Desde que frequento as agitadas paragens do Instagram deparo-me com milhares (quais milhares... certamente milhões, biliões, zetaliões) de coisas. Cada um mostra ali o melhor que sabe e pode, ou o que lhe apetece, ou sabe-se lá o quê. Mil obras de arte, mil arranjos florais, mil restauros de móveis, mil maneiras de parecer mais nova, mil maneiras de parecer bronzeada, mil maneiras de cortar o cabelo, mil exercícios e mil dietas para perder barriga, mil maneiras de fazer bolos sem ir ao forno, mil maneiras de fazer panquecas, mil livros, mil citações, mil gracinhas do cão, do gato, dos filhos, mil arco-íris, mil decorações de nails, mil, mil, mil de tudo e tudo elevado a um expoente que transforma os mil em muitos, muitos mil.
Apercebo-me, como se me pusessem uns óculos de realidade aumentada, excessivamente nítidos, quase insuportavelmente saturados, que há gostos para tudo, conceitos díspares a propósito de tudo, teorias para tudo. Não que não o intuísse, não que não o soubesse da minha vida real. Mas a amostra era curta: era apenas a realidade que eu conhecia. Agora a amostra é o mundo. Aparecem-me imagens e vídeos e palavras de todo o mundo.
E, no entanto, se, ao fim do dia, eu quiser dizer o que é que me ficou de tudo o que vi, vou ter a maior dificuldade. Talvez fiquem umas palavras límpidas ou uma pintura singela de alguém que já conhecia de outras paragens e que fui ali encontrar, talvez as imagens genuínas e as palavras espantosamente sinceras e simples da Gina, talvez uma forma engraçada de dobrar camisolas com capuz.
Mas aquilo é o mundo. Uma tremenda cacafonia em que parece que o que é mesmo relevante se esbate no meio de tanta exposição.
Fica-me, isso sim, a vontade de silêncio, de alguma reclusão, de regresso às origens, às flores, à terra molhada, ao canto dos pássaros, a vontade da amabilidade sincera, simples, autêntica, a saudade de palavras transparentes.
Debruço-me, então, e vou em busca de uma pedra, de um cogumelo, de um líquen, de uma gota de água a escorrer de uma folha, do reflexo de uma nuvem na água que fica sobre a terra.
E depois é isso. Só isso. O reino da beleza das coisas simples. E chega-me.
Tenho, pois, estado nesta fase de hibernação. Eu sei que há uns abençoados a quem o corona deu de mansinho. A mim, pancada forte, com febre, dores e congestionamento foi coisa de curta duração. Mas o cansaço e o sono têm sido dose. E o que prova que isto tem a ver com a raça do corona e não com a vítima é que, apesar de o meu marido ser muito diferente de mim a todos os níveis, eu e ele temos os mesmos sintomas, sem tirar nem pôr. O cansaço e a falta de olfacto e de sabor são iguais.
Hoje calhou ele ter um assunto a tratar no Boulevard de Alvalade. Como também havia um assunto a tratar num banco e porque já estou que nem posso só de pensar que estou hibernada há dias, resolvi ir com ele.
Pensei que, se ele se demorasse e eu não aguentasse, iria para o carro, ficaria lá à espera.
Quando me vi ao espelho no carro achei-me estranhamente branca. O meu marido também me estranhou, tão branca e olheirenta. Como ele é muito moreno, nunca está branco e olheirento. Eu estou com aspecto de desenterrada.
Bom. Ele lá foi à sua vida.
Ao ver-me sozinha na rua, senti-me meio zonza, o ar muito branco, parado. E eu a levitar. A pairar.
Vi um supermercado e resolvi ir comprar bananas. Consumimos duas por dia (uma cada um) pelo que dava jeito reaprovisionar. Quando me vi na rua com um saco de plástico transparente com quilo e pouco de bananas não apenas achei que era pouco estético andar a laurear com um saco de bananas na mão como senti que me cansavam.
Voltei atrás, ao carro, para as depositar. Cheguei lá já cansada. Avaliei se teria energia para voltar ao passeio. Resolvi que sim. Devagar, devagarinho.
Entretanto, comecei a sentir-me com sede. À medida que andava mais cansada e mais sedenta me sentia. Comecei a ver como resolver. Pensei que se fosse comprar uma garrafa de água se calhar depois ficava cansada por transportá-la.
Resolvi entrar antes numa livraria e comprar dois livros de poesia que tinha em atraso.
Em situações normais, deslizaria pelas estantes, tentada por dúzias de livros. Hoje não. Peguei nos dois pequenos livros, paguei-os e saí, cansada e desidratada.
Depois vi uma loja de roupa e, na montra, uma blusinha clara em tons róseos e rebuçados. Resolvi entrar. Mas estava com calor, sem energia, abúlica. Pensei que nem pensar em prová-la. Queria era sentar-me e beber um litro de água.
Felizmente ligou-me o meu marido e senti-me como se estivesse a ser salva. Lá regressei ao carro.
Viemos para casa, cansados, cheios de sono. Os dois.
Quando chegámos, nem me mexi. O meu marido entrou em casa para buscar o urso felpudo.
E lá me convenci a fazer um esforço adicional. Fomos os dois dar um pequeno passeio higiénico com o fofo dog de guarda. Coisa pouca, em câmara lenta.
Claro que, antes, tínhamos parado na Frutalmeidas para trazer os incontornáveis pastéis de massa tenra.
Em casa fizemos uma salada e comemo-la com pastéis. Mas estávamos de tal maneira que apenas comemos um, cada um.
E já mal abríamos os olhos. Cansados, perdidos de sono. Uma coisa inexplicável. Não é falta de fôlego, não é falta de ar. É apenas falta de energia. Total falta de energia.
Há bocado estava aqui a querer ler uma coisa. E outra vez só a deixar-me dormir. É de loucos.
Resolvi, então, virar-me para o YouTube. O mesmo castigo. Dou por mim de olhos fechados.
Pareço eu que fiz uma maratona e, portanto, que tenho razão para estar nisto. Mas qual quê...? Qual maratona? Isto deve é ser alguma variante do corona que nos come as pilhas todas. Só pode.
Não conseguindo, pois, fazer passeios por mim, passeio antes por aqui. Lugares fantásticos. A arte e a técnica humanas podem ser quase mágicas. No meio, um lugar português, a incrível Casa do Penedo. A boa arquitectura, mesmo quando popular, mesmo quando ancestral, e, em especial quando é ousada e desafiadora, é do melhor que há.
Devo dizer que na outra noite dormi muito mal. Acordei a meio da noite e só voltei a adormecer quando amanhecia. E logo a seguir tocou-me o telemóvel. A inclemência começou cedo. E o dia foi em contínuo, sempre a bombar. Só comecei a fazer o jantar depois das nove da noite. Acabámos de jantar por volta das dez e meia.
Como é bom de ver, mal aqui me apanhei sentada, logo me deu o sono. Estava com o computador nas pernas, tentando informar-me sobre os sucedidos do dia. Ouvi o meu marido a avisar-me que o computador ainda ia parar ao chão. Mas não consegui mexer-me. Segundos depois, um barulho. Tinha mesmo ido parar ao chão. Apanhei-o, pousei-o na mesinha aqui ao meu lado e adormeci a sério.
Acordei agora, e passa da meia-noite, enquanto na SIC N o Nuno Rogeiro e o José Milhazes comentam os irreparáveis e imperdoáveis crimes de guerra na Ucrânia. Tudo demasiado tenebroso. O que ali se passa é acima de criminoso.
Mas, a esta hora, sinto necessidade de desligar. Melhor: de deixar o oxigénio e a música entrarem na minha mente. Tenho sorte: sinto necessidade disso e posso satisfazê-la. Não vivo numa cave, num abrigo, sob escombros. Vivo com conforto e posso fazer o que me apetece. Não passam mísseis sobre mim, não tocam as sirenes, não ouço estrondos.
Apetece-me música. Mas, em situações assim, gosto de fazer ondas. Música, sim, mas em versão hot. Ao passar os olhos pelos jornais, vi um artigo sobre as vestimentas de algumas pianistas clássicas. E fiquei com vontade de ir buscar essas mulheres que ousam e que transportam a sua exuberante carnalidade para as interpretações.
Khatia Buniatishvili, nascida em 1988, é talvez uma das mais conhecidas neste capítulo. Curvilínea e de carnadura generosa, é intensa, sorridente, extremamente sensual. Os seus vestidos são toda uma festa.
Yuja Wang, 35 anos, compete de perto com Khatia. É irreverente, jovial, desfila como uma gata e, por vezes, ao fazê-lo, tão curtas são as saias que a aparição das cuecas (se é que as usa) é daqueles milagres que todos esperam.
Alice Sara Ott, 33 anos, é de um outro género. Nela não é o decote ou a escassez dos vestidos que ajudam a deixar as audiências ao rubro. Nela são sobretudo as expressões. Há nela qualquer coisa de Teresa de Ávila. Parece estar em estado de êxtase e se não foi Nosso Senhor que passou por ali só pode ser que esteja à beira do orgasmo.
Claro que têm mais qualquer coisa em comum: o talento. E a alegria e o prazer de sentir a música a percorrer cada centímetro da sua pele.
Sobre Yuja, uma brincadeira
Mas, para que não se pense que não há em mim gota de recato, permitam, então, que partilhe a Élégie de Massenet. Aqui Alice Sara Ott está contida e não é a única a captar a atenção. As suas companheiras Camille Thomas e Fatma Said dividem com ela o palco e muito bem.
Que o vídeo é uma alegria e uma explosão de movimento envolta no mais luminoso rubro lá isso é verdade. Mas o que é que isso tem a ver com a celebração do amor não sei.
Se calhar, para os cavalheiros que vão à Place Vendôme escolher uma jóia para a sua bem amada, isso é um sinal de amor. Não digo que não. Claro que é para quem pode mas, enfim, não é por poder que tem menos sentimentos. E, nestas coisas, cada um é como cada qual.
Agora uma coisa eu sei: se eu não fosse eu mas alguém estupidamente apaixonado por mim e, ao mesmo tempo, estupidamente rico não sei se, para celebrar o amor, a primeira coisa que me ocorreria seria gastar uma fortuna numa gargantilha cravada a diamantes.
Gosto de jóias. Sim, gosto. Mas o meu gosto tem mudado. Se alturas houve em que me deslumbrava com um clássico ornado com umas belas esmeraldas, safiras, rubis ou, mesmo, diamantes, mais tarde evoluí para a simplicidade, mas uma simplicidade com arrojo. Peças modernas com um design elegante mas algo inesperado.
Ultimamente já era a simplicidade em absoluto.
Mais até do que simplicidade: peças com alguma piada a nível estético mas baratas. Por exemplo, algumas peças da Parfois fazem maravilhas numa toilette.
E, como já tenho que chegue para esta vida e para a outra, evoluí para o estadio limite: zero aquisições. Nem jóias nem social-jóias, nem Parfois nem coisa nenhuma.
Tinha uma pulseira de ouro com um belo design urbano. Pesada, muito bonita, um fecho muito original. Gostava imenso de senti-la no pulso. Era uma peça e tanto. Até que um dia à noite, ao chegar a casa, não a tinha. Fiquei para morrer. Não era apenas o prejuízo mas a pena por ter perdido uma joia tão especial. Voltei atrás e, à noite, percorri a pé o último percurso. Andei dias a perguntar se alguém a tinha visto. Deixei o meu contacto em todas as lojas possíveis e imaginárias. Nada, claro.
Serviu-me de emenda: usar peças assim no dia a dia nunca mais.
O que uso -- e uso sempre, fazem parte de mim -- são dois fiozinhos muito fininhos. Tenho-os, como integrantes da minha pele, há décadas.
Quando, no verão, fiquei no hospital em observação de um dia para o outro, tive que os tirar. Coloquei-os na carteira. Quando a minha filha lá conseguiu entrar, pedi-lhe que a entregasse ao meu marido. Tinha ideia que os tinha posto de lado, numa bolsa sem fecho. Quando a dei, esqueci-me de avisar que ele não virasse a carteira. No dia seguinte, pedi ao meu marido para ver se lá estavam. Não estavam. Ia-me dando uma coisinha má (em cima da que tinha tido). Perguntei se tinha tido cuidado. Enervado, sabia lá ele como é que tinha pegado na carteira.
Em cima da preocupação pelo estado do meu coração, ainda mais o desgosto por ter ficado sem os meus inseparáveis fiozinhos.
Quando nesse dia tive alta e cheguei a casa, com a pressão arterial altíssima e sem saber se devia voltar para o hospital, arranjei disponibilidade mental para fazer um break para ir vasculhar a carteira na esperança que o meu marido, pura e simplesmente, não os tivesse visto. Nada. Então, de súbito tive um lampejo e lembrei-me que, na véspera, no hospital, ao tirá-los e guardá-los tinha pensado que tinha que os pôr a bom recato, num separador com fecho, na carteira. Salve.
Quanto a jóias, recordo também sempre o primeiro desgosto que o meu marido me deu, revelando a sua maneira de ser. Tínhamos casado há poucos meses e eu tinha visto numa montra na Rua Augusta um anel de ouro muito fininho com dois pequenos corações em que um se sobrepunha ligeiramente ao outro. Eram de marfim com um aro fininho também de outro. Super discreto, mimoso. Descrevi-o com pormenor. Quando recebi o presente, nem queria acreditar. Um anel em ouro branco e com um lustroso rubi. Um anel descarado. De facto, lindo mas que não passava despercebido. Nada do que eu queria. Tinha vinte anos, vestia-me como as adolescentes se vestiam naquela altura. Não podia imaginar-me com anel tão exuberante. Perguntei porque me tinha oferecido aquele se eu lhe tinha dito tão claramente qual o anel que gostava de ter. Pouco ligou, disse que simplesmente tinha visto aquele anel e tinha achado que me ia ficar bem.
Depois disso fez muitas mais do género, geralmente deixando-me sempre perplexa com o que recebia e que era tão diametralmente oposto em relação ao que lhe tinha sugerido.
Depois deixei de sugerir o que quer que fosse. Agora, quando quero uma coisa, não peço. Compro. Deixei de esperar o que quer que seja. O que vier está bem. Aliás, estou numa fase em que se não receber nada está também muito bem.
Mas não vou terminar este post natalício sem relembrar uma história, já aqui referida, do Cesariny. Contou ele que estava num alfarrabista ali ao Chiado quando entrou uma madama muito madama, muito sofisticada e cheia de nove horas, e lhe perguntou: Cavalheiro, desculpe-me, isto aqui é uma joalharia? Perante o insólito da pergunta e o ar cagão da baronesa, Cesariny não resistiu e disse: É sim, minha senhora, já aqui fiz muitos broches de joelhos.
E, conversa à parte, que se entoe o Love is all e que venham as donzelas adornadas a rigor para dançar e celebrar o dito amor e, en passant, para honrar as jóias da Cartier: Monica Bellucci, Khatia Buniatishvili, Lily Collins, Golshifteh Farahani, Willow Smith e outros. Uma festa. E se quem me vê não pode com p pois que não perca tempo nas lastimações. Junte-lhe um h que vai ver que a festa ainda vai ser melhor.
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E que venha daí um belo smile
Um dia muito bom para todos os que aí, desse lado, fazem o favor de me aturar
Os hábitos mudam. Dantes, não assim há tanto tempo, ia uma meia dúzia de vezes por ano a Madrid. Eu gostava muito de Madrid e chegava a dizer que não me importava de lá viver. Estudava as exposições, avaliava as que valiam a pena, estudava a melhor altura para as visitar. E antecipava o prazer de andar no Retiro no meio daquela tremenda diversidade dos domingos de manhã. Vinha de lá carregada de fotografias. Tudo me agradava: a arte, os jardins, a alegria das pessoas, as lojas, os restaurantes.
Até que, por isto ou por aquilo, as viagens foram ficando mais esparsas. Agora, se penso em Madrid, não sei bem o que lá me atrairia.
Os museus de Paris ou de Amesterdão também são daqueles aos quais haverá sempre mil razões para lá voltar. E, no entanto, se pensar em ir passear, não me ocorre ir para lá.
É estranho, isto.
Apetece-me passear mas, se pensar onde quero ir, só me ocorrem lugares por aqui mesmo, por perto. Ir até à Gulbenkian, por exemplo. Ir descobrir parques, ir a pequenos museus, coisas assim.
Se calhar é outro dos efeitos colaterais do confinamento. Vi que, no dia em que abriram a cancela aos turistas, aviões carregados de ingleses aterraram no Algarve. Ainda bem mas, numa altura destas, não consigo perceber esta atracção pela fuga.
Hoje falaram-me numa pessoa ainda jovem que, supostamente, terá apenas cerca de três meses de vida. Não sei como se vivem esses três meses. Não sei se será possível racionalizar, desdramatizar, programar, com a qualidade possível, o que falta para viver na plena posse das faculdades.
Nunca me hei-de esquecer da cunhada de uma amiga que, sabendo que estava às portas da morte, deu largas à sua vontade de cantar. Surpreendeu toda a gente: parecia a Janis Joplin. Fazendo anos a poucos dias do que sabia ser o seu fim, já de cama, muito mal, pediu de presente um blusão de cabedal. Eu ouvi isto com a perplexidade de quem ainda não sabia nada da vida.
Nessa altura eu achava que as coisas deviam fazer sentido. Hoje sei que não. Hoje sei que mais de metade do que fazemos não faz qualquer sentido. Pode é fazer-nos sentir bem e isso é bom. Não devemos abrir mão do que nos faz sentir bem.
O que se faz quando se percebe, com todas as letras, aquilo que passamos a vida a ignorar, que a vida é finita? Como nos despedimos dos filhos, da sua inocência e amor, do companheiro e amado, das flores, do céu, da vista que temos da janela, dos passos que damos na nossa casa, do sol que entra pelas janelas?
Recordo-me de novo do momento em que, numa descida a caminho de uma movimentada rotunda, o meu carro perdeu os travões e, desgovernado, avançou a grande velocidade contra o que encontrasse pela frente e de como pensei, naquela breve fração de segundos, que se calhar estava a viver os meus últimos momentos e que nem tinha tempo de pensar em cada um dos meus amores. E penso como vivi esse momento sem pânico, apenas com essa prosaica constatação. E, depois do embate, lembro-me bem de, com o carro amachucado, meio no ar, meio de lado, a fumegar, abrir a porta, perceber como sair de lá e, já cá fora, ficar um bocado atónita a pensar que estava viva e sem perceber se estava ou não magoada, inteira. Apenas perplexa. As pessoas vieram a correr ter comigo, vinham aflitas, largaram os seus carros de qualquer maneira, e eu estranhamente calma, tentando perceber se nada em mim se tinha quebrado ou partido. Mas calma. O carro estava de tal maneira que foi declarado perda total. E eu apenas intrigada com a sorte que tinha tido. Aliás, sem perceber como era possível que estivesse ali, viva, a poder dar testemunho do que tinha acontecido. Chegou um carro da polícia, saltaram de lá os polícias, queriam que eu fosse para o hospital. E eu, como que anestesiada, sem precisar de nada. Liguei a um colega e pedi que me levasse. Ele espantado. Cheguei, sentei-me à secretária e comecei a trabalhar como se nada se tivesse passado. Aliás, do que me lembro, nem quis mais saber do carro.
Tudo muito estranho.
Talvez que, quando a despedida é breve, seja assim, irreflectida e indolor. Quando tem prazo não imagino como seja.
Mas nem é bom pensar nisso. Nem sei porque falei nisto. Não vinha nada a propósito.
Respectivamente, pinturas de Dali, Magritte, Krøyer e Montferrier, obras em exposição em Paris na companhia de Khatia Buniatishvili a interpretar o Liebestraum No. 3 de Liszt
Sobre o que é mesmo relevante mais vale a gente nem fazer perguntas. Questões deveras relevantes são, por natureza, irresolúveis. Tudo o que é de dimensão terrestre, humana ou comezinha é modelizável, equacionável, de resposta ao alcance da mão. Pode a resposta até ser 'indeterminada' ou 'impossível' mas isso, em si, é uma resposta. Agora o que é intemporal, intangível e que contém a semente da eternidade (o que não é a mesma coisa que ser intemporal) está, por definição, longe do toque humano. Como aqueles espaços abertos a que dificilmente conseguimos atribuir contornos ou estabelecer definições ou funções, assim as grandes questões.
De onde viemos, para onde vamos, o que andamos aqui a fazer -- são questões dessas. Não interessam. Jamais haverá resposta para elas. Podem alguns, por vezes, achar-se ungidos por uma mão divina que lhes permite aventar hipóteses que isso não será senão um consolo, um fraco consolo como diria o senhor consultor presidencial. A própria existência é um acidente, um acaso que vingou mas que, como todos os acasos, tem um prazo de validade. Atingi-lo ou não será também fruto de infinitas e improváveis combinações de acasos. E mais do que isso pouco mais se poderá dizer.
Claro que a natureza apura a inteligência das espécies e, portanto, raciocinando em cima da milionésima derivada da coisa, talvez se possa dizer que viemos para propagar a espécie e ajudar a manter a memória -- e que cá andaremos até que o propósito esteja atingido. Mas isso será já uma inocente e vã tentativa de construção ideológica tão falível quanto inútil.
Haverá quem construa cátedras em volta de bem elaborados enunciados sobre estas questões. São questões intelectualmente estimulantes. Mas inúteis. Tão inútil quanto passar uma vida a ensinar a esquartejar textos para os esventrar do seu sentido, descarnando-as até ficarem no osso da mais pura gramática. E quem diz isso, diz a fazer desenhos artísticos em unhas. Ou a fazer construções na areia à beira de água. Tudo meritório, tudo inútil.
Ora bem, perante a arrasadora evidência que aniquila qualquer amostra de racionalidade que dê forma à nossa existência, o melhor a fazer é o mesmo que fazem todos os outros animais: sobreviver e, nos intervalos, curtir -- ou curtir e, sempre que necessário, sobreviver. Pode parecer a mesma coisa mas, uma vez mais, não é. São, aliás, duas atitudes opostas. E é nas gradações entre estes dois extremos que se encontram as diferentes atitudes perante o tremendo desafio que é a vida.
Seria pois natural que os seres humanos não fossem menos inteligentes que os seres não humanos: ou seja, que ocupassem o tempo enquanto dura a sua precária existência na curtição e, nos intervalos, a cuidarem de se manter vivos, da forma menos gravosa possível.
Claro que toda esta minha conversa revela uma de duas coisas: ou estou fora da realidade e desconheço o mundo cão em que grande parte da população sobrevive ou sou doida e julgo a humanidade à luz dos privilégios de quem disponibilidade para estar para aqui com conversas da treta. Ou talvez sejam as duas ao mesmo tempo. Mas também não vou para aqui pôr-me a questionar ou a rebater isso. Seria igualmente inútil.
Digo apenas a única coisa que tenho para mim como muito verdadeira: há uma mistura ideal, quase perfeita, entre fazer aquilo de que se gosta e sobreviver de uma maneira tão prazerosa que nos permita potenciar o tempo e a qualidade para aquilo de que verdadeiramente gostamos.
Quero eu dizer na minha que se, por exemplo, aquilo de que gostamos mesmo é de andar a fazer montinhos de pedras à beira do rio mas se, para sobrevivermos, tivermos que andar a limpar esgotos em condutas subterrâneas durante todo o dia não sobrando tempo para ir para a beira do rio fazer montinhos, então mais vale ajustar alguma coisa para que a vida não seja uma monótona e persistente frustração. Pode, por exemplo, arranjar-se uma forma de sobreviver que permita deixar tempo para ir para a beira do rio fazer os ditos montinhos ou, em vez de tudo isso, arranjar uma forma inteligente de conjugar o gosto com a forma de sobrevivência como, por exemplo, ser pastor, ocupando o tempo livre a fazer montinhos de pedra ali mesmo, na montanha.
E tudo isto, não tenho dúvidas, é conversa jogada fora. Mas fazer o quê a esta hora? É a minha forma de existir, estando na boa: escrevendo, ouvindo música, colocando aqui fotografias que fiz durante o dia colocando-me debaixo das árvores -- dois outros prazeres: fotografar e estar perto de árvores --, vendo vídeos macios e que vêm em paz. Antes, no início da noite, falei com a minha mãe, com os meus filhos, soube que os meninos estão bem. E já li. E, entretanto, trabalhei fazendo aquilo que gosto de fazer: mudar, organizar, motivar, inspirar, puxar, construir.
Um dos vídeos que hoje o YouTube tinha para me mostrar, vá lá eu saber porquê, é justamente este: Faz aquilo de que gostas e eu, com vossa licença, vou partilhá-lo convosco.
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Hoje os meus dedos não correram na direcção dos contos de natal. Como dizia ontem a outra, a mais bela:não se escolhe. Os dedos aventuraram-se por onde querem e eu limito-me a observar.
Voltei aos dias em que a literatura não me acompanha. Desde que me levanto até sair para fazer uma caminhada, agora já bem de noite, não tenho um minuto de sossego. Por vezes penso que talvez consiga descansar um pouco a seguir ao almoço, ler umas páginas. Mas não tem sido possível. Olho o calendário e todos os dias constato que está a passar a correr.
No outro dia tive uma reunião -- remota, claro -- com pessoas de duas outras empresas. Uma das empresas era aquela para a qual trabalhei até há poucos meses. Revimo-nos, perguntámos uns pelos outros, sorrimos, e um deles, o que me era mais próximo, ao referir-se a mim a um dos da outra empresa, disse que eu tinha saído de lá há cerca de um ano. Não quis interrompê-lo. A ele parece-lhe que já foi há tanto tempo? Como pode ele ter-se enganado assim? Foi no verão, há poucos meses.
Mas não posso admirar-me: no outro dia recebi a visita de um ex-colega. Contou-me coisas de lá, de outros meus ex-colegas, contou-me como se fossem coisas empolgantes com as quais eu iria vibrar. Esforcei-me por mostrar alguma coisa mas a verdade é que ouvi com absoluto desinteresse. Foi como se fossem personagens de um tempo tão remoto que eu mal recordava.
Mas, nessa tal reunião, o outro a quem o meu ex-colega se dirigia falando de mim, para surpresa de todos, incluindo minha, disse que me conhecia há cerca de vinte anos, numa outra empresa, que tinha tido três reuniões comigo, recordava-se do meu gabinete, recordava-se do que tínhamos tratado. Eu não me lembrava dele, não o reconheci. Depois, quando ele detalhou, lembrei-me, sim, que tinha tratado daquele assunto, lembrava-me da empresa para a qual ele, então, trabalhava. Mas do seu nome, do seu rosto não me lembrava nada. Mas fiz de conta que sim, que já estava a reconhecê-lo.
No outro dia, experimentei fazer um teste idêntico ao que várias pessoas da empresa tinham feito. À pergunta: 'Sobre o que conheceu no passado, reconhece mais facilmente números e acontecimentos ou rostos e nomes?'. Hesitei. Acho que não ligo muito a coisas que perdem relevância com o tempo como é o caso de números e acontecimentos. Mas depois lembrei-me que passo a vida a encontrar pessoas que vêm cumprimentar-me, dizendo-me que me conhecem muito bem e eu zero, nem ideia. Assinalei como correcta 'Números e acontecimentos'. É estranho. Mas é verdade.
O tempo passa, dizia.
Não sei o que fica do tempo que passa. Vestígios, sedimentos. De uma pessoa ficar-me-á o sorriso, a esperança, a gentileza, as palavras tão cheias de azul e de luz. De outra ficar-me-ão umas palavras ditas numa tarde enquanto olhava pela janela: falava do voo de um pássaro, fazia um movimento ondulante com a mão como se fosse um esvoaçar lento. De outra talvez um poema dito, inesperadamente, na língua de origem. De outra, os livros que me recomendou. De uma outra, num dia em que fui encontrá-lo numa sala mergulhada na penumbra, ficar-me-á o que me disse: 'Agradeço o abraço que sinto que, com as suas palavras, está a dar-me'. De um outro, um que se portava muito mal, as palavras com que se despediu, ao abraçar-me: 'Não lhe digo que se porte bem, porque se porta sempre bem'. Apontamentos soltos. De algumas pessoas guardarei a imagem do rosto, o nome, algumas palavras, o momento em que foram ditas. Poucas essas. De outras, a maioria, não guardarei nada.
[Agora que falo nisto, lembro-me: comprarei algum dia «Sobre as Falésias de Mármore» de Ernst Jünger que um dia me recomendaram? Agora que não frequento livrarias, arriscarei comprar um livro sem o ter antes nas mãos, sem lhe espreitar os interiores? Não será uma desilusão? Se ao menos pudesse ainda sentar-me ao sol do fim da tarde, a sentir o calor dourado e bom sobre a pele, para o poder ler com o coração quente. Foi há quanto tempo que me falaram neste livro? Há uns meses? Há uns anos? Nunca? Sonhei? Como o saberei?]
De algumas pessoas é isso mesmo: nada. No outro dia tive uma reunião com um conjunto de pessoas. Tudo ali me pareceu sem nexo: o tema, o ar convencido dos meus interlocutores. Uns dias depois, perguntaram-me quando é que eu poderia dar feedback. Tive que me esforçar: não apenas não recordo o nome de nenhum deles, nem a imagem do rosto e, pior, nem me lembro de que raio de feedback estão à espera. Mesmo que de forma involuntária, varro para debaixo do tapete do meu esquecimento tudo o que não me interessa. Esqueço-me imediatamente. Se sou forçada a voltar a conviver com quem não me interessa é com indisfarçável sacrifício que me sujeito a isso.
Nas conversas com a pessoa que me convidou para a presente empresa, quero traçar uma linha vermelha. Quanto sinto que ele quer mais de mim do que o que estou disposta a dar, relembro a linha vermelha. Ele fica desconfortável, muda de conversa. A linha vermelha não é nada de mais, é apenas um horizonte temporal. E eu, que vejo o tempo a passar, interrogo-me sobre como vou conseguir manter-me, firme, do lado de cá da linha que não quero transpor. E, no entanto, para o conseguir, abdico de ler, de fotografar, de me deslumbrar com as flores que, por aqui, são escandalosamente belas, de passear na praia, de ver o mar.
Já estamos no fim da semana, no fim do mês, qualquer dia no fim de um ano que se revelou miserável, um ano prenhe de más notícias, de desgostos, de problemas sem precedente. O que me ficará deste ano? Não sei. Acho que nem vou querer saber. Tomara que zero. Mas não, nem isso. Infelizmente, muito menos que isso.
Um ano de perdas, certamente.
Estou cansada e com sono, desculpem. É isso.
Fotografias de Ana Zibelnik ao som de Prélude No 4 en mi mineur, Chopin, na interpretação de Khatia Buniatishvili
Já contei, não contei? Uma vez escrevi um livro. Duzentas e tal páginas, se bem me lembro. Depois estragou-se o computador. Mas não fez mal, aquilo estava numa disquette. Depois mudou-se o programa em que aquilo tinha sido escrito. Depois perdi a disquette. E, portanto, perdi o livro. Tenho uma certa curiosidade. Pena, não. O que lá vai, lá vai. Não quero manter vivo o passado. Mas tenho curiosidade: como é que eu escrevia, quando escrevia? Melhor: quando me entretinha a escrevinhar.
Agora de uma coisa eu me lembro: ele era um pianista. Ela... ela já não me lembro. Se calhar era eu. Ou a fingir que era eu. Já não faço ideia.
A ideia de um pianista intriga-me, fascina-me. Há a inspiração, a procura pelo virtuosismo, pela compreensão e interpretação da obra, a persistência, a solidão, o prazer da leveza conquistada. Tenho ideia que muito do livro assentava nisso. Lembro-me de estar a escrever noite adentro e quase sentir a dança dos dedos do pianista sobre as teclas. Lembro-me do local em que ele ensaiava. Parecia que o via e que via o pianista lá dentro. O prazer que eu sentia ao escrever, disso lembro-me.
No meu imaginário, os pianistas são homens. Não me importava de escrever outra história em que entrasse um pianista. Não sei porquê não sinto vontade de me aventurar pela personalidade de uma pianista mulher.
E, no entanto, na actualidade, há mulheres que se destacam: são vulcões, são máquinas, são bombas, são aviões. Vê-se-lhes paixão e entrega quando se sentam ao piano. Não sou entendida pelo que não me afoito a dizer se são boas pianistas, se são exibicionistas, se são pianistas-populistas, se são simplesmente fantásticas. Nestas coisas mais complexas o máximo que consigo é dizer se gosto ou se não gosto. Diz o vídeo que aqui partilho que estas aqui abaixo são hot e, vendo as imagens, talvez seja verdade, talvez sejam mesmo as mais hot da actualidade. O corpo delas, a vibração que as percorre, as expressões faciais - tudo é extraordinário
[Será que, vendo bem as coisas, uma mulher assim daria uma boa personagem de um livro?]
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Ah, o meu dia? Bom. Passeio junto à praia, o mar bonito, lanche em família baseado em pastéis de nata e gelados, a alegria da boa companhia e dos verdadeiros afectos, telefonemas de amigos de longa data, conversas postas em dia, depois passeio no campo, com vagar e prazer, fotografias, estas que aqui têm, seguido de descanso ao ar livre antes da noite cair, quando as cigarras se aquietaram. Foi, pois, um dia sereno que nada conseguiu poluir.
Quando se tem a consciência em paz, quando se tem a convicção de que se faz é o que pensamos ser certo, quando o nosso coração e a nossa cabeça andam de mãos dadas, mesmo que enfrentemos incompreensões e cegueiras nada abalará a nossa convicção e tranquilidade.
Não sou dada a balanços, mas sou dada a determinações. De vez em quando há uma força que vem não sei de onde que me leva a tomar decisões que me levam, inabalavelmente, para outros caminhos ou a tomar irrevogavelmente certas decisões. Já lá vai o tempo em que, por tibieza ou por acreditar que há coisas que se compõem com o tempo, eu aceitava conviver com situações que não me agradavam. Fazia fretes, fazia de conta que estava tudo bem, temia ferir susceptibilidades, temia enfrentar situações desconfortáveis, consumia-me por dentro. Agora já não. A vida é curta e nós vamos vendo como ela se vai encurtando. Não podemos desperdiçá-la com o que não interessa.
Talvez esteja a atingir aquele fantástico patamar em que impera a mais absoluta franqueza. Com a sabedoria que têm, com a impaciência de quem sabe que a vida não vai durar para sempre, os velhos dizem o que pensam. Sempre admirei isso. Na volta é lá que estou quase a chegar. E, no dia de hoje e para os que se seguirão, foi esse o propósito que me animou. Lutar pelo que penso ser o melhor para mim e, sobretudo, sobretudo, para os que amo. E seguir. Por um caminho que, a cada dia, se vai encurtando, vou em frente. Chegará o dia em que talvez faça, então, o balanço final mas, se me der para isso, espero que a conclusão seja qualquer coisa como isto:
A companhia está boa, 'tá-se bem mas está na hora de ir pregar para outra freguesia. Fui.
Tirando isso, o que tenho a dizer é que -- alegria!, alegria! -- tenho um livro novo e estou cheia de vontade de o desbravar. E o tempo vai quente, so, so hot, apetece a gente mergulhar na noite, ir em busca da frescura que vem da terra, procurar o abrigo das grutas e a companhia dos bichos, dos bichos que adivinho serem brothers in nature.
Hoje vou vencer a preguiça e vou buscar umas fotografias que fiz. Ainda não as vi mas acredito que algumas se haverão de aproveitar.
[Pronto. Já fui. E, como podem ver, já para aqui começaram primaverilmente a saltar].
Até me custa a abrir as mãos, doridas que estão tanto o trabalho de desbastar árvores. O meu marido diz que com a mesma convicção com que antes queria poupá-las, agora convictamente quero vê-las levantadas até onde faça sentido fazê-lo. Diz que já chega e eu descubro sempre alguma que precisa de intervenção. Explico que é o efeito da consciencialização. Ter árvores frondosas e respeitar a natureza era um paradigma que me parecia sagrado. Agora a minha cabeça mudou. E o facto é que se a paisagem mudou, eu acho que mudou para melhor. Há alguns pinheiros mansos, inocentes, que ainda me custa ver, habituada que estava a copas fartas, rodadas, alegremente pegadas umas às outras. Agora, para as afastar, as copas foram escadeadas, aparadas, desbastadas e, muito francamente, ainda não estou certa que faça sentido fazer isto. Mas, enfim, pode ser que razões de segurança se sobreponham a razões estéticas e, portanto, paciência, já está.
Mas, de resto, todo o espaço me parece agora mais luminoso, os pássaros cantando mais acima mas mais apurados no trinado, o pulmão mais solto, a voz mais franca. E se o pulmão neste caso não se aplica pois que fique pela metáfora que o entusiasmo dos pássaros bem o justifica.
Tenho agora visto muitas rolas. Andam por lá, cores suaves, rosado, platina e pérola, requintadas habitantes de um espaço tão rural.
Vimos dois gatos. Um preto e branco, mais esquivo e o cor de mel que se instala como se fosse o dono do pedaço. Usa, até, de poses senhoriais. Olha-nos, orgulhoso. E eu acho muito bem.
E, por falar em animais, aconteceu uma coisa. Estava eu a arrastar as pernadas de aroeira, uma aroeira gigante que não pára de crescer e de lançar pernadas junto a uma das escadas de pedra, enquanto o meu marido as serrava, quando apareceram dois cãezinhos vindos de uma outras propriedade. O me marido é que os viu: 'Olha! O que é que andam aqui a fazer?'. Os cães deram ao rabo e foram atrás de mim. Eu a arrastar os ramos e eles atrás. Até pensei que pareciam os meninos das alianças atrás da cauda da noiva. Quando voltei, vinha o meu marido com mais ramos e vimo-los muito aplicados com qualquer coisa no chão, um bocado lá mais ao fundo. O meu marido disse: 'Viste ali alguma coisa? Os gajos estão a comer alguma coisa'. Não, não fazia ideia. E ele também não. A verdade é que estavam os dois a comer e, no fim, lamberam os beiços. E, assim como vieram, assim se foram. Fui ver se descobria o que tinha sido e nem vestígio de nada. Se não tivéssemos visto os cães a banquetearem-se não saberíamos de nada. Eu passei ali antes e depois e não vi nada.
Mas, dizia eu, a paisagem mudou. Agora da sala consegue-se ver ao longe, até a parte de cima e o telhado da capela se vê. Pelo meio havia arbustos, havia árvores frondosas. Agora há uma profundidade de campo que me agrada. Do lado de lá é a serra. Dantes tinha que ir para alguns lugares mais altos para a ver, majestosa, a guardar o horizonte. Agora não, agora daquele lado está ao alcance do olhar a quase toda a volta. Muda de cor ao longo do dia mas é ao fim do dia, quando se funde no azul que desce do céu, que eu mais gosto de vê-la.
Não tenho conseguido ler. Ao fim de semana tem sido impossível. Também pouco tenho pegado nos tapetes, quer no que estou a fazer in heaven, quer aqui, na cidade.
Hoje, a minha filha avisou-me que iam passar a tarde a casa do irmão, que os miúdos iam jogar à bola no relvado, mas que não queria vir tarde de lá. Disse-lhe que não dava, que ainda ia a casa dos avós. E foi. Só chegámos aqui a casa lá para as oito e meia da noite e ainda com sopa para fazer, coisas para arrumar. E esta noite nem foi das mais trabalhosas porque trouxe entrecosto já feito de lá e já tinha feito uma máquina de roupa na sexta à noite. Mas estou aqui a estou a pensar que ainda temos que arranjar a salamandra e que temos que pintar o tecto no sítio para onde o foi o fumo quando o tubo se soltou, que ainda temos que ver como desbastar uma pernada muito alta de uma azinheira que está já muito perto do telhado do estúdio, que temos que insistir com o senhor que já era para ter ido há mais de um ano arranjar uns canteiros que estão a dar de si e nunca mais vai.
E esta semana vou ter reuniões e trabalho que não acaba mas agora nem me apetece pensar nisso, parece-me coisa secundária.
Quase não tenho visto televisão. Sei que há uma tempestade, um ciclone, penso, em Moçambique e vi imagens que me deixam de coração partido. Nestas alturas em que a natureza mostra a sua força indómita percebe-se quão frágeis são os homens, em especial os mais pobres. E vi imagens de Paris. Feridas abertas no coração de França. Vandalismo total. Alguma coisa está ali a falhar. Li qualquer coisa sobre fake news a invadirem as redes sociais francesas, boatos e falsidades provenientes da Rússia. A democracia demonstra ser frágil perante a força imensa da maldade.
E agora, enquanto escrevo, ouço na RTP 2 uma professora universitária a falar dos riscos reais da cibersegurança. Temas que mostram como é fácil o mundo perder o controlo face a ameaças que nascem do uso desregulado das tecnologias.
Mas não é agora o momento para falar sobre isso. Estou cansada, uma nova semana está a começar e ainda quero tentar responder aos comentários.
A todos desejo uma boa semana a começar já por esta segunda-feira
Ontem ao fim da tarde, acabei o trabalho que fiz no olival do meu melhor amigo. As oliveiras podadas (arreadas ou arriadas como aqui se diz) deu um outro aspecto à terra. De cuidado, de zelo. Ficámos ali um pouco a olhar aquilo, o perfil da serra ao fundo, o cheiro de ervas aromáticas trazido no vento, e dá gosto ver as coisas cuidadas.
O nosso vizinho da ponta da estrada tem cavalos, burros, vacas, ovelhas. Se calhar também galinhas. E tem oliveiras. E talvez tenha outros cultivos. Ali a seguir ao verão, creio, quando calha ter algum assunto para trocar connosco, inevitavelmente vemo-lo com pressa e diz que vai para a azeitona. Nessas alturas essa é a sua prioridade. Este ano o filho veio ajudá-lo. No outro dia o meu marido perguntou-lhe se o ano tinha sido bom, se tinha dado muita azeitona e, para meu espanto, ele converteu a colheita em litros de azeite. Pensávamos que ele venderia as azeitonas à cooperativa mas, afinal, contou que não, que deixa lá a azeitona e que depois vai buscar o azeite. Contou que não há produtos químicos, que é tudo puro. O meu marido perguntou se tinha para vender. Eu estava receosa, receei que saísse dali um azeite escuro, ácido, mal saboroso. Ele descansou-me, que era bom, pouco ácido mas que podíamos levar um garrafão para vermos se gostávamos. Trouxémos. Bom. Claro, parece ouro líquido, bom, macio. Já lhe pagámos. demos uma garrafa à minha filha, outra ao meu filho e o que ficou para nós quase se acabou. Fiquei mesmo impressionada. Quem diria? aquele vizinho é cheio de surpresas.
Do nosso terreno avistamos um belo olival na parte descendente do vale. Olho-o com gosto. Tão bonito. Se calhar é o dele. Também na estrada a caminho de lá passamos por vários outros olivais. As oliveiras muito bem cuidadas, em corredores muito alinhados, todas bem tosquiadas, a terra limpinha por baixo. Olho-as com admiração: há ali uma amostra de um mundo organizado e limpo.
Aqui in heaven nada é assim, aqui tudo cresce onde lhe apetece. Temos oliveiras. Têm nascido. Desengonçadas umas, desempoeiradas outras. Vamos podando, mas tal como podamos as outras árvores, sem técnica, sem conhecimento de preceitos, apenas para que fiquem mais arejadas. São bravias, se calhar vieram de outras paragens. As copas misturam-se com aroeiras, com azinheiras. Namoram umas com as outras em plena liberdade.
Para nossa surpresa algumas já dão azeitonas. São azeitonas pequenas, com caroços grandes. Não as apanhamos porque não saberíamos o que fazer-lhes. Já nos explicaram mas não sei, não levo muita fé, não sei se azeitonas nascidas de árvores selvagens serão boas. De certa forma, parece-me até quase um sacrilégio, não sei se elas dão frutos apenas para seu próprio prazer, não sei se faria sentido apanharmo-los sem os sabermos tratar com dignidade.
Gosto muito delas, das oliveiras. São árvores de folhinha bem definida, clarinhas, brilham ao sol, as ramagens tèm uma densidade que deixa passar a luz, ficam prateadas.
Não olho para elas como uma fonte de rendimento mas como umas árvores bonitas. Existem pela gosto e graça de existirem. São umas diletantes. Como eu. Não sei se uma mão profissional poderia fazer alguma coisa delas. Nem sei se umas dez oliveiras dariam alguma coisa que se veja. Ou se deveriam ser enxertadas. Não faço ideia. Por enquanto existem apenas, leves, sedutoras, úteis apenas por serem belas.
Hoje, enquanto andava à procura delas para as fotografar descobri mais uns três ou quatro pés, ainda frágeis, troncos finos, todas vergadas, a quererem evidenciar-se no meio do alecrim, talvez a quererem ombrear com os cedros. Não sei se vingarão, se calhar sim, como todas as outras. Também não sei se um dia se tornarão úteis ou se se manterão assim, turistas acidentais, diletantes. Não sei. As árvores aqui têm vontade própria, elas saberão qual o seu melhor destino.
Temo que, ver estas minhas oliveiras assim, neste aparente (e real?) caos, deve ser um desconsolo para si, Soliplass. Mas não me recrimine: não é falta de cuidado, acredite. É apenas a minha peculliar forma de gostar delas. Talvez um dia eu saiba tornar-me aquilo que gostava de ser, uma verdadeira camponesa mas, por agora, não passo disto, uma diletante meio maluca...
Isto dos signos é aquela coisa cuja defesa não abona a meu favor. Mas eu não defendo, só espreito. E sou racional: penso que há milhões de caranguejos, incluindo os que se comem (bem, dependendo da interpretação, todos se comem -- mas isso agora não vem ao caso) e nem todos hão-de ser iguais a mim pelo que não pode ser que estas coisas dos horóscopos batam certo para toda a gente. Mas o meu lado racional tem momentos. Ou seja, volta e meio questiono-me -- mas na volta e meia em sentido contrário estou-me nas tintas para raciocinar e acho graça a qualquer parvoíce. No outro dia, uma pessoa dizia-me: exponha o que tem a dizer sem emotividades, use apenas o seu lado racional. Isto porque eu estava destemperada, a disparatar por tudo o que era canto e esquina, sem poupar vivalma, disposta a pisar a pés juntos a linha mais vermelha de todas as linhas vermelhas. Ouvi aquilo e fiquei cheia de vontade de rir: então uma pessoa desbocar-se à cara podre é sinónimo de ser irracional? Emotivazinha? Adiante.
Bem. Dizem os oráculos que há que atender que os Caranguejos são assim:
Você adora ficar enroscado em casa, no seu interior reconfortante. Sua criatividade é inerente à sua personalidade e você não pode imaginar uma vida sem arte, cultura ou criatividade. Você precisa de se revigorar num local de aconchego com materiais envolventes.
E, assim sendo, são estes os presentes de sonho: uma aula de ioga, uma assinatura cultural, uma jóia de talismã que a proteja da agressão externa, um perfume que lembre a infância, uma vela, uma manta.
E isto tem graça porquê? Pois bem. Tenho paixão por mantinhas. Há sempre uma mantinha para um just in case. No outro dia quando a minha filha aqui esteve à noite com os meninos, pediram logo uma mantinha. Fui buscar uma ultra macia, quentinha. Adoraram. Há nos sofás, há perto da salamandra, há na cama. E, por onde passo, quando ando às compras, se vejo uma, logo vou passar a mão para sentir o toque. Se vou com o meu marido, puxa-me logo pelo braço: chega de mantas. Mas o ano passado viu-me tão encantada por uma ultra leve, ultra macia, de um veludo quase intangível em verde turquesa, que se deve ter sentido arrependido de não me deixar trazer e, então, voltou lá e surpreendeu-me completamente no natal. Quando abri o saco e vi aquela maravilha até me comovi.
E velas. Agora parei por já não ter onde colocá-las. Tenho vários castiçais, várias velas, de vários tamanhos, de várias cores. E aqui ao meu lado tenha aquela grande de que gosto tanto e que foi presente do meu filho: 'Under a fig tree'. Nem a acendo para não a gastar. Gosto de fazer render aquilo de que gosto. (Será que isto significa que, na volta, tenho em mim, oculto mas bem vivo, o meu lado conservador?)
E perfumes. Aquela minha demanda por um que seja pura essência de violeta como aquele que, quando era miúda, ofereci à minha mãe? De vez em quando, entro numa perfumaria e, se vejo cara nova a atender, tento: 'tem algum perfume baseado na essência de violeta?'. Nunca têm. Mas não sou esquisita. À falta de melhor, qualquer Chanelito me serve. Este nº 5 em edição natalícia, o frasco perigosamente vermelho, é uma tentação escandalosa. O pior é o preço. E aí o meu lado racional fala mais alto. Mas a verdade é que este frasco que já de si é tão sobriamente elegante, agora em rouge, parece que chama por mim. Que querem? Tenho este meu lado feminino, coquette, fraca, sempre tentada a ceder às tentações.
Jóias que sirvam de talismã, todas. Aliás: jóias, todas, sirvam ou não de talismã. Não ando sem uns fiozinhos, sem um brilhante como piercing, sem colares, pulseiras, brincos. Discretos. Não forçosamente tudo ao mesmo tempo. Ou indiscretos. Jóias verdadeiras ou de meia dúzia de euros. Tudo serve.
Ioga é sabido que ando com essa curiosidade. Não fosse aquilo de uma pessoa estar sossegada a fazer posições e já estaria mais convencida. Mas é coisa que vem trabalhando na minha cabecinha.
E assinatura cultural claro que sim. Mas enquanto andar nesta minha vida de escravatura não dá. Mas não vejo a hora. Ainda hoje, ao fazer a nossa caminhada, viémos a falar nisso. Bem. Não exactamente. Eu disse: 'Quando tiver o tempo por minha conta vou aprender a tocar piano'. Ele disse: 'Acho bem, era só mesmo isso que te faltava'. Gozão. Mas afinei a ideia: 'Melhor: violino. Mais fácil de ter em casa para praticar'. Ele disse: 'Isso. Devia ter graça'. Acrescentei: 'E tu também'. Disse uma brejeirice que não posso aqui transcrever. Não é dado a cenas artísticas, é escusado. E eu só para ouvir. Tocar nem pensar. Se fosse uma pessoa dada à erudição iria aprender grego (mas do clássico) e piano. Haveriam de me ver depois, tal e qualzinha a Khatia Buniatishvili a tocar uma valsinha de Chopin.