quinta-feira, abril 30, 2015

Mário Centeno na TVI - não há pai para ele, é o que vos digo


Ligámos a televisão estava o programa a meio ou mais do que isso. Paulo Magalhães mediava um debate entre Mário Centeno, Carlos Carvalhas e Luís Pais Antunes. E uma coisa vos digo: não é costume termos na televisão uma pessoa tão bem preparada, com um tão elevado sentido didáctico aliado a uma simpatia natural e boa educação.


Mário Centeno deu um baile nos outros... Por muito que os outros quisessem levar o assunto para campos banais, plantações de clichés, de lutas antigas e de argumentos gastos, ele manteve-se na dele, na boa, e, com ar inocente, varreu o terreiro a varapau... sempre com uns modos cordatos, sorridente, seguro das suas razões.

Se há personalidade que se esteja a destacar neste campo cinzento e desinteressante em que se tem vindo a tornar a política portuguesa e que esteja a aumentar a credibilidade do PS perante a opinião pública, é seguramente Mário Centeno.

Não fala de cor, não vai atrás de argumentações fáceis: com serenidade, explica o que se passa, faz um enquadramento geral e remata à baliza. Boa. Bela cartada esta do António Costa ao ter ido desencantar este senhor e ter-lhe dado tamanha visibilidade. É que, ainda por cima, tem boa pinta, é simpático. E está a mudar a forma como se fala de economia e política em Portugal.


PS: Enquanto escrevo, estou a ouvir a Manuela Ferreira Leite na TVI, uma vez mais a dar um tareão no PSD, nomeadamente por causa da proposta estapafúrdia do Marco António Costa de mandar auditar as medidas apresentadas pelo grupo liderado por Mário Centeno por parte Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) o que, segundo ela, até revela falta de respeito pelas instituições públicas (e, diz ela, se a Teodora Cardoso não se atirou ao ar é porque não percebeu bem a coisa). Que tareão! Daqui a nada até o Paulo Magalhães paga por tabela, já que ela não tem ali o Marco António para o esbofetear à bruta como está na cara que é o que lhe apetece fazer.


Sampaio da Nóvoa, Rui Rio, António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, Marco António... e um excerto de Murphy que se aplica a Passos Coelho e que serve para eu daqui enviar um conselho aos senhores do PS. Alô, alô!


No post abaixo já falei de Murphy, essa fantástica criatura de Beckett que estou a adorar conhecer e, mais abaixo ainda, mostrei Lagos, o lugar branco banhado de azul que Sophia tanto cantou.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, vou ser breve para não cansar a vossa beleza.

Não vou falar muito da candidatura de Sampaio da Nóvoa porque não tive ocasião de ver na televisão o seu lançamento nem me apeteceu pôr-me a ler notícias mas, de raspão, vi que Soares e Sampaio lá estiveram e repito que, apesar de não conhecer bem a personalidade do agora candidato, não vejo que haja razões para temer que não seja eleito. 


Entre ele e Guterres, estou em crer que os portugueses preferirão Nóvoa. Guterres está demasiado conotado com a imagem de deserção em momento complicado, preferindo cargos internacionais de prestígio. Os portugueses, se bem leio o sentimento geral, mais depressa aderirão a alguém que venha de fora dos meios partidários, que apareça com um bom propósito, ideias claras, uma visão de progresso e de humanismo, do que a alguém que veja na Presidência da República o fim da sua carreira política ou uma situação de recurso.

Recear que Nóvoa perca para Marcelo Rebelo de Sousa parece-me também um temor sem razão: Marcelo é, na política, um perdedor. 


Perdeu na Câmara de Lisboa, meteu-se em sarilhos no curto espaço em que esteve à frente do PSD e, que me lembre, não teve qualquer outro cargo político relevante a nível de liderança. Tem audiências na TVI, é certo, mas não sei se não está demasiado conotado com a imagem de um fala-barato, intriguista, tacticista, e que anda há que séculos a ver se vai a presidente de qualquer coisa sem o conseguir, daqueles que não dança nem sai da pista ou que mastiga, mastiga e não engole - uma coisa nessa base.

O único dos que se perfilam que me parece poder ter hipótese é Rui Rio. É muito pão, pão, queijo, queijo, e penso que facilmente estabelecerá empatia com a uma população carente de ter alguém na política em quem se possa acreditar.

António Costa, para Primeiro-Ministro tem uma imagem credível (e, agora que resolveu dedicar-se mais a sério, tem andado bem, inspirando confiança e com aquele toque de boa disposição confiante que é a sua imagem de marca) pelo que, não tarda, estará em S. Bento e facilmente Rui Rio poderá surgir, aos olhos dos eleitores, como um bom contraponto em Belém.

Sampaio da Nóvoa, para bater Rui Rio (se ele acabar por se chegar à frente), terá que ser mais do que um idealista, um homem puro e bom. Acredito que possa mostrar ser um homem equilibrado, estável, com os pés na terra e uma cabeça capaz de ver ao longe. Se o conseguir, diria que tem boas hipóteses.


De resto, presidenciais à parte - que isso ainda vem longe -, no curto prazo só espero que o PS consiga impor uma imagem de maturidade política, rigor e modernidade. Para já, já, o que se pede é que saiba enquadrar essa criatura que dá pelo nome de Marco António Costa e que é do piorzinho que o PSD tem. 


Não me parece que faça grande sentido dar importância a uma figurinha daquelas mas, enfim, se já foi dito que a carta-provocação vai ter resposta pois que o tenha mas que, se aproveite, para dizer ao PSD, mas dizer alto e bom som, que se enxergue. Depois do que fizeram ao País deviam era esconder-se aí debaixo de uma moita qualquer para a gente nem dar por eles - em vez de andarem com bravatas infantis. O Eduardo Pitta é que perguntou bem: mas esta gente injecta-se ou quê?




Passos e Portas - essa dupla humorística que, se não andasse ao mesmo tempo a destruir o País, nos divertiria à brava, tal a desfaçatez do que dizem, tal o ridículo de que se cobrem, tal a cara de pau com que se apresentam - andam num nervosismo. Primeiro foi o documento com as medidas propostas para a Próxima Década para Portugal, agora o lançamento da candidatura de Nóvoa: e aí vão os dois, quais caniches a quem atiram ossos, ora para um lado, ora para outro. Ora querem auditar um documento elaborado por economistas, béu béu, ora querem já apoiar uma candidatura presidencial, béu béu, béu béu.




E a graça que tem quando põem um microfone à frente do Passos: a gramática não é o seu forte, isso é sabido, mas não é só uma questão de arrumação e conjugação das palavras, é mesmo o raciocínio que se ensarilha de duas em duas palavras.

Há bocado, na leitura do Murphy de Beckett, li uma coisa que se aplica como uma luva a este triste Láparo que nos calhou na rifa. Passo a transcrever:
Conceber uma opinião e exprimi-la era submeter o seu talento a rude prova. Quando é que aprenderia a não se enfiar nos labirintos de uma opinião sem fazer a mínima ideia de como iria de lá sair? 

Ou seja, ó senhores do PS, ponham o homem nervoso, avancem com iniciativas, deixem-no atarantado - e o resto ele faz sozinho, basta que lhe apareça um microfone à frente. Um fartote, uma barrigada de riso, o país a rir à gargalhada das argoladas que ele se encarregará de debitar da boca para fora de cada vez que resolver emitir opinião.

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As imagens, como bem se vê, provêm do blogue We Have Kaos in the Garden.

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E permitam que relembre: mais Murphy (e o Beckett a dizer Beckett) e, a seguir, Lagos, linda e azul, é já a seguir, é só rumar a sul (aqui no blogue, claro).

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira, com bom humor de preferência

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Murphy e Beckett


É sempre a mesma coisa: que livros trazer? Um seguramente, outro para depois, outro caso não goste de algum dos outros, outro para intervalar, um pequeno que não pese e que possa dar jeito para ler caso acabe outro entretanto. Mas quais? A coisa começa por cerca de uma dúzia e depois vai havendo uma purga até chegar a cinco de bom tamanho.

O primeiro, aquele que vim logo a ler, foi Murphy de Beckett. O que eu me ri todo o caminho! Volta e meia lia em voz alta e o meu marido sorria ao de leve e dizia que tinha que ser, só maluquice. Mas que gozo, que gozo, e tão bem escrito, tão, tão bem.

Ainda pensei em transcrever aqui umas dessas partes hilariantes mas não dá, a coisa tem graça pelo seguimento, pelo encadear das situações. Ou bem que me punha aqui a copiar páginas inteiras ou desvirtuaria tudo.

Por isso, vou transcrever apenas dois pequeníssimos excertos, descontínuos, e sem ser dos cómicos.
Murphy gosta de Célia. Mas Murphy não quer trabalhar pelo que não tem dinheiro, nem quer que Célia, prostituta, trabalhe. Mas Célia quer que ele trabalhe para poderem subsistir. Mas adoram-se, lá muito à maneira deles, especialmente no que a Murphy, um pintarolas do mais castiço que há, se refere.
Até ao ponto em que vou, ainda andam nisto (mas o livro não se resume a este aspecto, eu é que estou a isolar este ponto para contextualizar minimamente estes dois pequenos excertos). 

A parte de si mesmo que ele odiava suspirava por Célia, a parte que ele tentava amar ficava em cinzas só de pensar nela. A voz soprava-lhe na carne um lamento longínquo. 

(...)

Na tortura mercantil - continuou ele - para que as tuas palavras me convidam uma destas coisas se perderá, ou duas, ou todas. Se fores tu, serás só tu; se for o meu corpo, serás também tu; se for o meu espírito, será tudo. Isto, claro está, sob o meu ponto de vista. Então?

Ela olhou-o com uns olhos baços de impotência. (...) Sentia-se, como já se sentira muitas vezes ao falar com ele, salpicada de palavras que, mal eram pronunciadas, se desfaziam em pó, palavras que eram abolidas, uma a uma, antes de se terem podido revestir de um sentido, pela palavra seguinte. Era como uma música difícil que se ouve pela primeira vez.

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O início de Murphy (manuscrito datado de 5 Setembro 1935)
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Andei à procura no Youtube de alguma leitura do texto mas não encontrei nada ou, pelo menos, nada que me interessasse. Em contrapartida, encontrei isto - e abençoo quem inventou a internet e quem a pôs e põe à nossa disposição para que eu agora, tão facilmente, consiga descobrir coisas destas, que me parecem raras, e que me deixam encantada.


"Samuel Beckett" lê um excerto de Watt 



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Permitam que vos convide a descer até ao post seguinte para poderem visitar Lagos, para mim o mais belo destino português a sul.

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O sol e o sal a sul


As gaivotas gritam, o sol está ameno, a água ainda fresca, os barcos vagarosos, os andantes demoram no passeio, o tempo dura - a sul não faz sentido querer correr porque a sul só o mar.







De todos os cantos do mundo
amo com um amor mais forte e mais profundo
aquela praia extasiada e nua,
onde me uni ao mar, ao vento e à lua.




Cheiro a terra as árvores e o vento
que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
a selvagem exalação das ondas
subindo para os astros como um grito puro.




Quando eu morrer voltarei para buscar 
os instantes que não vivi junto do mar. 



(...)
Indecifrada escrita de outros astros
No silêncio das zonas nebulosas
Trémula a bússola tacteava espaços

Depois surgiram as costas luminosas
Silêncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visível frente a frente




No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
(...)



Caminho da manhã (Lagos) - Sophia de Mello Breyner Andresen,
dito por Eunice Munoz. 


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Poemas ou excertos de poemas de Sophia de Mello Breyner

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quarta-feira, abril 29, 2015

Chiado ao cair do dia e, depois, à noite: lindo, lindo, lindo


Depois dos três posts abaixo sobre a sabedoria (de outros que não nós, humanos - que, por exemplo, enquanto escrevo, voltei a ouvir, na televisão, daquela criança de 12 anos que está grávida do padrasto e fico agoniada, revoltada, quase incapaz de compreender barbaridades abjectas como estas), mudo de assunto.

Depois do campo, eis que volto ao lugar dos muitos encantos: o rio ao fundo, as casas, as livrarias, as esplanadas, as montras, as pessoas de todas as idades, raças, nacionalidades, a alegria nas ruas, a vitalidade de sítio que se reinventa todos os dias. Chiado. Chiado, meu amor.


Desde sempre o lugar onde os meus passos me levam, ao Chiado regresso vezes sem conta e sempre com igual deslumbramento e, por estranho que possa parecer, com igual carinho. Hoje, ao fim do dia, íamos passeando, conversando, rindo, recordando episódios de outras eras, e sendo um lugar tão familiar, íamos, no entanto, descobrindo novos recantos, novos prédios - e as gentes, claro, sempre outras, revoadas permanentes, uma música no ar feita de muitas vozes e culturas diferentes.

Por onde passo, fotografo. Turista num lugar que tão bem me conhece, turista, desconhecida entre um mundo que flutua.
Foi um dia em que nasceu uma ideia, nada de especial, de que terão conhecimento em breve e que deu lugar a conversas divertidas e que, depois de muitas gargalhadas, às tantas, me puseram em lágrimas. Coisas simples, afectos - porque de coisas simples de fazem os meus dias.
Se há coisa que me faz sentir bem é isto e também andar na rua, sentir-me maravilhada com a beleza que vejo por todo o lado. E Lisboa é tão linda e, esta parte da cidade em particular, é tão, mas tão especial.
Caminhem, por favor, ao meu lado.


 Vista do Largo das Belas-Artes





Restaurante Tágide 



Largo do Picadeiro



Largo do Chiado



Eléctrico (salvo erro a subir a R. Vítor Cordon)



E as montras. Modernas, com bom gosto. Um espectáculo. 


Adolfo Dominguez



Hermès




Blanco



Marc Jacobs


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E que venha a música, celebremos os afectos.

Encosta-te a mim

(Jorge Palma)


Tudo o que eu vi,
Estou a partilhar contigo

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Permitam que vos convide a visitar os três posts aqui abaixo sobre a verdadeira sabedoria

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quarta-feira muito feliz.

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Da sabedoria das flores [-- primeiro de três posts sobre a sabedoria]


E há as flores: efémeras, perfeitas, generosas, belas. Não sei como saem assim da natureza, em puro estado de espanto, magníficas. Há uma tal exuberância no seu desenho elegante, nas suas cores. E, no entanto, elas sabem que durarão pouco - talvez por isso, não escondam a sua natureza; ou, então, talvez secretamente suspeitem de que logo renascerão, de novo intocáveis, de novo maravilhosas.

Qual de nós - humanos, cheios de limitações, de auto-restrições, de vergonhas, de medos, de ressentimentos - se sente tão absolutamente livre para ser tão autêntico como as flores, despudoradas, inconscientes?




É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.  




Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.  



(...)
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.




Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
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Os poemas são de Eugénio de Andrade: É urgente o amor, Foi para ti que criei as rosas, parte de O lugar da casa, Madrigal.



E a ironia das flores

"One Perfect Rose" by Dorothy Parker (read by Tom O'Bedlam)


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Da sabedoria dos animais [-- segundo de três posts sobre a sabedoria]


Ligo a televisão e logo me apetece desfazer-me dela para sempre que só me traz notícias de maldade, loucura, perfídia. Matam-se as pessoas umas às outras, ofendem-se, ofendem a inteligência e a sensibilidade dos outros. E mesmo aqui, através da internet: muita gente mesquinha, invejosa, má. Muita gente que prefere cultivar a insídia, o comentário rasteiro, a insinuação torpe e gratuita, gente que gosta de ver nos outros a amargura e se indigna perante a alegria ou a felicidade. Muita gente assim, muita gente comprazendo-se em deitar sal nas feridas, muita gente que prefere esconder-se na sombra e daí lançar o seu fel infecto. Fundamentalismos, fanatismos, estupidez à solta. Pouca compaixão, pouca generosidade, pouco afecto desinteressado.

E, no entanto, há um  mundo que é outro. Passo e vejo um mundo feliz, animais ao sol, animais sorvendo o mel das flores, animais existindo na sua imensa sabedoria. 








A liberdade. Os espaços imensos, limpos. A beleza da natureza. O tempo sem tempo. A alegria do ar puro, do sol, dos pássaros, das flores, das árvores, das pedras, de nós quando conseguimos ser apenas nós.

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Out of Africa & Wolfgang Amadeus Mozart


- Clarinet concerto in A major, K. 622 - Adagio


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Da sabedoria das pedras [-- terceiro de três posts sobre a sabedoria]


Anos e anos de vida, serenas na sua quietude, deixando que o tempo passe por elas, as pedras têm uma beleza tranquila da qual gosto de estar rodeada. Com elas me maravilho sentindo que delas me vem a memória de dentro da terra. Têm por vezes aspecto de bichos, outras vezes são apenas um bocado do mundo que pousou na minha vida.




Ou são as escadas que nelas foram escavadas para que as sintamos quando por aqui andamos. E nelas nascem ervas, flores e os nossos passos.




E são as minhas guardiãs e eu não sei se são cegas ou se me vêem ou se são surdas mas eu sinto-as vivas, a pele macia, passo-lhes a mão e sinto como respiram, minhas irmãs silenciosas.




Ou são uma euforia, folhos, rendas, cores, poros como pontos de bordados e aconchegam-se umas nas outras e eu aproximo-me querendo partilhar a sua intimidade tranquila, cheia de segredos bons.




Elas viverão para além de mim, eternas, serenas na sua imensa sabedoria.

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''Homens que são como lugares'' (poema de Daniel Faria - poeta, monge e teólogo português)



terça-feira, abril 28, 2015

Diz-se que um homem não chora


No post abaixo relatei o meu dia, um dia simples. E porque calhou, enquanto escrevia, ver na televisão o médico que me acompanhou enquanto estive grávida e que fez os dois partos, recordei esses dias tão importantes na minha vida. Foram dias tão iguais que recordar um é quase como recordar o outro, com a excepção de que, no segundo, tive junto a mim, mal saí da sala de partos, a minha filha ainda pequenina que nem três anos tinha, a ver o irmão e a dizer com ar desconsolado, 'o bebé é tão encarnado...'

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.

Em comentário ao meu post sobre onde estava eu no 25 de Abril de 74, o Leitor Fernando Ribeiro - dono e senhor de A Matéria do Tempo, um dos blogues que considero dos mais interessantes neste vasto mundo da blogosfera, um blogue onde sempre aprendo e onde a selecção dos temas revela um ecléctico e refinado bom gosto - recordou o seu 25 de Abril e os tempos que se sucederam. Comovi-me ao ler as suas palavras.

E porque penso que são poucos os testemunhos daqueles que passaram pela experiência da guerra colonial, permito-me puxar as suas palavras para primeiro plano (esperando que ele não me leve a mal). Junto-lhe ainda o comentário subsequente do Leitor Vítor Manuel.


  
Canção com lágrimas




No 25 de abril eu tinha metido férias da minha comissão militar em Angola, onde estava colocado na fronteira norte. Eu estava cá em Portugal (na Metrópole, como então se dizia), para rever a família, e regressei a Angola em 4 de maio.

Como alferes miliciano que era, eu comandava um pelotão. Metade dos meus soldados eram angolanos, todos negros menos um que era mestiço claríssimo. A partir do 25 de abril, os meus subordinados angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado pelo colonialismo.

Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados por serem negros, e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que a que tinham tido até então. Esperaram vir a ter, enfim, uma vida sem humilhações e sem pobreza.

Porém, quando no fim nos separámos, as nossas vidas — a minha por um lado e as deles por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto eu pude recomeçar a minha vida e acabar o meu curso de Engenharia num Portugal em paz, os meus antigos subordinados angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e eu tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.

Muitos dos meus antigos subordinados angolanos eram oriundos do Huambo (antiga Nova Lisboa), do Kuito (antiga Silva Porto), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes meus antigos companheiros apanharam em cheio um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou então a tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas e sabe-se lá o que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que, a seguir ao 25 de Abril, estes meus antigos camaradas de armas tinham alimentado, foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.

De todos eles, só sei o destino de dois. O mestiço claro veio para Portugal em 1984, para junto da família paterna, e vive agora em Évora. Um outro antigo soldado meu, que era negro e por quem quase dei a minha vida num incidente que não importa aqui relatar, alistou-se nas FAPLA (o braço armado do MPLA) e acabou por morrer perto do Huambo em 1982. Ele era um herói.

Diz-se que um homem não chora, mas neste momento estou com os olhos cheios de lágrimas, de saudades imensas de todos eles.


Fernando Ribeiro
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Como me emocionou o comentário do Leitor Fernando Ribeiro!

Palavras sentidas, reveladoras de um Nobre Espírito e Carácter. Sei do que fala!

Sempre defendi aquela Boa Gente e foram angolanos, negros, alguns dos melhores Homens que comandei.

Para o Fernando Ribeiro, meu ex-Camarada, mais novo, a minha Continência e Forte Abraço com a enorme saudade daquela tão bela Angola.

Vitor
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A música lá em cima é "Canção com Lágrimas" de Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. 


Transcrevo o texto que acompanha o vídeo: Esta primeira versão, cantada por Adriano, está magistralmente interpretada, tanto pelo cantor como pelo acompanhante, o Rui Pato, que concebeu um acompanhamento perfeitamente enquadrado nas características da peça. A gravação é dos finais de 1969, tendo sido editada em 1970. 

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Permitam que vos convide a descer até ao post seguinte, um post muito pessoal.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

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Relato de um dia simples (com a memória do nascimento dos meus filhos por ter visto na televisão o médico que fez ambos os partos)


Limpo a casa, varro o chão, sacudo tapetes, lavo as louças, encho o balde de água e detergente que cheira a sabão, lavo tudo e não me esqueço dos cantos, lavo a roupa, estendo a roupa, e abro portas e janelas e deixo que o ar e o sol e o canto dos pássaros entre pela casa adentro e depois a casa fica cheia de luz, de perfume a limpeza, de abril.

Depois tomo banho e, a seguir, faço o almoço: batata doce, feijão verde, pescadinha de anzol, tudo cozido e temperado com azeite. Quando acabamos já não é cedo, o cabelo ainda está molhado, e eu recosto-me num sofá, o sol a bater na minha pele e leio que da sala se passa para o escritório e do escritório se passa para o atelier, e do atelier para a cozinha e da cozinha para  a sala e por aí fora. E continuo a ler até que adormeço. E durmo até que o telefone toca.

Depois como dois morangos e vou apanhar sol, caminho devagar. O cabelo secou, está uma juba que voa ao sabor da leve aragem. As flores, os cheiros, as tocas, uma lagartixa ao sol, as folhas secas, as sombras nas paredes, a minha sombra, a luz dourada da tarde, os pássaros numa alegria. Entro pelo meio do alecrim, passo as mãos pela ramagem, depois aspiro o aroma do rosmaninho, tão bonito, tão cheiroso, e, mais à frente descubro que a madressilva está em flor. Paz. 

Depois telefono, está tudo bem. Outro telefonema e tudo bem, todos bem. Mais logo receberei outra chamada e ouvirei relatos de castelos e risos e brincadeiras.

Passo as fotografias para o computador, escolho, saturo as cores a algumas, brinco, adivinho que se os pássaros as vissem assim transtornadas de tanta cor se haveriam de rir e diriam entre eles o Pollock passou por aqui. Ou talvez não, talvez apenas pensassem, com alguma indulgência: ainda não viste foi nada, pois de cores exuberantes devem eles ter os olhos cheios.

Depois finalmente a televisão: o Nepal abalado por uma desgraça sem fim; por cá nem quero ver, se alguém quer construir uma alternativa, logo as vizinhas aparecem para destruir, uma política tuga, pequenina, destrutiva.

Jantar simples, tosta com queijo fresco e tomate, iogurte, fruta.

Regresso. Agora, ouvi na televisão uma voz conhecida, uma voz com um grande sorriso lá dentro. Levantei os olhos do computador, olhei. Era o médico, na altura muito jovem, que, com esforço e uma tranquilidade contagiante, puxou os meus filhos de dentro de mim, ele a dizer que era melhor com anestesia e eu a dizer que não queria nem cesarianas nem anestesias, queria tudo ao natural, ajudas só mesmo em último caso, queria parir como os animais, sentir as crianças a sair de dentro do meu corpo. Depois, horas e horas de trabalho de parto, a já achar que não aguentava, eles não desciam, e doía, doía tanto, tanto, e ele a dizer que já era tarde, que o processo de expulsão já estava em curso mas que a coisa ia, que eu ajudasse que ele ia puxá-los com ferros, e sorria, tranquilo - apenas uma vez o vi sério, com ar apreensivo mas, mal me viu a perscrutar o seu semblante, logo sorriu; e o meu marido, jovenzinho como eu mas corajoso que só visto, sempre presente e preocupado comigo por me ver tão transpirada, exausta e aflita, e eu cheia, cheia de dores sem ser capaz de o tranquilizar, e a ajudar nas operações (numa das vezes, tanta a força para puxar a criança que ele e a enfermeira tiveram que me segurar pelos ombros para eu não ir atrás); mas, mal os bebés saíram e vieram para cima de mim, já eu estava feliz, sem me lembrar de nada, qual sofrimento? nenhum!, e toda contente com as minhas pequenas crias ensanguentadas em cima de mim e eu a falar com eles e eles a olharem para mim, o cordão ainda ligado, e ele, o médico sorridente, a dizer que era assim mesmo, que o que eu estava a fazer era uma coisa boa, que fortalecia a ligação e que dava segurança às crianças, e sorria, sempre com aquele ar tão tranquilo. Igual das duas vezes, fórceps a sangue frio. Agora ali na televisão, quase igual, apenas com o cabelo mais branco, continua a sorrir, uma harmonia grande à sua volta. E a voz, igual.

Telefonei à minha mãe para saber se estava tudo bem, que sim; e se o tinha visto na televisão. Que sim, igual, disse ela, a mesma calma, o mesmo sorriso. Naqueles dois dias, horas a fio, várias vezes ele tranquilizou a família, que não estava fácil mas que tudo se resolveria sem problemas e, depois, contente, a partilhar o alívio e a alegria com a família.

Daqui a nada irei à procura de notícias nos jornais e revistas, talvez alguma coisa valha a pena. Senão voltarei a ler, ou talvez vá pintar. Ou talvez abra a porta, agora que já anoiteceu, e me ponha a olhar o céu.




Vive-se quando se vive a substância intacta 
em estar a ser sua ardente  
harmonia 
que se expande em clara atmosfera 
leve e sem delírio ou talvez delirando 
no vértice da frescura onde a imagem treme 
um pouco na visão intensa e fluida 




E tudo o que se vê é a ondeação 
da transparência até aos confins do planeta 




E há um momento em que o pensamento repousa 
numa sílaba de ouro 
É a hora leve do verão 
a sua correnteza azul 
Há um paladar nas veias 
e uma lisura de estar nas espáduas do dia 




Que respiração tão alta da brisa fluvial! 
Afluem energias de uma violência suave 
Minúcias musicais sobre um fundo de brancura 
A certeza de estar na fluidez animal 




"Miracles" by Walt Whitman (read by Tom O'Bedlam)

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Poema transcrito: Vive-se quando se vive a substância intacta de António Ramos Rosa.

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segunda-feira, abril 27, 2015

O amor em visita. Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz o perfume da tua noite. E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes, um silêncio, uma palavra; traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha.




Folhas secas, caroços, pequenas pedras, restinhos de outras estações, de outros tempos. É mais pedra do que terra, a chuva cai e logo é absorvida e desliza pelas rochas e, logo, logo, a terra deixa de estar molhada, fica apenas macia, húmida, os restos do musgo de inverno ainda mais macios, e eu vejo um cogumelo que cresce gordo e quase me parece magia porque já não é tempo deles e este tem uma cor tão impossível, quase parece querer pôr-se da cor dos filamentos de musgo ou da terra e eu ando e é como se caminhasse dentro de uma gruta cheia de tesouros, e como se mil anjos, mil amores, mil sóis, mil sonhos, me acompanhassem.

A natureza tem segredos e eu gostava tanto de os saber mas tantos eles são que eu não saberia por onde começar a ouvir a confissão destas criaturas maravilhosas que a habitam. Então caminho em silêncio, tento ouvir murmúrios, vozes longínquas, pensamentos, sigilos, mistérios. 

E enquanto ando, anjos e sonhos em volta, cheia de amor, o olhar mergulhado nesta natureza que me abraça, junto a mim caminham também pétalas soltas, folhas douradas, doces recordações, saudades sem explicação, ventos perfumados, a chuva morna da primavera e as palavras do poeta - e, ao olhá-las, ao olhar as palavras do poeta, vejo-as com as patas na terra, as asas abertas, a saliva escorrendo, a pele suada, os olhos ardendo, as mãos abertas na minha direcção, chamando-me para o centro do fogo, para o ventre das nuvens, para a gruta secreta onde se acolhe o amor em visita.








Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.




- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. 




Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. 




Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos. 




Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.






Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.




Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue. 




Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

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Excertos transcritos e ditos (por José-António Moreira) de O amor em visita de Herberto Helder.


Fotografias feitas este domingo nesta terra que me abraça.

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Permitam que vos diga que, se quiserem a ver um carro a fazer o pino à beira do Tejo, no cais do Ginjal, desçam, por favor, até ao post a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira. 
E que haja sempre beleza e poesia nas vossas vidas.

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O carro que fez o pino no cais do Ginjal


Carro virado sobre parte do cais do Ginjal que abateu.


Agora parece que os carros com guindaste não se arriscam a ir tirá-lo com medo de irem também parar lá abaixo
nem o barco também com guindaste lá consegue acostar porque o rio ali é baixo.

Mas acredito que não seja o novo Tollan, um Tollan em seco.



Cais do Ginjal antes do carro capotar.

Como se vê, parte do cais já tinha abatido (vedação provisória a seguir ao guindaste) e o espaço para circulação automóvel já era muito limitado


Tudo aquilo ali é periclitante. No Ginjal as paredes ameaçam ruir, os tectos quase não existem, os muros ameaçam abater, agora há lixo e um colchão na entrada que ao fundo tem uma escadaria que leva não sei onde, os gatos vadios andam a ser alimentados por senhoras que os enchem de ração e esparguete. Apenas as gaivotas se mantêm livres, em boa forma e felizes.




Mas o que eu gosto daquelas paredes gastas, esventradas, cheias de desenhos, de onde nascem flores, por onde por vezes entram pessoas ou sombras, onde há cães que meditam frente ao rio, onde os pescadores, habituados que estão a tanta beleza, já nem olham para os veleiros que deslizam, nem Lisboa ali tão perto, tão, tão bela.

E o que eu gosto daquela proximidade do rio, do cheiro a maresia, do fresco que se aspira e que traz uma leveza que me dá vontade de voar, e do azul de tantas cores que há nas águas, no céu, no ar que as gaivotas atravessam, dos abraços dos namorados que se sentem tão apaixonados perante tanta beleza, dos barcos pequeninos dos pescadores, dos veleiros silenciosos, dos cacilheiros, dos grandes navios, das pontes tão elegantes.








Mas tudo aquilo é instável. O cais do Ginjal abateu na altura em que o carro com um casal e uma criança ia a passar. Muitas vezes me interrogava se um dia isso não ia acontecer. O cais tem fendas, tem zonas em que se nota a vulnerabilidade. Por desconhecimento ou aventureirismo alguns carros afoitavam-se. Também há os que vão abastecer os restaurantes. Algum dia ia acontecer.


E há as varandas que parecem levitar de tão soltas estão, paredes que parecem desafiar a lógica dos materiais ao manterem-se de pé. Não há muito tempo, dentro de uma daquelas casas abandonadas, morreu um rapaz soterrado sob uma parede. Tudo tão frágil, ali.

Vamos ver o que vai acontecer. Li que interditaram agora aquele passeio mas ainda hoje de manhã lá passei. Tanta beleza deve estar acessível a toda a gente - mas em segurança.