Há coisa que não tem jeito. Faz nem sei quanto tempo que não consumo. Abstinência total. Um bom comportamento de dar direito a medalhinha.
Curioso é que nem fiquei de ressaca. Nada. Parece que esqueci o tempo em que consumir fazia parte da minha vida.
Curioso, também, que nem sequer sonhei.
Curioso, também, que nem sequer sonhei.
Digo isto porque, depois de ter deixado de fumar, volta e meia sonhava que fumava. Longas inspirações. Ou aspirações, tanto dá. Depois expirava lentamente. Aquele prazer. E invariavelmente, nessa altura, acordava num sobressalto, tinha voltado a fumas, tinha-me esquecido de que já não fumava. Até que, aos poucos vinha a mim e percebia que tinha sido um sonho. Mas aquela sensação tinha sido absolutamente verdadeira. Custava a voltar a adormecer, tão intrigada ficava com aqueilo: tinha mesmo revivido a sensação de fumar.
Mas nada. Nada mesmo. Nem blusinha, e tanto que gosto de blusa fininha de seda, nem brinquinho, e se eu sou amarradona em brinquinho, nem um chanelinho, e se eu curto um cincozinho. Nem livrinho. Nada. Livrinho novo, nada. Tanto que eu gostava de andar a fazer-me rogada, que só ia olhar de longe, que nem pensassem que iria bandear-me, no way, já estou bem servida, não preciso de mais, só olhar que olhar não arranca bocado. Mas depois, já cedendo à tentação, toda eu a inclinar-me para o pecado. Se me parecia de bom verbo, de bom aspecto, elegante, bom ao toque, já eu me sentia a cair, toda eu a arrastar a asa. Saía de lá com um pela mão. Ou mais. Em dias de gula e destempero, já era um em cada mão, ou, se era para a desgraça, uns três ou mais encostados ao peito.
Chegava a casa e cheirava-os, espreitava-lhes os interiores, passava-lhes a mão pela lombada. Um prazer. Abrir ao acaso, ler, perceber como eram quando apanhados na curva, sem aviso prévio. Tão bom que era.
Há quanto tempo.
Asceta dos quatro costados, agora. Enfiada no campo, roupa do fundo das gavetas do fundo, sem uma gotinha de perfume que se justifique, toda eu entregue à comidinha caseira, a passeios pelo campo, fotografia a toda a hora de florzinha simplória. Esta agora sou eu.
Está certo que, pelo meio, faço outras coisas mas isso agora não interessa para nadinha.
Asceta dos quatro costados, agora. Enfiada no campo, roupa do fundo das gavetas do fundo, sem uma gotinha de perfume que se justifique, toda eu entregue à comidinha caseira, a passeios pelo campo, fotografia a toda a hora de florzinha simplória. Esta agora sou eu.
Está certo que, pelo meio, faço outras coisas mas isso agora não interessa para nadinha.
Num desses pelo meio nova discussão: está na hora de se regressar ao local de antes do merdinhas? Eu acho que a coisa tem que ser na base da prudência, só regressar quem tem que regressar, manter as empresas a trabalhar mas da forma mais segura possível. Mas claro que se isto, por um lado, bate tudo certo e parece sensato, por outro, implica que mais gente como eu se torna não consumista. E, se isto é muito lindo, a verdade é que toda a gente que trabalha neste tipo de comércio vê a vida a andar para trás. Claro que aparecerão novas actividades, claro que tudo, aos poucos, se reajustará. Mas, pelo meio, os donos das grandes torres de escritórios e das grandes catedrais de consumo devem estar a deitar contas à vida. Quanto desemprego para tanta gente?
A propósito: li que um dos donos do Colombo é um dos futuros donos da Brisa. Ui. Numa altura em que as contas do Colombo devem andar pelas ruas da amargura vai assinar pela concessão de autoestradas que estão vazias. Coitados dos que estão à espera de bons rendimentos à conta destes investimentos.
Adiante que, à noite, no meio do campo, a minha mente não tem nada que se esgueirar por tão ínvios caminhos.
Dizia eu. Isto do consumo. Coisa perversa. Penso: mas será que estou capaz para voltar a uma livraria? Passar a mão neles, pegar-lhes? E se algum corona ranhoso lá pousou? Quem garante que uma tosse ou uma mão contaminada não o contaminaram também?
E blusinha linda? Vou provar? Vou pegar numa coisa em que outras mãos pegaram?
Mas também para quê? Preciso lá eu de mais alguma coisa?
Ando nisto, nesta divergência entre mim e mim. Quando vou voltar a circular para além do básico? Vou ao supermercado e já me chega. Trabalho em casa. Ando pelo campo. Estou bem assim. Quando puder circular, irei ver os meus amores e amorzinhos. E eles poderão vir cá. E tudo ficará melhor ainda.
Mas vai ser esta a vida? A minha? A de todos os reconvertidos?
Recebi uma sms da simpática cabeleireira de bairro onde ia quando o rei fazia anos. Diz que podemos contar com o cuidado dela. Coitada, tenho pensado tanto nela. Mas vou lá fazer o quê? Quando preciso de cortar no cabelo, pego numa tesoura a corto.
Paguei outra vez o mês inteiro à senhora que lá ia a casa, na cidade, uma vez por semana limpar a casa e passar a ferro. A casa está vazia há mês e meio. Quando vou voltar a precisar de limpezas semanais naquela casa? E vou querer que uma pessoa que circula por várias casas por lá ande, pela minha casa, mexendo em tudo? Mas coitada dela.
Paguei outra vez o mês inteiro à senhora que lá ia a casa, na cidade, uma vez por semana limpar a casa e passar a ferro. A casa está vazia há mês e meio. Quando vou voltar a precisar de limpezas semanais naquela casa? E vou querer que uma pessoa que circula por várias casas por lá ande, pela minha casa, mexendo em tudo? Mas coitada dela.
E estou nisto. Cheia de dúvidas. A cabeça dividida. Sem saber para que lado orientar os neurónios. Os chamados mixed feelings.
Vá lá que, quando a cabeça precisa de se alienar ou não atina com o caminho, há os vídeos que caem do céu para me tirarem dos becos de onde não sei sair.
Pode ser uma que não faço ideia quem seja ou outra que idem. Não faz mal. Ponho-me a ver e gosto. E gostos não se discutem, ora essa. E se aparecem a mostrar a casa ainda melhor. Gosto de ver casas. Excepto as escuras, as armadas ao pingarelho ou as desnaturadas. Mas estas que o meu amigo me recomendou são bonitas. Gostei.
Pode ser uma que não faço ideia quem seja ou outra que idem. Não faz mal. Ponho-me a ver e gosto. E gostos não se discutem, ora essa. E se aparecem a mostrar a casa ainda melhor. Gosto de ver casas. Excepto as escuras, as armadas ao pingarelho ou as desnaturadas. Mas estas que o meu amigo me recomendou são bonitas. Gostei.
__________________________________
As pinturas são de Maqbool Fida Husain que, à primeira vista, não me parece que vá muito à bola com o Smile interpretado pelo David Gilmour. Mas quem sabe se à segunda...
__________________________________________________
E uma boa quarta-feira. Saúde e carapaus para o gato.