que não sintam que vieram aqui em vão. Já cá volto, está bem?
Mas não posso demorar-me muito porque tenho que me levantar cedo. Também não sei se esta quinta-feira à noite conseguirei escrever alguma coisa pois vou para fora e, nestas coisas, jantar nas calmas e conversa sem pressa, volta e meia dão que o regresso ao hotel é tardio e, dado que, no dia seguinte, é também para madrugar, pode não dar para escrituras bloglosféricas. Mas logo vejo.
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Ora bem. Assim de repente:
Poema para Clarice Lispector -- Ferreira Gullar
[Porque, de facto, de facto, poucas coisas neste mundo dependem de nós]
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E agora, se estiverem de acordo, dancemos.
Uma vez mais: "Por una cabeza"de Carlos Gardel
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.
Num dia de canseira e ventania, estou mais para ser embalada do que para dissertações ou regabofes. Cansada, com sono, a precisar de dormir. Que dias estes, de manhã à noite, senhores, e o trânsito um horror. E o vento.
Durmo de janela aberta, gosto de sentir a aragem fria sobre o corpo. Por vezes acordo de madrugada com as gaivotas: gritam, gritam. Não sei se são lamentos, se é um choro sofrido, se é gozo, festa, dança, namoro. Não sei. Acordo e ouço-as, tento manter-me acordada, perceber quantas serão, o que fazem na relva àquelas horas escuras. Mas logo adormeço. Levo-as e às suas longas asas brancas dançando no escuro da noite para dentro dos meus sonhos.
Mas a noite passada não foram elas que me acordaram. Foi o vento arrastando coisas pela rua, tudo batia, tudo fugia na rua escura. Custou-me adormecer. E depois o dia, todo, todo.
Chego a esta hora e o corpo pede-me descanso.
Pois que descanso tenha.
Que me desculpem os meus Leitores mas hoje estou em modo piloto automático, a cabeça a funcionar nas margens do sono, incapaz de pensamentos conscientes. Funciona apenas uma parte de mim, uma parte pequena, a só me pede silêncio, imagens de outros mundos, palavras que me tragam notícias de lado nenhum, e que chegue até mim qualquer diferença, preciso de diferenças, estou farta da normalidade, da mediania, quero ver o que nunca vi, quero palavras que não façam sentido à luz dos preceitos vulgares, estou farta, farta, de racionais, de conversas alinhadas, encenadas, na verdade quase vazias. Ou que venham até mim corpos que se movam como eu, em sonhos, gostaria de me mover, fora de mim, para longe de mim.
Afasto de mim as sombras, não as quero. Ou então não, que venham - mas venham macias, sibilinas, sussurrantes, dizendo-me segredos perigosos, olhando-se sem medo, aliciando-me. Ou que a luz me ofusque, me desarme, me desequilibre.
Fecho os olhos e puxo a estranheza que me é irmã, deixo que me abracem os sons que me trazem labirintos, galerias perdidas no fim do mundo, barcos abandonados nas praias ao sabor do vento e das areias. E que me tomem em suas asas os pássaros de escamas de fogo, que me levem, que me levem para as nuvens, para os castelos em ruínas habitados por espíritos azuis, por poetas, por músicos loucos, por cavaleiros perdidos, por sonhadores sem rumo, por deusas, por rastos de luz.
E, quando nada mais fizer sentido, eu fecharei os olhos e dormirei descansada, dentro de um mundo inventado onde os abraços que me envolvem são quentes e íntimos, onde as palavras me acariciam como se fossem deuses saídos do fundo do mar, transparentes como poesias infinitas, e com olhares longos e húmidos como a boca do meu amor.
Duck feather dress, The Horn of Plenty, AW 2009-10, Model Magdalena Frackowiak, image : firstVIEW
[Isabel Munoz part quant à elle en Colombie avec "Eros y Ritos, Eros et rites". Avec ses portraits de danseuses sous des masques rituels, elle révèle l'essence de l'être humain, à la recherche de ses craintes et de ses passions.]
Sim. Eu tenho o coração tomado de amor. Sou dessa gente que vai com tudo, caminha na brasa, mergulha na lava, se joga no fogo louco do encontro. Da vida, quero nada senão viver assim. Em chamas. É daí que vem todo o resto.
Comigo, essa história de pé atrás não funciona, não. O amor chega e entra com os dois pés e o que mais há em volta.(...) Contenção no amor é desperdício, sonolência, anticlímax, chateação. Quem sente amor tem a pele fustigada por um raio, voa baixo, treme de susto.
E que o diga o casal feliz de outro tempo em suas histórias de encanto e seus quarenta anos de namoro e sonho, suas viagens pelo mundo, seu olhar de cuidado aos mais jovens: o amor é ou não é um susto, um abalo, um assombro, um sobressalto? Decerto que é. O amor é o inesperado, o carro que quebra na padaria, a água que falta, o gás que acaba. (...)
“Ah! Mas isso não é amor, é só paixão”, dirá o ser impecável, perfeito, em sua fúria por rotular a vida e quem nela esteja. E eu respondo: que seja! A paixão é minha e eu dou a ela o nome que eu achar que devo. Inclusive amor, esse palavrão que incomoda tanto a tanta gente. (...) Mas que ainda assim, quando se tornar robusto, maduro, corajoso, conserve em si o frio na barriga, a saudade, o riso fácil, o jeito simples e as declarações de apreço com os olhos brilhando de ternura.
Assumo e declaro: meu amor não tem pudor. Amo em total descaramento. Vergonha eu só tenho na cara, não no coração. (...) Fazer o quê? Uma hora eu aprendo. Com tempo e trabalho e coragem, eu aprendo a ter menos vergonha e ainda mais amor.
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?
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Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
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Pela segunda vez aqui, a música é Epilepsy Is Dancing numa interpretação de Antony and the Johnsons -- e o vídeo deverá ser visto pois é qualquer coisa de irreal.
O primeiro poema é um excerto de Poema Sujo, de Ferreira Gullar
A prosa é um excerto de Deixemos de coisa. O que mata mesmo é abrir mão de viver de André J. Gomes na Bula
O penúltimo poema, transcrito (numa tradução de Pedro Gonzaga) e lido (por Tom O'Bedlam), é O pássaro azul de Charles Bukowsky
O último poema é A Festa do Silêncio de António Ramos Rosa
A primeira e a última fotografia fazem parte da exposição Savage Beauty relativa à arte feérica de Alexander McQueen que vai estar até 2 de Agosto no Victoria & Albert Museum
A segunda fotografia, de Isabel Muñoz, integrou a exposição 6 artistes pour 6 "Regards de femmes" que decorreu na Galerie Hegoa (França)
O ballet é 'Chroma' chor. Wayne McGregor, numa interpretação de Artem Ovcharenco e Anna Tikhomirova (Bolshoi Ballet)
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quarta-feira mesmo muito feliz.
No post a seguir a este falo, com gosto, das profissões que se confundem com a vida e, em particular, falo de uma profissão a que, verdadeiramente, nunca tinha prestado muita atenção: a dos desenhadores de letras. O filme que acompanha o que escrevo é eloquente.
A seguir falo de uma outra profissão: a de barbeiro. E mostro um, que dizem ser o melhor do mundo e que, notoriamente, também exerce a sua profissão com um prazer quase descontrolado.
Mas isso é a seguir, lá mais para baixo. Aqui, agora, a conversa é outra.
*
Para já, para nos acompanhar no percurso das palavras, a música das mulheres
(Compositoras otomanas)
[Destaque para a segunda peça da autoria da Princesa Refia Sultan]
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'Na sua essência, a poesia é algo horrível: nasce de nós uma coisa estranha que não sabíamos que está dentro de nós'
Czeslaw Milosz
O português reinventado por Adélia Prado é uma língua que junta quotidiano e revelação; uma língua que não se envergonha do seu uso doméstico, mesmo quando impreparado, descosido, iletrado; uma língua onde a palavra é coisa; uma língua que pergunta sem parar; que hospeda o 'esplêndido caos de onde nasceu a sintaxe(...); uma língua que não é explicação; uma língua que não quer ser monumento, nem símbolo; uma língua rasteira, experimental e mística.
(Manoel de) Barros inventa uma nova arte combinatória para as palavras, e o fraseado da nossa língua descobre a delícia e a irrequietude do insólito. A língua torna-se artesanal em vez de mecânica. Perde o desinteressante ar enfatuado e vago com que se defende. Ganha humor, precisão e infância. Torna-se moderna e primordial. Preciosa como um desenho rupestre. Um concerto a céu aberto para solos de ave. Um protocolo vegetal. Um tratado geral das grandezas do ínfimo.
O português de Ferreira Gullar é maravilhosamente único. Com ele aprendemos que a língua gesticula e é gráfica nas suas torções sintáticas, encontra soluções para lá da lógica, inventa combinações fónicas que não existem no nosso código linguístico, escapa ao convencional, desarticula-se, faz cortes, torna-se vinculada e concreta nas suas colocações, abre parêntesis, é espúria e puríssima e é tanto mais lírica quanto dissonante. A língua vai e vem, faz-se e desfaz-se, e esse movimento é a sua estrutura: a dialética incessante de superação e recuperação do universal e do singular, num obstinado expor-se à prova do mundo.
(O maravilhoso amor pela língua portuguesa)
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Onishi Yasuaki - Vertical emptiness
A beleza branca do abandono
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A música das compositoras otomanas foi-me dada a conhecer pelo Autor do blogue A Matéria do Tempo onde eu tanto aprendo e me surpreendo.
As fotografias são da autoria do fotógrafo Yuval Hen que está a dar que falar. Não têm directamente a ver com as palavras mas eu queria ter imagens brancas com mulheres, imagens em que as mulheres parecessem quase flutuar como se o mundo das palavras as levasse para um espaço sem gravidade, sem maldade, sem pressa - e estas pareceram-me adequar-se ao que eu queria.
O filme mostra-nos a obra do artista plástico Onishi Yasuaki
Os excertos acima transcritos fazem parte da belíssima crónica desta semana de José Tolentino Mendonça na Revista do Expresso ['Não sabíamos que está dentro de nós' de 'que coisa são as nuvens]. Só ele mesmo, homem de palavras suaves como uma brisa gentil no fim da tarde, para nos falar assim, com tanto amor, das palavras de outros, poetas como ele.
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Muito gostaria ainda de vos convidar a visitarem o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde hoje tenho um vídeo inesperado: Eduardo Tornaghi lê e fala de Adília Lopes. Mais uma agradável surpresa.
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Relembro: se descerem por aí abaixo encontrarão profissionais que exercem a sua profissão com inusitado prazer. Uns felizardos: desenhadores de letras e um barbeiro.
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E com isto me despeço por agora.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira.