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sexta-feira, novembro 01, 2024

Conversa gostosa entre desempoeiradões com mais de 60

 

Quando eu era mais nova tinha para mim que quem tinha mais de sessenta estava a caminho de ser velho, terceira idade pura e dura. 

Ainda me lembro de um amigo, uns anos mais velho que eu, ao fazer 60, me dizer 'sou daqueles de quem, se tiverem o azar de tropeçar e cair na rua, vão dizer que foi um idoso, um sexagenário caído no passeio'. E era.

Ainda me lembro bem da minha avó paterna que, antes dos 60, já me parecia uma velhinha. Ao contrário da minha avó materna que pintava o cabelo, se vestia de forma mais arejada, passava temporadas em Lisboa ou na Figueira da Foz ou em Faro em casa de primas ou primas de primas e tinha um aspecto mais 'conservado', a minha avó paterna, com o seu cabelo grisalho, o vestuário que seguia os seus critérios de adequação' à idade e os seus reumatismos que condicionavam a sua agilidade, sempre pareceu mais velha do que era (e creio que ela própria se sentia velha).

Agora que sou eu que já cá estou, vejo as coisas de outra maneira. Não sei bem como é que as vejo mas sei que os 60 vêm com uma boa dose de ingredientes diversos, grande parte deles bastante bons (tolerância, ignorância [sim, quanto mais velhos, felizmente mais ignorantes], etc). Claro que os há menos bons mas a gente desvaloriza.

Se os mais jovens assistissem às brincadeiras, às irreverências e ao gosto pela aventura dos meus amigos sexagenários ficariam muito admirados.

O algoritmo do Youtube, que me topa à légua, hoje tinha este vídeo que aqui partilho para me mostrar. E, na realidade, gostei de os ouvir. Conversa leve, solta, alegre, descomplexada. E o Bial é uma graça, um belo pedaço de homem.

Astrid Fontenelle fala como o ENVELHECIMENTO não abalou sua FORMA DE VIVER! | Conversa Com Bial


Dias felizes

quarta-feira, julho 03, 2024

Redefinir (ou repensar?) a velhice

 

Sempre tive a ideia de que a minha avó paterna era uma pessoa de idade. Recordo-me de estar lá em casa quando andava na infantil ou na primária e de a achar idosa. Tenho ideia de que tinha o cabelo parcialmente embranquecido, tinha rugas, tinha artroses e dores. Sentia-se velha e nós tratávamo-la como velha. E ela gostava de ser tratada assim. Mas agora, se pensar na idade que ela tinha na altura, creio que teria uns cinquenta ou cinquenta e poucos. E isso deixa-me chocada.

Fui ver fotografias dela, nessa altura, e, de facto, se fosse hoje eu diria que seria pessoa para uns setenta. Mas depois hesito pois as mulheres de hoje, aos setenta, parecem bem mais jovens. 

Ainda no outro dia, uma amiga, sessentas, enviou uma fotografia que alguém lhe tinha tirado na rua e o seu ar jovem, bem disposto, o vestuário colorido, desempoeirado, poderia corresponder aos quarentas de há uns anos. Se calhar até menos pois lembro-me de a minha mãe com quarentas ter ar de 'senhora', nem pensar em ousar roupas alegres ou jovens. Só aos oitentas é que ela se sentiu à vontade para usar calças justas, túnicas coloridas, ténis. 

Mas estou a falar a nível de aspecto exterior. Mas a mesma coisa é verdadeira para a maneira de ser. Ainda hoje recebi um vídeo de um amigo que continua a trabalhar, com trabalhos em diferentes continentes, hoje, por exemplo, está em África, pessoa prestigiada nas suas funções, premiado e reconhecido como um dos melhores no seu sector. Activíssimo. Sendo patrão dele próprio consegue conjugar o prazer de trabalhar com o de viajar e de curtir a vida. Aos sessentas tem uma energia, uma jovialidade, que, francamente, não sei como consegue. Tão depressa está em África, em trabalho, como no Perú, em passeio, como a visitar montanhas remotas lá para os confins de um país de que agora não me lembro o nome (não é Moldávia mas não me lembro qual é), ou numa animada sardinhada lá em casa ou a vir de Espanha, também em trabalho. 

Volta e meia, quando penso em assuntos mais distantes, faço as contas à idade que terei nessa altura (se ainda estiver viva) e penso que nessa altura distante se calhar já estou velha para curtir as mudanças. A minha prima hoje dizia-me que o meu tio tem andado a sentir-se cansado. E eu fiquei preocupada ao ouvir isso mas ele já tem noventa anos. Portanto, se calhar é normal que as forças vão faltando.

Claro que à medida que vamos envelhecendo vamos pensando nos limites da vida ao mesmo tempo que tentamos ver as virtudes da maior idade (sabedoria, tolerância, etc). Mas, bem vistas as coisas, uma coisa é certa: as pessoas vivem cada vez até mais tarde e isso traz muitos desafios à sociedade mas há que não ter ilusões. Por muito bem que se esteja, forçosamente aparecerão limitações e, se para estar em casa, na boa, isso pode não ser problemático, já para estar à frente dos destinos de uma nação como os Estados Unidos, não me parece aconselhável.

Redefining old age

CBS News chief medical correspondent Dr. Jon LaPook talks with experts about the distinctions between normal and abnormal aging as it affects memory issues, a workforce continuing beyond traditional retirement age, and the testing of surgeons who currently work without age limits.


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Dias felizes

sexta-feira, março 08, 2024

O mistério da lembrança de tempos felizes

 

Tenho estado a tentar decifrar documentos antigos, imagino que bué antigos, mas em que não encontro nem nomes nem datas nem locais. Se, pelo menos, tivesse os envelopes talvez conseguisse ter alguma pista. Assim, zero. 

Neste caso, o papel usado é espesso e tem marcas que apenas são visíveis em contraluz. Vejo distintamente THOMAR. Se calhar é a marca do papel. Dá ideia que a folha que agora estou a ver foi cortada, não obedecendo a medidas standard. Numa parte do papel, na margem (digamos assim mas que, na prática, se trata apenas da zona em que o papel foi cortado), leio ASSO. Ou seja, deduzo que seja papel de almasso, escrito assim, na grafia antiga. Vejo também um símbolo que deve ser o logotipo.

Pela semelhança com outros de que me lembro de ouvir a minha mãe dizer que eram coisas que vinham da avó dela (minha bisa), o que foi descoberto na quarta-feira pode ser uma de duas: ou poemas que o filho, anarquista deportado, lhe enviava ou parte integrante da correspondência entre ela e os primos. Mas posso estar enganada, pode até ser coisa mais antiga. Não faço ideia.

Quem escreveu, dobrou o papel em três na vertical, mantendo as partes unidas. Ficaram, pois, seis 'tiras' verticais.

Mostro duas dessas 'tiras':



Gostava de saber quem escreveu estes poemas, a quem os enviou, quando, onde. Não percebo porque é que nunca na minha família ninguém deu importância a estas memórias e só agora eu esteja a tomar conhecimento de tudo isto. Só que agora todos os que me poderiam elucidar já morreram. Foram-se todos, várias gerações de permeio, ramos da família que caminharam para o desconhecimento mútuo. E, no entanto, estas folhinhas sobreviveram, estão aqui na minha mão.

Aquela velha questão do sentido da vida dá uma volta sobre si própria quando a gente pensa no des-sentido de tudo quando se constata quão efémeras são as pessoas e quão duradouras são as suas palavras escritas.

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Desejo-vos um dia bom

Saúde. Poesia. Paz.

quinta-feira, fevereiro 15, 2024

Pedro Nuno Santos & André Ventura?
Com licença, vou antes falar de toalhas e de lençóis

 

Vou dizer a verdade: o dia foi produtivo. Para os great achievers o que eu consegui é menos que nada. Mas, para mim, agora que me comparo comigo na versão pessimista, foi um feito. Pensava que estava perante uma missão impossível e, afinal, está cumprida.

Reformulei o conteúdo das gavetas da escrivaninha que aqui tenho num recanto bem como o das gavetas de um móvel de meia altura que tenho na entrada. Claro que tive que dar destino ao que lá estava.

Agora tenho sete gavetões, sete, 7, sept, seven, com toalhas de mesa compactadas. 

Uma gaveta, uma senhora gaveta, tem só renda, toalhas rectangulares gigantes, rectangulares médias e redondas, todas em renda. 

Uma segunda tem híbridas: toalhas bordadas com rendas. Ou quadrados de renda, quadrados de tecido com bordado, ou bordadas com cercadura em renda. Ou outras combinações.

Outra tem toalhas de linho ou alinhadas. Ocupam espaço que se fartam. O tecido é encorpado para burro.

Outra tem quase só guardanapos. Tanto guardanapo, senhores. Uma loucura. Cada uma das toalhas bordadas ou de renda tem doze guardanapos similarmente decorados. Uma loucura. A minha mãe acharia esta arrumação um disparate, diria que os guardanapos, quais filhotes, têm que estar sob as saias da respectiva mãe-toalha. Mas não. Se é altamente improvável que eu dê uso àquelas obras de arte pois nem imagino a mão-de-obra necessária para as engomar, ainda mais é que use os guardanapos. Bem sei, bem sei, que não há nada como um belo guardanapo de pano. Compreendo. Concordo. Mas num restaurante. Aqui, de pano, só se forem de pano liso. Na maioria, quase totalidade das vezes, os guardanapos são de papel. Agora estar a pôr guardanapos bordados ou com rendas, só se receber uma rainha mas, ainda assim, só se for uma rainha a sério. E com o Goucha a acompanhar como comentador. Por menos que isso, não vão guardanapos de renda para a mesa.

Outra tem toalhas mais normais, mas em bom.

Outra toalhas mais banais, estampadas, ora estivais ora natalícias.

Enfim. Algumas gavetas tiveram que ser fechadas com o joelho. Que remédio. Já não tinha mais gavetas... O meu marido diz que não vou conseguir abri-las. Vou... 

Depois das toalhas passei para o castigo dos lençóis. Outra reformulação prévia, claro.

Desocupei a prateleira grande do roupeiro grande do corredor dos quartos. Tive que arranjar espaço para o que de lá tirei, como é óbvio. Tudo isto é um puzzlezinho de fazer queimar os neurónios a uma santa.

Os meus bordados e arrendados (arrendados de carregadinhos de rendinhas, não arrendados do programa mais-habitação) transitaram também lá para cima. Portanto agora tenho carradas de lençóis do mais artístico e elaborado que se possa imaginar. Os meus, os da minha mãe e não garanto que não também os das minhas avós. Lindos. A sério. Nunca usados. 

Depois há uma pilha, igualmente numerosa, de lençóis lisos, ditos 'de baixo'. Claro que uns são de linho para emparelharem com os correspondentes bordados ou cheios de rendas, outros de algodão, uns têm ajour no remate e etc, ou seja, a combinação não deverá ser aleatória. Mas algumas vez irão ser usados...? Muitas dúvidas.

Depois descobri umas peças não identificadas. Um formato incompreensível, nem lençol nem toalha de mesa, um algodão branco mais fino, uma renda imensa, bordados maravilhosos. Depois vi que cada um tinha duas letras bordadas. A inicial do nome da minha avó materna e a do meu avô. Depois de pensar, concluí que deveriam ser toalhas de casa de banho, quiçá as maiores a fazer a função de toalhão. Não sei. São obras de uma delicadeza e beleza extraordinárias. Deviam estar em vitrinas, expostas. 

Há ainda um outro monte, uma pilha enorme: as fronhas. Identicamente umas bordadas, outras com rendas, umas de um tecido, outras de outro. Se um dia quiser preparar um leito a preceito, teremos que fazer uma caça ao tesouro para conseguir acasalar o de cima com o de baixo e com as respectivas fronhas.

Mas, com isto, a verdade é que o tema de conseguir arranjar espaço para o que me parecia impossível de concretizar está resolvido. Todas as peças feitas com tanto carinho, tanto trabalho, tantas e tantas horas de um minucioso trabalho manual, amoroso, atento, estão guardadas, preservadas. 

Claro que imagino o pesadelo que será quando outros que não eu tiverem que resolver o que fazer a tantas relíquias... Mas, enfim, com sorte já cá não estarei para assistir a isso. 

Tirando isso o dia teve de tudo, Umas coisas menos boas e outras boas, incluindo visita a exposições, passeio à beira-rio e etc.

Conclusão: de debates só vi parte do último, o Pedro Nuno Santos em aceso duelo com o insuportável boçal-trauliteiro. Para dizer a verdade, tive alguma dificuldade em manter-me atenta pois tudo naquele arruaceiro fere a minha sensibilidade: o que diz, a forma como diz, a forma como se comporta, tudo. É um desordeiro, um perigo, uma pessoa sem princípios, sem pudor, sem vergonha.

Prazer tenho em ouvir (e ver) o Paixão Martins. Não há nada como uma pessoa inteligente, com sentido de humor, sem medo. Foi uma boa ideia a CNN tê-lo contratado para comentar os debates. 

Por isso, tirando o Paixão Martins e o fofo Raimundo, naturalmente por motivos diametralmente opostos, pouco mais prende a minha atenção nesta cegada dos debates a contra-relógio que, segundo as questões que os moderadores lançam, parece que têm como único propósito discutir os temas engendrados pelo Ventura. Não há pachorra. 

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E queiram descer até onde se revela o que Paulo Raimundo faria em caso de acidente nuclear.

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Desejo-vos um dia feliz

Saúde. Força nisso. Paz.

domingo, fevereiro 11, 2024

O tio-avô anarquista, a avó que era Frida vibe, casórios e muitas centenas de cartas e de fotografias (centenas? ou milhares?)

 

Passei o dia de volta das caixas. Descobertas que, para mim, são fascinantes. 

Uma fotografia me encanou: a minha avó materna, muito jovem, sentada com o meu tio, ainda bebé, ao colo e a minha mãe, talvez com uns três anos, muito loura, olhos muito claros, muito séria. Mas o que mais me surpreende é o porte da minha avó, muito direita, com um vestido que devia ser de uma cor viva com um padrão não de bolinhas claras mas um qualquer motivo assim, com mangas compridas, cós branco nas mangas, um decote em bico com uma gola branca em volta e um colar de grandes e coloridas contas. Morena, cabelos pretos, sobrancelhas vincadas. A minha filha disse Frida Kahlo vibe. E é.

Tenho que arranjar maneira de ter em casa, algures, em destaque, algumas das incríveis fotografias que  descobri. E para as cartas antigas. Tenho que tê-las num lugar em que saiba onde estão. Receio guardá-las num sítio em que se perca o rumo para elas.

Descobri também um pequenino caderninho em que a minha bisavó escreveu a data de nascimento da minha avó, a data em que se casou e a data em que a minha mãe nasceu. Afinal nasceu à tangente com a minha avó com dezasseis acabados de fazer. 

Aí escreve também como o filho andou aos tiros, foi preso, foi deportado. Na fotografia dessa folhinha apaguei o nome desse meu tio-avô.

Noutra folhinha, diz que regressou e, mais tarde, foi outra vez preso.

Já descobri que era anarquista. Encontrei-o, via google, num trabalho sobre os movimentos anarquistas. Bate certo com o que a minha bisavó escreveu, a data, o nome do navio, etc. E a minha filha descobriu uma fotografia com os deportados dos anos 30 em Timor, na ilha em que, justamente, ele esteve. Um dos da fotografia é certamente esse meu tio-avô anarquista de que sempre ouvi falar como sendo um combatente, um aventureiro, corajoso. Viveu clandestinamente, esteve preso. Morreu pouco antes do 25 de Abril para grande desgosto da minha avó pois toda a vida ele lutou pela liberdade.

No dia do enterro da minha mãe (custa-me dizer enterro pois foi cremação; apenas uma semana e tal depois é que fizemos o enterro das cinzas), os meus primos, filhos do irmão da minha mãe, disseram que tinham descoberto não sei o quê sobre esse tio, qualquer referência histórica, creio, e que aparecia lá o nome de código dele. Tenho que lhes enviar a fotografia de algumas destas coisas que estavam com a minha mãe e pedir-lhes que me mandem imagens do que, se calhar, estava com o pai deles.

Nesse livrinho a minha bisavó fala de uma Luiza que tinha um amante e que viveu um drama, tendo sido salva. Nunca ouvi falar dela. Seria uma outra filha? Não sei.

Descobri também duas folhas antiquíssimas com textos, creio que humorísticos (mas tenho que me debruçar para conseguir ter a certeza). Tenho ideia que era correspondência dos primos algarvios, entre eles o que foi presidente.

E inúmeras, inúmeras fotografias. Primos em Lisboa, outros no Algarve. E muitas, muitas de quando eram jovens. Era um grupo enorme de amigos e deviam andar sempre juntos. E fotografias do casamento dos meus pais. E dos meus tios, os meus pais como padrinhos de ambos, a minha mãe de chapéu, elegante, o meu pai muto bem, eu de menina de alianças.

Passando para a correspondência que me foi dirigida tenho muitas dezenas, talvez centenas, de uma grande amiga epistolar, alguém que escrevia muito bem, com muita facilidade e que me encantava pelos seus gostos, pela sua cultura. São Tavares. Tenho ideia que estudou História. Tenho cartas que vinham de Leiria mas creio que ultimamente vivia no Porto. Não consigo descobrir o nome completo para conseguir descobrir que é feito dela.

E várias outras. Por exemplo, a Mané de Leiria. Era muito alegre, tenho ideia que era um espírito livre. E muito bonita. Mas a única coisa que sei dela é isto: Mané. Conhecia-a, a ela e à São, num acampamento creio que na Quinta dos Lilases, ao Lumiar. Estivemos uma semana a acampar e tornei-me muito amiga delas, uma amizade epistolar que durou vários anos.

Com tempo vou pôr as imensas cartas por ordem cronológica e vou ler.

Mas já separei as cartas por sacos: um para as cartas da São, outros para as da Mané, outro para as da Jill, outro, quase a rebentar, para o namorado que escrevi que se desunhava. Etc. Encontrei também cartas anónimas de um que dizia que era louco por mim, que me adorava há muito tempo. Como nunca descobri quem era, juntei-as ao saco do namorado. Enfim, vários sacos,

Foi o dia quase todo de volta do conteúdo das caixas. Tinha pensado que o dia me chegava para arrumar lençóis e toalhas de mesa mas o tempo não esticou. Entre refeições, caminhadas, fotografias e correspondências, não deu para mais nada.

A meio da tarde senti um cansaço grande, uma saturação. Ia pondo as coisas em cima de uma mesa e ia vendo, eu de pé. Mas o cansaço não foi, certamente, de estar tantas horas de pé. Deve ter sido de tanto tempo de atenção, de seguida.

Agora tenho que intervalar disso, tenho que descansar a cabeça.

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Um feliz dia de domingo

Saúde. Esperança. Paz.

sábado, fevereiro 10, 2024

Cartas de amor
(em noite de debate de Raimundo versus Ventura e outros)

 

O dia foi um pouco puxado ou, então, sou eu que estou a chegar à fase de alguma descompressão. Não sei. O que sei é que, depois de jantar, adormeci no sofá, mas adormeci tão profundamente que o meu marido estava francamente admirado. Não apenas me acordou algumas vezes como me perguntou o que é que eu tinha. 

Por exemplo, perdi grande parte do debate do pobre Raimundo com o tresloucado Ventura. Quando vi, estava o Raimundo às aranhas, titubeante, a parecer que queria dar cabo do outro mas a fazer aquelas figuras tristes que fazem os cãezinhos minúsculos quando, lá em baixo, se põem a ladrar freneticamente junto às pernas dos cães grandes que não lhes ligam patavina.

Também só vi um bocado do comentário do Paixão Martins, sempre fino como nenhum outro, com o Calafate. 

De facto, não percebi que onda de pesado sono foi esta que me submergiu.

E ainda não me encontro totalmente refeita. 

Por isso, não vou relatar com pormenor as minhas peripécias com a NOS, não apenas telefonicamente como em loja (onde fui entregar os equipamentos que estavam em casa da minha mãe). Digo-vos apenas que é uma despersonalização da mais absurda que há. Reconhecem que erraram (isto é, não deram seguimento ao meu pedido de cancelamento, comprovadamente feito ainda o ano passado), constatam que o erro prossegue (apesar de ter entregue os equipamentos, o contrato continua activo) mas afirmam que têm que continuar a errar (leia-se, a enviar-me facturas relativas ao contrato da minha mãe) até ao fim do ciclo (?) e que só nessa altura é que posso apresentar uma reclamação e pedir que anulem facturas emitidas indevidamente. Explicam-me que, na realidade, compreendem que eu ache estranho mas que não podem fazer nada, 'é o processo'. 

Tanto se automatiza e tanto tentam tornar-se eficientes que se tornam burros.

Já no outro dia, quando estivemos sem comunicações durante três dias e eu me queixei ao jovem que cá veio, respondeu-me ele: 'Três dias? Três dias está é muito bom... Tem vezes que vai quase a uma semana ou mais...'. 

E um desgoverno a gestão das equipas de manutenção da NOS. Dava um post, tal a barafunda e o mau serviço. 

Mas adiante que não estou em condições.

Tinha dito que ia fotografar o serviço de café (o tal que não é como aqueles de fundinho branco e florzinhas mimosas da VA, este é de uma fábrica na Baviera) que foi, adquirido pela minha mãe há certamente mais de cinquenta anos, por grande insistência minha. Aqui está, fotografado hoje, depois de ser desembalado e antes de ser devidamente arrumadinho num canto que lá consegui arranjar numa vitrina.


Não é lindão, mesmo?

Também estive a retirar cartas e fotografias e coisas que estavam misturadas nos sacos. Lembrei-me que estavam umas caixas grandes de cartão na garagem e já separei algumas coisas pelas caixas. Dentro das caixas ainda estão a granel e ainda devem ser agrupadas e organizadas. Mas tenho que ter tempo e disposição para isso. A menos que alguém me ajude. Mas também não sei se me apetece que se ponham a ler as cartas que me eram dirigidas, mesmo que de amigas.

Vou colocar as caixas nas estantes do compartimento do sótão que antes, quando a casa tinha outros donos, era a biblioteca privativa do senhor, apenas para as revistas e livros profissionais dele. 

Desencantei também uma saqueta com estojos de canetas. Presumo que fossem presentes que o meu pai recebeu. Claro que também não as usou. Guardou-as e agora vieram parar aqui a minha casa. Estão agora cá, numa gaveta, sem que eu também tenha uso para lhes dar.

No outro dia, em casa da minha mãe, também dei com uma coleção de leques numa gaveta de uma mesa de cabeceira. Ofereci-lhe alguns deles e só me lembrei disso ao revê-los. Ainda este verão lhe trouxe um do Algarve pois queixava-se do calor e nunca a via com leque. Afinal guardava-os todos bem guardadinhos. Como gosto muito de leques e tenho alguns que me parecem bem bonitos, coloquei um deles ao pé dos meus mais bonitos que estão como peça decorativa numa estante com portas de vidro.

Quanto às cartas do meu pai para a minha mãe, quando namoravam e ele estava longe, na tropa, a minha filha está cheia de curiosidade. Vai ficar surpreendida. Acho que vai ela, vai o irmão, vai o meu marido. Também eu estou pois desconhecia a faceta romântica do meu pai. Aposto que o meu marido nem vai querer saber, vai querer respeitar a contenção que o meu pai sempre revelou.

Estive a ver as fotografias dele quando era novo. Era um galã. Vestia-se e penteava-se de uma forma elegante e sedutora. Mas, ao mesmo tempo, era um desportista. Lembro-me muito bem dele a jogar futebol e a organizar torneios e lembro-me que fazia parte da equipa organizadora das equipas que praticavam todos os desportos. Por exemplo, os meus tios jogavam vólei. O meu pai acompanhava-os (e nem sei se também jogava, mas tenho ideia que eles é que jogavam a sério). Mas dois primos dele praticavam hóquei em patins. E eu adorava ir ver, à noite, esses jogos, sempre muito renhidos. Lembro-me bem de estar à espera deles e, às tantas, ouvir o barulho dos patins das equipas a descerem a rampa até ao campo e de achar que aquilo era uma excitação. E lembro-me de uma vez, em campo, se terem picado uns com os outros, já parecia que ia haver pancada, e de o meu pai, muito ágil, saltar por cima da barreira do campo. Pôs a mão em cima, deu balanço, e saltou lá para dentro. E eu fiquei com medo que se envolvessem à pancada com o meu pai no meio. Mas não. Com uma grande calma, lembro-me de ele ter posto uma mão no peito do primo, que era alto e bonito como um galã, do género do Belmondo mas mais bonito, e a outra mão no peito do outro, da outra equipa. E lembro-me de ele ter conseguido impor respeito e eles se terem acalmado e acabarem a dar um aperto de mão e, só então, o meu pai saiu do campo.

Mas, dizia eu, em família não me lembro de observar nele uma faceta romântica. E, afinal, ao ler as suas cartas, fico estupefacta. Ainda só consegui espreitar, e por alto, duas cartas. Sinto-me intrusa. Quem escreve uma carta de amor escreve apenas para a pessoa que ama, não para ser pasto para diversão ou especulação alheia.

Por exemplo, até as minhas cartas, as que foram dirigidas, me custa um bocado a ler. Declarações inflamadas, juras de amor eterno, diminutivos enternecidos, desenhos de corações... Bocados de um tempo passado. Já não somos os mesmos. Quem assim me escrevia já não é hoje assim e a que recebia aquelas palavras pingando amor já não sou eu. Quando me forçar a lê-las, admitindo que o consigo, terei que me esforçar para não as achar cansativamente ridículas. Felizmente não tenho as que eu escrevi senão sentir-me-ia, certamente, agoniada. E, isso, em especial, por, à posteriori, pensar que nada daquilo era verdadeiramente sentido. Se calhar, queria iludir-me, se calhar queria gostar, se calhar sentia-me bem por poder experimentar a sensação de parecer estar apaixonada. Mas na verdade não estava por aquele a quem escrevia as cartas. Portanto, ainda bem que não vejo o que escrevi. 

Mas adiante. Pode ser que um dia me apeteça partilhar aqui uma dessas inflamadas cartas de amor que recebi.

Hoje partilho uma página de uma das cartas que o meu pai escreveu à minha mãe. Aqui fica pro memoria. A sua letra manteve-se assim, firme, determinada, organizada, sem atropelos, com hastes e pernas pronunciadas. Isso diz muito da sua personalidade.


E partilho também uma das páginas da carta que o meu avô materno escreveu à minha avó. Afinal não é tão antiga quanto imaginei. Não sei onde fui buscar isso pois a carta não tem qualquer data e, como foi entregue 'por mão própria', não há carimbo. Mas penso que, no máximo, será de 1930. 

Diria que não era muito fã da sagrada arte da ortografia. Mas, na verdade, não sei se são erros ou se na altura se escrevia assim. 

Mandei antes à minha filha e ela deu-se ao trabalho de traduzir e de me enviar (porque eu estava um bocado impaciente para me concentrar nessa tarefa). Não escrevo aqui para não vos privar do prazer de tentarem descodificar por vós... 😃

Apaguei a nome da minha avó pois acho que devo manter estas coisas anonimizadas mas, por sinal, é um nome de que gosto bastante. 

Sei que eram apaixonadíssimos e que a minha avó ficou severamente abalada quando ele morreu, e ficou-o durante anos, creio para o resto da vida.


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E hoje fico-me por aqui. É tardíssimo.

Um dia feliz.

Saúde. Amor e encantamento e paixão. Paz.

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

Não faço a mínima ideia de quem eram os meus antecessores.
Seria interessante conhecer as minhas raízes?

 


É verdade e já várias vezes aqui o referi. O passado não me interessa. Há algum tempo a minha mãe queixou-se que só tardiamente soube onde tinha sido baptizada porque a sua mãe não ligava a nada disso e pouco conversava sobre esses aspectos. Fiquei muito admirada. Disse-lhe: 'Eu também não sei onde fui baptizada, também nunca me contou'. Ficou desconcertada. Depois disse-me onde tinha sido como se eu devesse saber. E eu, como de facto, também não ligo, esqueci-me no momento seguinte.

Também sei que ele e a minha mãe tinham inúmeros primos, grande parte deles espalhados pelo país e pelo mundo mas também nunca me interessou saber que é feito deles. De uns ou outros tenho fugazes ideias, chegaram a ir visitar-nos ou às minhas avós mas sempre foram vidas tão diferentes e longínquas que nunca investi o meu interesse.

Mas lembro-me de um evento singular. Havia uma prima com quem a minha avó materna se dava muito. Não sei se era prima direita daminha avó ou da minha mãe ou se era filha de alguma prima direita. A minha avó era muito nova. Teve a minha mãe, acho, com 16 anos. Encobriu a sua verdadeira idade creio que para parecer que tinha sido aos 17. Só quando morreu é que isso foi descoberto. Toda a vida festejámos os seus anos numa data errada.

Fui ao casamento dessa prima. Devia ir pelos trinta ou trinta e picos quando se casou. Aliás devo ter sido, uma vez mais, a menina das alianças. Depois teve uma filha, por sinal muito bonita.

Até que um dia um burburinho, conversas a meia voz. A minha mãe, a minha avó, uma das minhas tias. Já eu devia ser quase adolescente. Percebi que havia um segredo prestes a ser revelado. Não sei como, presumo que foi trama cujo conhecimento me foi subtraído, o que sei é que a minha avó tinha recebido uma carta, tinha havido troca de correspondências. E que ia haver um encontro intermediado pela minha avó, em sua casa. A dita prima, o seu amoroso e dedicado marido e uma jovem mulher, já casada, espanhola. Sua filha. Toda a gente para morrer.

O encontro deu-se, contou a minha avó que foi muito emotivo, o marido da prima aceitou aquela mulher espanhola que diziam ser belíssima, muito parecida com a sua irmãzinha portuguesa.

Tinha vindo também com o marido, com um filho bebé. Foram conhecer os meus país a nossa casa. Era, na realidade, um espanhola toda ela sentimento e emoção, encantada por ter encontrado a família portuguesa que procurava há tanto tempo.

Nunca mais soube dela. Se calhar a minha mãe sabe. Eu não. Esqueci-me.

Sobre os meus avós, maternos e paternos sei que vieram do Algarve. 

O meu avô paterno, um aventureiro que em adolescente, tendo o pai fugido do país, andou por Espanha e por França e que me encantava por falar francês, tinha traços orientais,

A minha avó paterna, algarvia típica, relativamente baixa, senhora do seu nariz, tomava decisões sozinha que deixavam o meu pai furioso, em especial quando vendia terrenos, casas, propriedades em zonas que já estavam a bombar. Decidia que não queria chatices e desfazia-se de tudo, quase sempre a preços irrisórios. Lembro-me da estupefacção e irritação do meu pai e dela se estar a marimbar. O meu avô também. Eram coisas que tinham sido herdadas por ela, que fizesse o que quisesse. Até nisso a sua calma era oriental.

É do lado dessa minha avó, que tinha vários irmãos, que conhecemos mais tios e primos mas, apesar disso, a maioria anda pela Austrália, pela França e sabe-se lá por onde mais.

O pai desse avô foi o senhor morgado que, tendo perdido tudo no jogo e nas 'mulheres', partiu para a Argentina (ou para a Venezuela) sem se despedir ou deixar algumas indicações. Durante décadas ninguém o procurou nem ele procurou a família. Perdeu-se-lhe o rasto.

Do lado da minha mãe havia o pai dela, invulgarmente alto, invulgarmente muito louro, com olhos invulgarmente azuis. Não faço ideia das suas origens nem da sua família. Morreu novo, num horrível acidente. Presumo que se tenha pedido a ligação à sua família.

Da mãe da minha avó materna era prima de um presidente da República e já contei que, quando morreu, vi correspondência dessa bisavó com primos algarvios, invulgarmente cultos e divertidos. Não sei onde param essas cartas. Essa minha avó teve vários irmãos, um dos quais lutador pela democracia que viveu entre prisões, deportações e clandestinidades. Mas sobre as origens mais para trás não faço ideia.

Quando vejo estes vídeos em que é revelada a geneologia até tempos longínquos a pessoas que não faziam nem ideia, fico a pensar como seria a minha reacção se descobrisse coisas das quais nunca sequer suspeitei. Faz diferença a gente conhecer as nossas raízes mais profundas? Não sei. Diria que não. Mas sei lá.

Jeff Goldblum reacts to Family History in Finding Your Roots | Ancestry


Um dia bom
Saúde. Rápidas melhoras a quem delas precisa. Paz.

sábado, agosto 06, 2022

Avó e neta

 

Fui ontem fazer compras com a minha menininha linda. Adora fazer compras. Eu agora já estou a deixar-me disso -- não quero, não preciso -- mas, ainda assim, não posso esconder, é coisa de que gosto. Chegar a uma loja, deitar um olhar panorâmico, um vol d'oiseau clínico, perceber onde está aquilo que pode interessar, depois ir até lá, pegar na peça, imaginá-la em mim, ver-me ao espelho, depois seleccionar o que pode ter a hipótese de ir até ao provador. O gosto de coisa nova, eu com uma imagem nova. Coisa boa.

Assim é ela, a minha menininha.

Como presente de aniversário, compras. Afinal já está crescida, já vai fazer doze anos. Em vez de lhe oferecer roupa para a rentrée escolar, coisa que faz sempre falta, a possibilidade de ser ela a escolhê-la. 

Tal como acontece comigo, ela não teme o que é diferente. Também não lhe ocorre temer a opinião alheia. Ao contrário das crianças desta idade que querem, sobretudo, alinhar-se com a opinião dominante no grupo de amigas, ela sente-se especialmente atraída pelo que é diferente. 

Por exemplo. Na secção de adultos, viu uma saia comprida. Adorou. Fiquei na dúvida. Será? Olha que não sei... Será que vai ficar bem? Toda eu dúvidas. Ela não. Dúvidas nenhumas. Eu gosto. Pegou para provar. Também na secção de adulto, uns calções elegantes em azul marinho. Gostei. Vou provar. Vi um macacão em tecido fino, levemente plissado, de alças, calças soltas e largas, decote assimétrico, em azul claro turquesa e verde água, um pendant perfeito com a cor dos olhos. Ela estava a provar umas calças de ganga, pretas, levemente à boca de sino, esfiapadas nos joelhos quando lhe levei o macacão à cabina. Olhou, apreciadora, e disse: 'Eu gosto...'. Pegou nele para provar a seguir. Quando vestiu, fez uma pose ao espelho, saiu para mostrar ao mano do meio e ao avô que desesperavam no interior da loja. Fez uma pose. Eles olharam, ar surpreendido, fizeram ar aprovador. Foi o que lhe bastou. Foi para o provador: 'Gosto. Levo.'

Quando eu tinha a idade dela não havia todo este abundante pronto-a-vestir. Muitas coisas que usei eram feitas a partir de modelitos avistados em revistas de moda. Escolhia, íamos a lojas de tecidos desencantar algum que se adaptasse, íamos à modista com os materiais e a revista. Vestia-me de maneira diferente das minhas colegas e ainda hoje me lembro bem de vestidos bem engraçados, por exemplo um que tinha o corpo em malhinha em fio de linha preta e saia às flores muito coloridas e manguinha curta igual. Ou de um conjuntinho de calções curtinhos com uma camisa igual, de manga curta, tudo em azul claro com malmequeres pequenos em branco. Dava um nó à frente com as pontinhas da camisa. Não queria cá saber do que as outras meninas pensavam.

Esta minha menininha é, também nisto, uma mini me

Agora diz que, quando for grande, quer ser gestora -- porque quer mandar. Diz isso.

Avisei-a que mandar nem sempre é coisa boa. Muitas vezes não sabemos, ao certo, o que melhor decidir. Todos à espera da nossa decisão e nós cheios de dúvidas. Outras vezes, achamos que estamos a fazer bem e as pessoas, afinal, não concordam, criticam-nos, acham que decidimos mal. Ela encolheu os ombros. Disse que não se importava. Antes dizia que queria ser pediatra e eu isso achava melhor. Mas sabe lá a gente o que é melhor. Eu, desde cedo, depois de me passar a vocação de merceeira e a de cabeleireira, imaginava-me em ambiente empresarial, a decidir, a mandar. Pelos vistos, ela sente o mesmo apelo. Se se mantiver nesse rumo, nem sabe a vida de chatices que a espera.

Agora dorme aqui ao meu lado. Deita-se, vira-se de lado e adormece. Não lhe incomoda a luz ou o barulho. Até nisso é parecida comigo. Quando tenho sono, também basta encostar-me. O sono desce instantaneamente.

Os manos dormem no quarto dos rapazes. O urso cabeludo dorme a sono solto no corredor. Mas os meninos não são os únicos a pernoitar. Tem mais. Na volta ainda devia ter era mais camas...

Quando viu a toalha em cima da mesa grande, o mais pequeno exclamou: 'A toalha dos anos...?'. Referia-se à toalha de exterior -- que parece de tecido mas é plastificada -- que a minha filha me ofereceu pelos anos e que foi usada nos meus anos, nos anos do meu filho, nos anos do menino mais crescido. Passou a ser a toalha dos anos. Hoje não festejámos nenhum aniversário mas, não tarda, estará a ser usada de novo com esse propósito.

E eu, depois de uma semana de trabalho, só penso que felizmente já estou com um pé no fim de semana. Trabalhar em Agosto é coisa que sabe a disparate, a coisa de gente destituída, gente que não sabe fazer mais nada do que trabalhar, coisa do mais contranatura que há. Felizmente tenho a maltinha por perto e, com eles, o ar de festa e de férias está sempre presente. Tão bom.

E estou é capaz de também me encostar já aqui e deixar-me ficar a dormir, tal neta, tal avó. 

Ah, já contei? De um lado tem um brinquinho, do outro tem dois. Não quer cá saber se dói, se não dói. É para fazer, faz-se. Queria mais um piercing ali daquele lado e agora já o tem. Coisa mais linda, mais fofa, mais decidida.

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A magnífica fotografia, que me deu o mote para o que escrevi, é da autoria de Joseph-Philippe Bevillard (Ireland) e mostra Julann e a neta Lucia. Foi feita em Birr na Irlanda. Foi feita este ano e pertence à série 'Mincéirs'

"Julann and her granddaughter Lucia just got dressed for a wedding. As part of their lifestyle and custom, all members of the family are dressed in flamboyant style, the little girls mimic their mother's and other siblings' fashion. Hairpieces, high heels, full makeup, false tan, nails, and eyelashes are showcased by all ages."

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Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Alegria. Paz 

domingo, julho 10, 2022

Cérebro meu, cérebro meu, como garantir que, até ao fim, serei sempre eu?

 



De novo um dia muito preenchido. Entre o programa de festas da manhã e o da tarde, tempo para fazer peixe cozido para o almoço (maruca com batata, feijão verde e ovo, temperado com azeite e sumo de limão). Acabámos de almoçar à três e tal e, como a companhia da tarde não chegaria antes das quatro e meia e eu estava que não podia, deitei-me no sofá e liguei a netflix. Para dizer a verdade nem sei se cheguei a começar a ver alguma coisa. Tenho a vaga ideia que sim mas não faço a mínima sobre o que foi. Acordei estremunhada quando eles chegaram. Devo ter dormido uma hora ou quase. Estava mesmo cansada.

O que me vale é que durmo um niquinho e acordo fresca. Mas estes niquinhos não chegam. Sinto que estou a precisar de descansar e o aborrecido é que não estou a ver maneira de consegui-lo nos próximos tempos. Precisava de poder dormir de manhã até o corpo querer, sem despertadores, sem ter que me preocupar com o que tenho que fazer a seguir. E precisava que isto pudesse acontecer durante vários dias seguidos. Precisava também  de dormir a sesta todos os dias durante vários dias. Claro que também era bom que conseguisse passar a deitar-me mais cedo. Só que este bocado, à noite, é o meu tempo, o bocado em que estou sozinha, sem ter mais nada que fazer senão o que me apetece. 

Outro que está como eu é o dog. Com este calor só lhe apetece descansar à fresca e ou somos nós que saímos e o levamos ou é a animação que vem até nós. Acresce que o cão da casa ao lado o tira totalmente do sério. Aliás, o cão não faz quase nada. Mas existe e é carismático e isso perturba a existência do nosso cabeludo. Corre, salta e ladra freneticamente durante tempos e tempos. Não consegue descansar de dia e, chega a esta hora, e deixa-se cair, completamente desfeito.

Mas a tarde foi boa, a companhia animada. E deu até à noite. Estivemos na rua até talvez às dez. Depois de um caloraço durante o dia, pôs-se muito bom para a noite, uma temperatura agradável, uma levíssima aragem a refrescar o ambiente. As luzinhas solares são o máximo, criam uma onda acolhedora. Para além disso, são fotogénicas. Hei-de fotografá-las para vos mostrar. 

Uma noite de verão assim é uma maravilha. Infelizmente sabemos que se há casos em que as aparências iludem este é um deles. 

As temperaturas anormais e persistentemente altas como corolário de um ano demasiado seco mostram o que serão os calores cada vez maiores e mais frequentes, os riscos cada vez mais intensos de incêndios difíceis de controlar e o devastador problema da falta de água. Ou acordamos seriamente para a necessidade de puxar pela cabeça, da ciência dar as mãos à tecnologia e de arregaçar as mangas ou o país tornar-se-á um lugar não apenas perigoso como francamente inóspito para algumas espécies, nomeadamente para a humana. 

Mas, enfim, adiante.

Na sexta, o meu filho não perdeu os Metallica e, neste sábado, foi a minha filha que me falou no imperdível concerto dos Da Weasel. E disse-me que se podia acompanhar na rtp. Desconhecia. E, por isso, quando chegámos à sala, foi na rtp 1 que nos sintonizámos. Já ia adiantado mas, até ao fim, não despegámos. Muito bom. Fabulosa energia.

Pasmo com a incrível multidão que ali esteve, unida, em comunhão, vibrando com o potente som e a muito boa vibe daqueles matulões da margem sul. E estão melhores, muito melhores. Ganharam uma outra dimensão. 

Agora, enquanto escrevo, actuam os Two Door Cinema Club. Nunca tinha ouvido. Estou a gostar. Estou a escrever e a dançarinhar ao mesmo tempo. No recinto mantém-se uma multidão.

Dá ideia que a malta se marimbou de vez para a covid, se marimbou para distanciamentos e para a vida em suspenso. A malta quer é curtir, quer é viver em liberdade. A vida é uma coisa extraordinária.

Há pouco, enquanto a Filomena Cautela enchia chouriços com uns bacanos, dei uma volta pelo youtube. E vi este que aqui partilho e que, lamentavelmente, não tem legendas em português.

Explica o que é a doença de Alzeihmer e, de certa forma, como tentar preveni-la. Nada de novo: fazer exercício, ter uma boa alimentação, em especial na base da dieta mediterrânica, conviver, evitar o stress prolongado, aprender coisas novas e... dormir o suficiente. Pode não trazer novidades espampanantes mas é claro e bem sistematizado. Recomendo-o.

Lembro-me da minha avó paterna. Para o fim, de vez em quando tinha alguma perturbação que a fazia ter comportamentos algo estranhos, deixando-nos desconfortáveis, sem sabermos como deveríamos agir. O meu avô fazia por ignorar. Eu tentava relativizar. O meu pai não. Reagia como se ela estivesse normal, zangava-se. Lembro-me de uma vez estarmos em casa dos meus pais e de ela e o meu avô lá estarem também a almoçar. Ela queria ir, a seguir, a casa do seu outro filho, o meu tio, e estava preocupada que se fizesse tarde. E, então, por mais do que uma vez, levantou-se da mesa com a intenção de se ir embora. O meu pai irritava-se, que estivesse a almoçar sossegada, onde é que ia?, todos à mesa e ela naquele disparate, o irmão sabia que ela lá ia, não ia sair, ela que tivesse calma. Ela não respondia mas estava ansiosa. Sentava-se, comia mais alguma coisa e, de seguida, voltava a levantar-se e a dirigir-se para a porta. Aquilo fez-me muita impressão. Fez-me também muita impressão ver como o meu avô assistia com aparente indiferença mas não era indiferença, era impotência. Em vão, tentava que aquilo nos parecesse normal ou irrelevante. Muito triste.

Outra vez perdeu completamente o conhecimento. Partiu uma perna, foi operada. A seguir apanhou uma pneumonia. Esteve muito mal. O hospital fez-lhe também mal. De alguma confusão inicial passou para a total ausência de tino. Não dizia coisa com coisa nem conhecia ninguém. Os médicos diziam que era normal as pessoas ficarem confundidas em situações assim. Não era aconselhável que tivesse muitas visitas pois ainda mais baralhada ficava mas os meus pais disseram que não sabiam como é que a situação ia evoluir pelo que era melhor eu ir lá. Não conhecia ninguém. Mas mal me viu, reconheceu-me: 'Olha a minha menina, a minha querida', disse o meu nome e abraçou-me e beijou-me muito. Estava quente, febril. Foi uma sensação estranha pois comigo falava normalmente e com as outras pessoas era o vazio. Não sei se teve Alzeihmer ou um outro tipo de demência ou se era fruto de AITs que na altura não sabíamos que tinha, só o soubemos quando teve um AVC que viria a ser fatal.

Com o meu pai foi diferente. Foi o AVC que lhe varreu o cérebro e o deixou com sérias limitações. Estava lúcido e com excelente memória mas foi perdendo a audição, depois a visão. Depois ficou acamado. E muito medicado. De vez em quando passava por períodos muito complicados. Até que se acertasse com a dosagem era, por vezes, um calvário. Chegou a perguntar se já tinha morrido. Nem sabia se estava vivo. Muito complicados esses períodos. Quando ficava lúcido, pedia para o deixarmos morrer. Muito difícil. Por isso, para o fim quase só dormia e a comunicação era quase nula. Também quase não falava, estava com sonda gástrica e com oxigénio em permanência. Se calhar, para ele foi melhor não assistir lúcido ao inevitável desenlace.

Talvez por estes dois casos próximos, a falta de lucidez, a dependência e o declínio que acompanham as limitações mentais assustam-me bastante. E gosto de me informar.

Espero que também achem útil.

5 ways to build an Alzheimer’s-resistant brain | Lisa Genova

Only 2% of Alzheimer’s is 100% genetic. The rest is up to your daily habits.

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Desejo-vos um feliz dia de domingo

domingo, agosto 29, 2021

Começar de novo

 



Foram buscar os dois mais crescidos à colónia de férias e, na volta, passaram por cá. O mais novo andava a pedir e os manos mais crescidos também gostam muito de cá estar. Quando chegaram, ainda no carro, o mano do meio perguntou-me o que era o almoço. Disse: robalo ou dourada no forno. Atirou-se para trás, altamente decepcionado, que peixe cozido é que não. Corrigi: não era cozido, era assado. Que não, qualquer coisa menos isso. Os pais mandaram-no calar. Não quis saber e perguntou que é que eu tinha mais que pudesse fazer. Disse que mais nada. 

Quando entraram, andaram a ver as mudanças. Gostaram da casa assim, mais branquinha e luminosa. Fiquei contente por ver que gostaram. A casa parece nova. 

Os mais crescidos vinham cansados. Em especial ela, que na véspera se tinha deitado à uma, vinha com uma pancada de sono que era bem patente no seu semblante.


Não obstante fez aquilo que agora faz sempre: veio para a cozinha, disse que queria ajudar e perguntou o que podia fazer. Disse-lhe que eu tinha que tratar do peixe e que era preciso tratar das batatas e da salada. O meu filho resolveu que tratariam das batatas (pequenas, para cozer com casca) e a minha nora atirou-se aos tomates do meu vizinho.
E não é metáfora, não senhor. 
No outro dia, depois de uma daquelas violentas sessões de limpeza e arrumação, chegámos ao fim do dia completamente arrasados. Quando, já noite, nos atirámos para o sofá, tocam à campainha que está junto ao portão da rua. Ficámos muito admirados. Àquela hora? Quem seria? O meu marido foi espreitar e veio avisar-me que era o vizinho da ponta da rua. Fui pôr-me decente e juntei-me a eles. Estavam junto ao banco de pedra que há à entrada da casa. O meu marido disse: 'O vizinho veio ver se queremos tomates que trouxe da horta'. Tinha um balde grande cheio de uns reluzentes e grandes tomates. Adoro tomate em todas as suas formas. Disse que sim e escolhi uns quantos. 'Tire mais...', disse-me ele. Tirei mais uns quantos. Uma pessoa fica naquela: tem vontade de se abastecer mas não quer abusar e tirar de mais. Mas pareceu-me que ele estava decepcionado por tirar menos do que ele esperaria. Voltei a tirar mais uns quantos. Entretanto, cansado dos seus múltiplos afazeres, tinha-se sentado no banco. As pessoas daqui trabalham todas muito. Ficámos a conversar durante um bocado. 
Mas, portanto, a salada foi feita com os grandes, pesados, reluzentes e saborosos tomates do vizinho.

Entretanto, eu tinha posto o forno no máximo para que o peixe, quando entrasse, o encontrasse bem quente. Num tabuleiro grande coloquei sal, azeite, orégãos e alecrim. Coloquei os robalos e as douradas em cima, virei-os e revirei-os para que recebessem o tempero. Depois coloquei-os no forno. Passado um bocado reduzi para os 170º. 

Com as batatas e o peixe em processo confeccional (confeccional de confecção) e com a salada pronta, fui dar atenção aos meninos, em especial ao mais pequeno.


Como no outro dia o referi, antes desta transformação, na sala de baixo, tinha, à vista e à disposição das crianças, vários brinquedos, nomeadamente os carrinhos que eram do meu filho. Hoje o mais pequeno quis saber onde estavam. Mostrei-os: arrumados num móvel na salinha da parte mais antiga da casa. Sentou-se logo no chão a brincar com eles. Mas depois disse-me que gostava mais quando estavam no outro sítio. Então ajudei-o a trazer alguns para a sala aqui ao lado, uma sala que têm portas de vidro e de onde se vêem as árvores.

Passado um bocado disse-me: 'anda, vamos fazer uma caminhada até ao meu caminho preferido'. Disse-lhe que tinha que se calçar. Então, como tinha deixado as havaianas à porta da cozinha, saímos por ali. Foi para um lado, a correr e a dizer: 'anda, vamos fazer a caminhada' mas logo parou: 'acho que o meu caminho preferido não é por aqui'. Olhou em volta. Depois disse-me: 'onde é a zona onde estávamos?' e acrescentou: 'é que dali eu sabia para onde queria ir...'. Acho uma graça à forma como se exprime, o vocabulário perfeito, a dicção perfeita. Fomos, então, até junto às portas de vidro da sala em que estava a brincar. Disse-lhe: eu acho que sei onde queres ir. E levei-o. Mas não estava convencido. Disse-me: 'Acho que não estou a ver o meu caminho preferido. É um caminho com muitas árvores...'. Mas caminhos com árvores há muitos. Pensei que talvez fosse o sítio onde, há uns dois anos, construíram uma casinha de troncos. Ficou contente de revê-la mas nitidamente era outro o lugar que tinha em mente. 


Mas já o meu filho e o meu marido chamavam, dizendo que as batatas e o peixe já deveriam estar. E estavam.

Portanto, procedeu-se ao almoço. E comeram bem, inclusivamente o mano do meio que antes tinha protestado tanto.

Depois de almoço deu-me uma pancada de sono e, como os mais crescidos estavam com sono, pensei que se encostariam um pouco e que talvez eu também pudesse dormir durante cinco minutos. Mas obviamente isso é daquelas miragens que não se percebe que eu ainda as tenha. Penteei a minha menina, uma trança ao lado. Ficou linda. Aliás, ela é linda. Depois ela e o mano mais novo quiseram fazer recortes e pintar. Pedi-lhe que fizesse desenhos com lápis de cor no suporte de madeira para o rolo das mãos que um dos primos pintou. Disse-me que essa seria a tarefa seguinte pois, antes, queria fazer desenhos em papel. Enquanto isso, o mano do meio leu um livro do Asterix que o pai lhe escolheu e depois esteve a ler algumas páginas de uma enciclopédia infantil. 


A seguir foram andar de trotineta, depois lanchar e depois foram-se, a minha menina com ar de quem iria adormecer no instante seguinte a sentar-se no carro (o que já sei que aconteceu mesmo). O mano reguila, que se move a pilhas de longa duração, manteve-se acordado.

E eu fui para uma espreguiçadeira, ao sol. Pensei que iria dormir mas, afinal, o sono tinha-me passado. Depois falei com a minha filha, depois com a minha mãe. Enquanto falava, ia caminhando. Quando passava ao pé de uma figueira, apanhava um e comia. Doces e carnudos de dar gosto. Tão bom estar aqui. Tão bom, tão bom. Paz absoluta, luz doce, silêncio do bom.

Quando regressei já anoitecia. Os dias estão cada vez mais pequenos. O outono aproxima-se a passos largos. Apesar de preferir os dias grandes e luminosos e de haver já no ar o prenúncio do seu fim, gosto desta altura do ano. É uma altura carregadinha de promessas. Sinto a mesma coisa que sentia quando as férias grandes se aproximavam do fim e o ano lectivo se fazia anunciar com novos colegas, novos professores, novas matérias, novas aventuras. É o ano que começa e, com ele, todas as boas expectativas. 

Começar de novo. Tão bom.


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Fotografias de avós e netos da autoria de Sujata Setia na companhia de Isak Danielson que interpreta Start Again

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Desejo-vos um feliz dia de domingo

terça-feira, novembro 17, 2020

Reparar danos, ficando a coisa melhor do que era.
Kintsugi. Dourar memórias.
Uma dança do início e do fim dos tempos

 



Hoje não consegui ler. Tenho o livro ao meu lado mas ponho-me a ver televisão e o tempo vai passando. Primeiro vi a entrevista de Fátima Campos Ferreira a Lídia Jorge. Superei a aversão que tenho à forma como a Fátima Campos Ferreira fala -- quase como se estivesse a falar com crianças ou com atrasados mentais, a fazer perguntas parvas, frequentemente a apelar à lamechice -- só para ver e ouvir Lídia Jorge. Não é escritora de minha especial afeição mas acho uma certa graça à forma como ela fala do Algarve rural. Há ali raízes que mergulham num chão que também sinto como um pouco meu. Toda a minha família foi, até certa altura, algarvia. Todos os meus quatro avós são algarvios. Contudo, saíram de lá ainda muito jovens. Para os meus pais, o Algarve era apenas a terra dos seus pais, tios e avós. Para mim, o Algarve ainda é uma realidade familiar ainda mais distante. Contudo, quando ouço falar do Algarve penso sempre no que são os caminhos do acaso.

Já aqui o falei: se ainda não o ocuparam, ainda deve lá estar um terreno que era do meu bisavô e que, em herança, passou para o meu avô paterno. As irmãs ficaram com a casa grande, ele com aquele terreno. Mas nunca ninguém tratou de nada. Milagrosamente, o terreno e as casas grandes, que cheguei a conhecer, tinham escapado aos pagamentos de dívidas do pai dele. Fugiu do país para fugir às dívidas de jogo e às avultadas despesas com mulheres, depois de ter perdido outras casas e outras terras. Como não havia certidão de óbito do meu bisavô para fazer a habilitação de herdeiros, não se passou para o nome do meu avô. Depois foi o meu avô que morreu e também ninguém mexeu uma palha. O meu pai também já cá não está e tudo continua na mesma. Nem eu nem a minha prima estamos para isso. Trabalhos para quê? 

Do lado da minha avó paterna, foi o mesmo desinteresse: tinha herdado terrenos e casas. Desfez-se de tudo. Conheci apenas uma propriedade contígua a uma que tinha sido sua: era a casa de uma sua sobrinha, uma casa grande, um terreno imenso com alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras, uma ribeira, animais. Eu gostava daquilo. Muito sol, muita liberdade. Campo, campo. O meu pai ficava doido com o que a mãe fazia, vendendo tudo por tuta e meia, grande parte das coisas a essa sobrinha de quem ela gostava muito. O meu pai achava a prima uma oportunista e a minha avó não gostava que ele falasse assim da prima. Essa prima tinha nome francês. Tinha nascido em França. Não sei que voltas deram os meus antepessados. Como o meu pai e o meu tio não queriam saber de contratar pessoal para apanhar e secar as alfarrobas, os figos ou para fazer azeite, a minha avó, sem os consultar, achava que não valia apena ter tudo aquilo. Com os terrenos a valorizarem-se exponencialmente, ela não queria saber disso. 

E o meu pai tinha vários primos e quase todos debandaram, para França, para o Canadá. A filha mais velha de um dos primos, um pouco mais nova que eu, ainda apareceu uma vez, parisiense de gema. Elegante, bonita. Não a vi, contou-me a minha mãe. Sei que tem uma irmã, também parisiense, também muito bonita. Até nunca mais. Não sei como poderia saber deles. Perderam-se no mundo, sem quererem saber de laços familiares. Nem eles nem eu.

Do lado dos meus avós maternos, era outra coisa, gente mais citadina. Do lado da minha avó, só sei que era gente dada à política, um irmão que vivia na clandestinidade, primos da minha bisavó que eram gente de cultura e da política, feitos e factos conhecidos, um deles faz parte da história política e cultural do país. Muito primo e prima. A minha mãe e o meu tio ainda mantiveram laços com os primos mas pouco entusiasticamente. Eu nada sei deles. Soube quando era pequena. Íamos a Faro visitar as primas da minha mãe. Uma casa grande na cidade. Tenho ideia que as portadas estavam quase fechadas, a casa sombria, móveis altos e escuros. 

Do lado do meu avô materno nada sei. Todo ele era diferente: muito alto, muito louro, de olhos claros. Não sei se tinha família, nunca ouvi falar. Tenho ideia que a minha mãe dizia que era de Alte. Mas não garanto. Não sei se tinha irmãos, não sei se a minha mãe teria primos desse lado. Não sei se a minha mãe conheceu avós do lado do pai. Também nunca me lembrei de lhe perguntar. 

No entanto, curiosamente, os meus avós maternos guardaram até ao fim da sua vida muitos hábitos da sua infância e adolescência algarvia. E falavam nesses tempos, uma ancestralidade que lhes ficou colada à pele. 

Havia também na rua dos meus pais, a rua da casa em que cresci e onde a minha mãe vive, uma vizinha algarvia. Conhecia parentes dos meus avós. Falava sempre desses tempos, desses hábitos. Ouvido de fora, tudo aquilo era muito irreal, antigo, as coisas descritas com explicações que pouco tinham de racional. O meu pai aborrecia-se: ignorância. Não conseguia aguentar um minuto daquelas histórias ou recordações. Impacientava-se por achar que era ignorância a mais. A minha mãe não, a minha mãe achava graça, gostava daquelas conversas. A vizinha dizia mal os tempos dos verbos. Em vez de 'fomos' dizia 'foramos'. A minha avó, quando relatava o que os familiares e conhecidos diziam, usava os verbos da mesma maneira. O meu pai irritava-se, dizia-lhe que parecia que não sabia falar. Ela dizia que estava a imitá-los. O meu avô ouvia aquilo e não dizia nada, não se metia em discussões. 

Gostava de fazer cestos. Já o contei. Sei que me repito mas gosto de recordar esses gestos vagarosos em tardes que me pareciam eternas. Apanhava folhas que punha a secar e, depois, sentado num banco baixo, punha-se a entrançar aquelas folhas resistentes: baracinha. Penso tantas vezes: porque não consegui conservar nenhum desses cestos se gostava tanto deles? Ali ele punha a fruta ou os ovos que a minha avó ia buscar à capoeira. O meu pai não ligava nada àquilo, acho que nem olhava. A minha mãe também achava que aquelas cestinhas tinham algumas imperfeições. Eu não, eu adorava.

Não sei se por tudo isso, gosto de ouvir a Lídia Jorge a falar do seu Algarve, das suas histórias de antes, daquele Algarve rural, antigo, as raízes bem fundas em tempos de outros tempos.

A Lídia Jorge não falou nisto mas falou em coisas que me fizeram lembrar isto.

E, a seguir à Lídia Jorge, virei para o Master Chef Australia. Pura magia. Ver criar obras de arte daquela forma é para mim um prazer. A forma arrojada e inteligente como combinam ingredientes e a perfeição dos gestos deixam-me presa. Gosto mesmo. E mais gostaria se pudesse provar...

E, nesta mansidão, o tempo vai passando e eu aqui preguiçando.

Tirando isto, posso apenas acrescentar que ontem ao fim do dia colei aquela grande taça de cerâmica onde estava o aloé vera, que se partiu. Depois de muito procurar, descobri um tubo com alguma cola-tudo. Temi não ter trazido nenhum tubo da outra casa mas, surpreendentemente, encontrei um. Colei e depois atámos um arame fininho em volta do rebordo para ajudar a manter a coesão entre as partes. O meu marido acha isto uma coisa do além. Por ele, partiu-se, vai fora. Eu não. Acho aquele grande vaso uma peça mesmo bonita. Falei-lhe no kintsugi. Ele não sabia o que era e também não quis saber. Eu é que não tenho nenhuma tinta dourada, senão haveria de tornar o vaso ainda mais bonito.

Sempre me custou deitar fora coisas de que gosto. Se estão danificadas, penso que devo tentar recuperá-las e não desfazer-me delas. No fundo, tenho este meu lado zen. O meu avô paterno tinha traços orientais. Traços e atitude. Pescava nas horas vagas, cuidava da horta, fazia cestos, lia. Era uma pessoa calma, silenciosa. Nunca o vi gritar, nunca o vi exaltar-se. Entretinha-se com coisas simples. Eu gostava muito dele. De pequena até ele ser bem velhinho sempre tivemos um amor muito grande um pelo outro. Custou-me muito quando ele cegou. Sentia-se muito diminuído por não poder fazer nada do que gostava. Ninguém merece.


Hoje à hora do almoço, fomos buscar terra lá abaixo, enchemos a taça, transplantei uma planta que tinha trazido do supermercado e da qual não me lembro do nome. Coloquei umas pequenas estacas de outras plantas para compor. Se me lembrar, amanhã mostro. Na entrada de lado há um pequeno terraço para que se sobe por um lance de meia dúzia de degraus. Já lá coloquei umas quatro plantas. A ver se se dão ali. Acho que está a ficar bonito. 

Pelo meio, trabalho, essencialmente reuniões, confecciono as refeições, faço uma caminhada, vejo as laranjas a crescerem nas árvores. O tempo precioso que antes gastava no trânsito agora uso desta forma. Podia usá-lo para conseguir deitar-me mais cedo... mas esqueçam, isto é genético: sou noctívaga, nada a fazer. E estou bem assim, obrigada.

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Despeço-me com um vídeo comovente que invadiu a comunicação social depois de ter invadido as redes sociais. Tocante. Marta Cinta, bailarina, doente com Alzheimer, recorda a dança ao ouvir o Lago dos Cisnes. Tão extraordinário, tão comovente. Que seres vulneráveis e indefesos somos.


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Desçam, por favor, pois a entrevista da enfermeira  Alisyn Camerota é digna de ser vista e revista

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E uma terça-feira feliz. 
Saúde. Força. Ânimo.

sexta-feira, julho 31, 2020

A minha dúvida existencialista a propósito das arrumações





Depois da melancia, não sei o que posso escrever mais pois tenho ideia que é preciso ter cuidado com o que se ingere a seguir, parece que a dita pode encortiçar. Na volta é mais um daqueles mitos urbanos. Mas, por via das dúvidas, tenho que ter cuidado com o que vou dizer a seguir. 

E o que tenho a dizer -- passando ao lado das grandes causas da humanidade e dos casos algo complicados com que tive que me deparar ao longo do dia -- é que, ao fim do dia, voltei às minhas arrumações. Deixei quase para o fim um móvel que tenho na sala de jantar. Há o louceiro e há o aparador. O que mais temia era este aparador: uma verdadeira arca do tesouro. Cheio como um ovo com tesourinhos deprimentes. Tremo de lá mexer. Ao longo de anos fui para lá enfiando tudo e mais alguma coisa. Coisas do enxoval, coisas herdadas, presentes que diferentes ofertadores e que atravessam épocas, estilos díspares, utilidade por vezes duvidosa. Numa ginástica que desobedece às leis da física, encaixo, sobreponho, enfio. E lá fica tudo, esquecido.


Em dias de festa ou de maior número de comensais, tenho que me afoitar e, quase a tacto, enfiar a mão e, devagar, qual jogo do micado, tirar a travessa, a terrina, o balde gelo ou a taça de vidro em forma de morango para servir os morangos, de maneira a que tudo não se desmorone e não aconteça uma desgraça. Depois, no fim do dia, depois da louça lavada, é o castigo final: conseguir que o espaço volte a acomodar a peça que, à primeira, à segunda e à última vista, parece não caber. 

Há bocado, quando o meu filho me ligou e perguntou o que temos feito, lá lhe contei que continuo (continuamos) nesta faena, que parece que não acaba, que aparecem peças em quantidade infinita. Ele passa-se: diz que nada daquilo serve para o que quer que seja, que só serve para encher, que não percebe, que nada daquilo tem qualquer valor. Pergunto-lhe se acha que deite fora serviços da vista alegre, travessas e terrinas de valor, garrafas de cristal, coisas assim. Diz: cristal é aquela coisa que é feita de chumbo. Digo que pois é mas que deve estar inertizado, que não deve ter problema, são peças atlantis, coisas de valor, não vou deitar fora. Diz que não se lembra de eu servir vinho ou água naquelas garrafas de cristal. Pois não, tem razão, mas é que acho que não se justifica, sei lá, tenho medo de partir. Digo: quando eu e o teu pai formos desta para melhor, tu e a mana fazem um leilão. Ele diz: podes fazer isso em vida. E pronto, ficamos assim. Esta conversa é recorrente. Os meus filhos não ligam muito para este género de coisas. Nem muito nem pouco. E eu, para dizer a verdade, acho que agora também não. Mas as coisas foram-se juntando. Vou fazer o quê com elas?


O meu marido, neste processo, ficou com o pelouro das estantes. Sim, que posso ser maluca mas parva acho que não sou. Não me arriscaria a pô-lo a mexer em louças e vidros. Assim como assim os livros não se partem. Mas, quando vou ao pé dele, está passado. Diz que encontra livros absurdos, que não percebe porque foram comprados. Para alguns encontro explicação. Para outros não. Coisas que vêm de mil anos antes, que se vão adquirindo porque se resolveu fazer uma colecção, sei lá. Diz-me: metade deles iam mas é para o lixo. Aborreço-me. Jamais (dito em francês, se faz favor). 

Mas a verdade, verdadinha, é que, por dentro, fico cheia de dúvidas. E das existencialistas que são as que custam mais. Dúvida existencialista é como bolha do sapato a roer o pé. Para que ando eu com tanta tralha agarrada a mim? Mas, se não quiser andar, faço o quê? Desfaço-me de peças valiosas? Não sou como a minha avó paterna que vendia por tuta e meia propriedades no Algarve porque os filhos não davam mostras de ligar àquilo, não queriam saber da apanha das alfarrobas ou das amêndoas. Quando davam por ela, já ela tinha despachado tudo. Ou a minha avó materna que tinha um móvel que eu achava o máximo e que, quando um dia disse que gostava de ficar com ele quando ela não o quisesse mais, obtive de resposta: Onde é que isso já vai... Já o vendeu a um antiquário qualquer que por lá passou a saber se ela queria desfazer-se de algumas coisas. Desfez-se do que calhou, sem ligar a nada. Família desapegada a minha. Quando os meus avós morreram, quer os paternos, quer os maternos, nenhum dos meus primos quis o que quer que fosse. Eu sim. Coisas simbólicas. A enxada do meu avô, o cadeirão onde ele via televisão, os copinhos de vidro coloridos da minha avó. Tive pena que já não houvesse a grande avenca que estava no parapeito da sala, numa janela com as portadas meio fechadas porque 'a avenca gosta mais do escuro e do fresco'. Dou valor a coisas que têm vida agarrada.


No fundo, no fundo, prefiro a simplicidade, os ambientes arejados. Mas o que faço a tudo o que a vida me foi pondo no regaço?

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Bem, isto vai longo demais, tenho que parar. Começo a escrever e distraio-me. Sorry.

As fotografias são da autoria de Terry O’Neill e achei por bem ir buscar Liszt, La leggerezza, pela mão de Martha Argerich 

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E, como agora ando numa de coisa divertida e sorridente como forma de vos dizer 'até já', aqui vos deixo com mais um destes vídeos deliciosos e ternurentos. Have a big smile.


E queiram descer caso queiram aprender a comer melancia em sociedade

E um dia feliz. Saúde e alegria.