segunda-feira, outubro 31, 2022

Segredo para um coração feliz

 


As romãs estão grandes, pesadas. Tenho que as ir apanhando apesar de a casca ainda não estar bem tingida. Como estão tão grandes e pesadas, a casca de algumas abre e vão caindo bagos. Outras tombam e rebentam na queda. Mas já estão boas. Levei outra vez à minha mãe. Disse que ia dar uma grande ao meu tio. Fui agora pesar uma delas para não escrever aqui uma coisa fora da realidade. Pesava 538gr. 

De manhã, ao pequeno-almoço, junto bagos ao abacate, ao muesli e ao kefir. Ao almoço ou o jantar junto bagos à salada. Gosto bastante. Dão frescura e crocância. Comer só romã não tem muita graça, acho. Mas misturada é uma bela mais-valia.

As laranjas também vão caindo. Ainda pouco maduras, impossíveis de aproveitar. A casca também abre e caem deixando os gomos desfeitos no chão. Se calhar estão desabituadas de tanta água da chuva.

Com as limas a mesma coisa mas caem intactas. Uso-as para fazer chá e para temperar em vez do limão. Gosto muito de limas, são sumarentas, cítricas e com um toque a canela.

O jardim está muito verde, viçoso, húmido, e todos os dias temos que ir à socapa inspeccionar a aparição de mais cogumelos. Rebentam e crescem de um dia para outro. Há-os brancos, pequenos, pé filamentar, alguns mal se vêem, parecem pintinhas brancas, mas também os há castanhos, grandes, gordos. E há uns muito dissimulados, espessos como madeira, colados aos troncos. Temos sempre medo que o cãobeludo lhes chame um figo e não fazemos ideia do efeito que produziriam.

E hoje à tarde finalmente pusemos umas novas iluminações solares que, no outro dia, comprei. 

Uma é uma grinalda com bolas brancas de papel que, quando se iluminam, ficam com uma cor quente, bonita. A outra é um projector com sensor. E a terceira, a mais controversa, é uma fita daquelas que se ilumina em pontinhos corridos. 

O meu marido, se, em geral, tende a ter mente aberta, nestas coisas é assaz conservador. Conservador e minimalista. Isto de eu querer ter grinaldas ou fitas luminosas no jardim tira-o do sério. A mim não. Sou toda a favor de energias renováveis; e ter luzinhas que se acendem à noite depois de terem acumulado energia durante o dia parece-me muito bem. Acabei eu por colocar quase sozinha a grinalda e a fita pois ele teme que o jardim fique a dar-se ares de natal. Não gosta, é avesso a excessos, a pimpineirices, a gracinhas. Não gosta nada. Sobriedade é o seu nome do meio. Como não adoptei para mim nenhum dos seus nomes, sobriedade comigo não consta. Pelo menos, nestas coisas.

A grinalda ficou junto à vedação no terraço da cozinha. Assim há sempre luz. E acho que até fica com um ar bem bonito e acolhedor. O projector foi pacífico, ficou a apontar para a porta lateral e foi ele que o pôs.  O que deu luta mais a sério foi a fita das luzinhas. Quando comprei, pensei que fossem luzinhas brancas e só quando cheguei a casa é que, vendo a embalagem, fiquei na dúvida se não serão luzinhas às cores. Resolvi ir trocar. Ele disse que não era preciso, que se poriam pelo natal. Mas eu acho que não, se não é para trocar, vamos esperar pelo natal porquê? No corredor lateral que dá acesso ao jardim das traseiras, perto da porta do lado, achei que se poderia colocar no muro, entre floreiras suspensas. Creio que nem se vê da rua. Nem assim ele queria pôr. Pus eu. Consideremos que está ali a título experimental. Se se vir da rua e for feio, retiro e logo se vê. Mas agora quero ver como fica. As outras, entretanto, já estão acesas. Presumo que o botão da fita não ficou ligado. Amanhã tratarei disso.

Tenho ainda a reportar que enquanto dava atenção ao francês que a minha menina linda estava a praticar, o mais novo foi para o meu computador. Disse que ia jogar ou ver vídeos. Deixei, claro. Passado um bocado vi-o a teclar furiosamente. Perguntei o que estava a fazer. A irmã disse: 'está a ver se descobre o teu código de acesso'. Fui ver. O teclado bloqueado. Tanto para mexeu e carregou que o teclado bloqueou, não tugia nem mugia. E foi ela, sozinha, que resolveu tudo. Apenas fui solicitada para escrever a password de desbloqueio de ecrã no teclado virtual que ela invocou, indo depois às definições de teclado.

Gera-se sempre uma tal dinâmica que cada um chama e mexe para seu lado. Quando damos por ela já fizeram das suas. O meu marido diz: deixa-los mexer em tudo, fazem o que querem, por isso não te admires. O mais novo, então, é exímio em deixar-nos às escuras. Já por duas vezes nos deixou sem conseguir ver televisão tal a jardinagem que fez nos comandos da box ou da televisão.

Em contrapartida, a irmã está cada vez mais decidida: ela põe a mesa, ela serve os pratos, ela arranja a comida ao irmão mais novo e, no fim, quer ser ela a lavar a louça. E lava tudo com rapidez e perícia, mesmo tachos e frigideiras. E acelera-me para eu ir limpando e arrumando ao ritmo a que ela lava. Ao lanche também quis ser ela a tratar de tudo e, quando resolveram querer ovos mexidos, quis ser ela a fazê-los. Batidos com água, conforme aprendeu com o pai.

Pelo meio, houve pinturas de halloween e não apenas fui a pintora como eu própria acabei com cara de bruxa. Os trabalhos de casa que eram para ser feitos e o estudo que era para ter acontecido ficaram um pouco comprometidos, claro. Não consigo arranjar determinação para os forçar ao que quer que seja. Já dei para esse peditório. Agora é a vez dos pais deles.

E este domingo de manhã, aproveitando a aberta do bom tempo, fomos passear e apanhar sol para a beira-mar com a minha mãe. Muita gente, muita vida. As pessoas começam a curtir o ar livre. Adoro isso. E a minha mãe, toda jovem e fresca, lesta na passada, conversadora e animada, também gosta.

Há bocado, ao fim da tarde, já hora nova, fui para o terraço onde habitualmente nos juntamos para tomar as refeições ao ar livre ou conversar. Fui ver anoitecer, ver as luzinhas solares (que ali estão desde o verão e que, na altura, também deram bastante luta) começarem a iluminar o espaço. Estava sozinha com o computador a ver se via o The Good Doctor. Mas distraí-me e não vi. Fiquei-me pela contemplação do momento. Um pássaro passou por ali. Silêncio. Anoiteceu. Soube-me tão bem estar ali, uma tranquilidade total. Pensei que me sinto bem, que os meus se sentem bem -- e que não peço muito mais que isso. Pensei também que, se um dia me der para tentar meditar, naquele momento em que é suposto pensarmos em situações ou lugares aprazíveis, vou pensar em instantes assim, instantes de serenidade e paz.


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Tenho pena que o vídeo abaixo não tenha legendas em português. A experiência de vida de Lize Venter é impressionante e um exemplo. Depois de uma infância marcada por um sofrimento obscuro, violada por um irmão mais velho, eis que agora consegue o apaziguamento que lhe permite ter o coração feliz. Muito bonito.

Secret to a happy heart - Finding Wonderland

Trigger Warning - This film contains reference to sexual abuse, which may be triggering for some viewers.  If you have been affected by a similar issue and you need someone to talk to, please reach out to an organisation or individual near you for help.  Take care.

“The secret is to surround yourself with people who make your heart smile. It’s then, only then, that you’ll find Wonderland”

Our relationships teach us about so much more than the hearts of the ones we love - they teach us about ourselves.  Relationships show us how to love and be loved, as well as who we want to be in life and who we don't. 

Surround yourself with those who bring out the best in you. The ones who not only want to see you smile but also try to make you smile when you’re down. The ones who try to make your day brighter. The ones who know your value and your worth and remind you of it. The ones who help you bloom.

And have the courage to be a good friend to those who choose you.


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Nesta noite de eleições brasileiras, as imagens são pinturas de Tarsila do Amaral e vêm ao som de Choro N° 1 (Heitor Villa-Lobos) pelas mãos de Turibio Santos

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Nota: Obviamente ficaria angustiada, desgostosa e preocupada se ganhasse o troglodita do Bolsonaro. É um Trump em versão ainda mais abestalhada e ainda mais ignorantão. Uma calamidade para o Brasil e para a humanidade. Foi, pois, com alívio que vi que foi derrotado. Que não volte. Que não faça estragos nem alimente ódios agora que se foi.

Mas tenho que ser sincera: não fico especialmente feliz com a vitória de Lula. Acho que o Brasil mereceria melhor. Não percebo como um país tão grande, tão incrível e diverso como o Brasil não consegue melhor do que um Lula para se posicionar contra o obscurantismo populista, violento, grosseiro e perigoso de um Bolsonaro. 

Mas, enfim, é o que é. 

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Uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Serenidade. Felicidade. Paz.

domingo, outubro 30, 2022

Madonna -- chorar ou rir?

 


Em certas matérias, não sou muito destas coisas de tipo 'desta água não beberei'. Sei lá se bererei, se não beberei.

Por exemplo, nunca me passou pela cabeça fazer-me operar para me tirarem uns anos de cima, para me injectarem para ficar sem rugas ou sinais de peso da gravidade, para me aumentarem os seios, para me levantarem e insuflarem as nádegas, para me deixarem sem um grama de gordura na barriga. Se puder evitar anestesias, evito, e se puder evitar que me cortem, injectem ou me mexam debaixo da pele evito.

E só o medo de, depois, ao porem-me um espelho à frente da cara ou à frente do corpo e eu me achar disforme, desconhecida, assustadora... Bolas, medo... Nem pensar... Ou seja, até ver, não é daquelas que me ocorra arriscar.

No entanto, não posso jurar a pés juntos que tal nunca me ocorrerá. É improvável mas, creio, não impossível. Sei lá se um dia não me dá uma qualquer travadinha e não acho que está na altura de deixar de parecer velha, muito distante da jovem que sinto em mim... Sei lá se não me dá uma pancada e não acordo com vontade de parecer uma gatinha de vinte anos... Miau, miau. Ou igual à Kardashian...?

De vez em quando vejo mulheres que acho espantosamente bem 'mantidas', todas jovens e jeitosas e, depois, venho a saber que já se fizeram ajeitar várias vezes. E, portanto, mesmo que mantenha os cinco alqueires bem medidos, sei lá se um dia destes não me parecerá que faz sentido desde que tenha a garantia de coisa bem feita, subtil, indolor e pouco arriscada.

Mas, se um dia me der para isso, não posso ter presentes os casos que se encontram no extremo oposto: pessoas que se ajeitam tanto, se puxam e repuxam tanto, se insuflam tanto, se modificam de tal forma que se tornam uma caricatura de si próprias -- porque, se vou com essas imagens em mente, é certo e sabido que, de imediato, arrepiarei caminho.


Madonna é um desses casos. De dia para dia aparece com a pele mais lisa, os lábios mais intumescidos, toda ela esticada e repuxada, as mamas cada vez maiores, mais redondas, as sobrancelhas subidas, as maçãs do rosto salientes. E depois, nos vídeos, aparece com cinturinha de vespa. Mas, quando é apanhada à má fila, as imagens mostram-na com pneus, quase normal. Por isso, já nem se percebe se ela própria se tornou uma ficção ou se são os vídeos que estão ficcionados.


Agora um vídeo seu tornou-se viral: de cabelos encarniçados, como agora anda, dedos gordos e unhas improváveis, aparece a inalar um frasco com o que parece ser um medicamento e que ouço referir por poppers e depois parece que fica eufórica, meio passada. Uma coisa estranha. E tem um dente à frente com uma capa escura. Frequentemente com raízes pretas, agora com um dente que parece podre, comportamentos incomuns... eu não sei o que se passa com esta mulher, não sei mesmo. 

Está a envelhecer mal, está estranha. Tem 64 anos mas olha-se para ela e não se consegue concluir se é nova, se é velha ou se é simplesmente estranha. Mas bonita, acho eu, não está.


Não sei se Madonna é feliz ou se anda perdida e, por isso, olho para ela e não sinto vontade de rir. 

Mas a interlocutora dela no vídeo, uma tal Terri Joe, desata-se a rir. E ri de uma forma também muito peculiar. E tão peculiar que me parece oportuno partilhar um vídeo que a minha filha me enviou. Com cada um... 

Pessoas com risos estranhos


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Um belo dia de domingo
Saúde. Boa disposição. Paz.

sábado, outubro 29, 2022

Shocking!

 



Esta sexta-feira foi quase o esfolar do rabo de Outubro. Vai mudar a hora, o que não é bom, mas parece que, felizmente, vai vir chuva a valer, e isso é bom. Mas o dia, em si, para mim, veio carregado de complicações, telefonemas pouco animadores, enrolos. Aliás, ainda dormia o sono dos justos e já o telefone buzinava. Acordar para ser de imediato informada de pepinos ou para atirarem macacos para o meu colo é coisa sem a qual passaria muito bem. E muitas indefinições. Gosto de coisas claras, actividades bem definidas, prazos que possam ser controlados. A nível profissional não gosto de me mover em geometrias variáveis cujos vectores não controlo. Não saber quando me vou ver livre de uma determinada actividade que julguei que, a esta hora, já estivesse mais que concluída, chateia-me. E, quando tento perceber em que param as modas, apercebo-me do mesmo de sempre: não é possível fixar datas com objectividade. Por mais que tente, está fora do meu alcance. Tenho que adaptar o meu corpo e a minha mente a isto de me deixar ir. Mas não me é fácil, ensarilham-se-me os neurónios.

Para acabar em beleza, dentista. E nem foi que o tratamento tivesse custado muito. Mas o pagamento custou. Dantes ia-se ao dentista e o dentista observava, brocava, anestesiava, desvitalizava, fazia o acabamento -- e estava feito. Agora um espreita, outro abre, outro desentope o canal, outro tapa e, no fim de várias sessões da treta, por causa de um não-problema da treta, largamos centenas de euros. Protestei que me fartei mas o protesto não aplacou o meu desagrado. O progresso, de vez em quando, perde-se no seu rumo, descamba, atropela-nos. Não gosto disso.

Ao fim do dia fomos passear para a praia. Dentro de dois dias, àquela hora será noite cerrada. Aliás, na volta da caminhada já era noite. Gosto. Cheira a maresia, é bonito. Mas estava cansada, sem grande vontade. O meu marido é que quis. Diz que é melhor para passear o urso, que gasta mais energias. Sei lá se é. 

O que sei é que estou francamente cansada. Há bocado, estava a dar o Master Chef Australia, um dos meus programas preferidos, adormeci profundamente. Creio que coisa de escassos minutos mas profunda, a pique. Vi-me grega para acordar. E, depois de acordada, fiquei a olhar para a televisão e para o computador, numa lentidão adormecida, entorpecida.

Nenhuma notícia me suscitou atenção a não ser a da exposição sobre o trabalho inovador e excêntrico da inspirada Elsa Schiaparelli (nascida em 1890 e morta em 1973). 

Não ando numa de viajar mas, se andasse, era moça para dar uma saltada a ver a exposição Shocking! Les mondes surréalistes d'Elsa Schiaparelli no Musée des Arts Décoratifs de Paris. 

A audácia quando anda de mãos dadas com a criatividade e com a inteligência fascinam-me. E isto de a moda inspirada na fantástica obra de Schiaparelli estar a renascer, exuberante e belíssima, através de mãos que sabem reinterpretar o espírito original e dar-lhe novo corpo parece-me daqueles milagres de ressurreição que devem ser colocados num altar. 

E que as mãos que produzem tal fascinante milagre sejam de um americano, Daniel Roseberry, ainda mais extraordinário me parece. Das suas mãos nasce a irreverência e a arte colorida com que, em tempos, Elsa Schiaparelli sonhou para surpreendeu os que assistiam à sua intrépida arte avant-garde.


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Shocking! The Surreal World of Elsa Schiaparelli

Since the founding of her namesake Maison, Elsa Schiaparelli (1890-1973) remains an iconic figure for our times. This exhibition retraces her life and the legacy of her avant-garde work, her incredible freedom, her fascination with art and her groundbreaking collaborations with artists such as Jean Cocteau, Salvador Dalí, Man Ray, Alberto Giacometti and Marcel Vertès…

Está também em vias de divulgação o documentário «Shocking Schiaparelli» que vai contar a vida desta mulher que conviveu com os surrealistas, que soube transportar a fantasia para as suas criações, que não temeu o excesso.

E, embora com um ano de desfasamento, não quero deixar de aqui incluir o fantástico desfile de outono/inverno 21/22. É tudo delirantemente belo, esfuziantemente excessivo, loucamente exuberante. Um festim.

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A acompanhar-nos, agora que se foi, Jerry Lee Lewis com o sempre fantástico Great Balls Of Fire! 

Nota: o nome da Exposição e do Documentário vem do nome do perfume de Schiaparelli: Schocking

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Um bom sábado

Saúde. Bom descanso. Paz.

sexta-feira, outubro 28, 2022

As casas (ainda tão cheias de vida) de Jorge Amado
-- e memória de outras casas

 


Gosto de ver casas. Gosto de casas. O meu signo é caracterizado, entre outras coisas, por gostar de casas (e por gostar de estar em casa). Algumas das minhas memórias infantis prendem-se com casas.

Lembro-me da casa da mãe do meu melhor amigo, a nossa modista da altura. Trabalhava no que lembro como uma espécie de marquise mas que talvez fosse um anexo pois, para além do atelier propriamente dito, creio que tinha uma pequena cozinha e uma casa de banho. Lembro-me do que ela e a minha mãe conversavam. Eram da mesma idade, amigas. Conversavam muito, tenho ideia que trocavam confidências. Mas a casa propriamente dita era do outro lado do terraço e lembro-me que se abria uma porta cá em baixo mas que costumávamos subir até a um primeiro andar. E tenho ideia que estava sempre praticamente às escuras. Era uma casa triste, silenciosa, com móveis escuros. O meu amigo sempre foi muito reservado e a mãe também o era. 

Lembro-me da casa de um colega da infantil, uma moradia ampla, luminosa. Era uma casa térrea, que tinha portas de vidro por todo o lado e que estavam sempre abertas de par em par, deixando entrar o sol. Tenho ideia de que os móveis eram de madeira clara e que os sofás estavam estofados com tecido floral, colorido, diferente do que eu conhecia. Esse meu colega tinha vários irmãos, um grupinho ruidoso e alegre a quem os pais deixavam fazer o que quisessem. Gostava imenso de lá estar. A casa deles fazia parte de um conjunto de moradias idênticas, algumas habitadas por nórdicos, altos, muito louros, cujas casas eram também claras e luminosas.

Também me lembro da casa de uma amiga, essa já nós no liceu, de que já aqui falei. Era o último andar de um prédio grande. Eles tinham todos os apartamentos desse piso. Aliás, o pai tinha sido o construtor desse prédio cuja base era a sede da sua empresa. Os apartamentos desse último piso estavam unidos entre si o que fazia com que a casa fosse muito grande. Cada divisão tinha uma campainha. Na cozinha -- que não era só cozinha mas quase um apartamento com a cozinha propriamente dita, que era enorme, mais lavandaria, copa e um balcão com bancos altos -- havia um painel com números e onde se ouvia tocar a chamar. Nessa cozinha havia sempre duas empregadas fardadas a rigor. E eram essas empregadas que tomavam conta da casa. A mãe ou estava lá numa grande sala vedada às crianças ou tinha saído. Se o pai por lá passava cumprimentava-nos com alguma breve simpatia. A minha amiga tinha um quarto enorme que era uma suite e tinha uma zona que antes era para brincar e que se tinha transformado em zona de estudo. Os pais iam várias vezes por ano a Londres fazer compras. De lá traziam roupas para os filhos, brinquedos, estojos, forras para cadernos e livros, canetas, adereços para os cabelos dela, tudo colorido e moderno, completamente diferente da monotonia baça existente, à data, no nosso país. Estar em casa dela era como ir a um parque de diversões, tudo tão diferente da minha casa e das casasque eu conhecia. Tinha havido uma tragédia na família dela e, por isso, a mãe se fechava tanto. Mais tarde, já eu era casada e com filhos, soube de uma nova tragédia na família. Há famílias que parece que estão predestinadas à tragédia e isso é demasiado triste. Quando me lembro dessa casa, recordo-a à luz dessas tragédias.

Uma outra casa e da qual também já aqui falei era um solar de uma quinta não muito longe da minha casa. A mãe da minha amiga era deputada e de vez em quando víamo-la chegar ou partir num carro grande com motorista. Do pai não me lembro. A minha amiga era uma de uma meia dúzia de irmãos. Ela e as irmãs usavam tranças. Dos irmãos não me lembro bem, eram rapazes independentes. Estavam todos, eles e elas, por conta própria. Lá em casa também só me lembro de ver empregadas, fardadas como era costume. Havia um pomar muito grande, havia cães, havia anexos, não sei se não haveria cavalos, mas entrávamos logo, não me lembro de andarmos cá fora. A casa tinha uma coisa que me fascinava. Dentro de casa, tinha bancos de pedra de cada lado das janelas que eram altas. E, na entrada, tinha vários painéis de azulejos em tons de azul. Cada irmão tinha o seu quarto e, quando lá estávamos, nenhum, rapaz ou rapariga, se aproximava. Era como se fossem de famílias distintas. Cruzávamo-nos, dentro de casa, com outros miúdos que mutuamente se ignoravam. Eu tinha a sensação que aquela casa não acabava e que nunca se sabia bem quem é que lá vivia.

Durante muito tempo sonhava recorrentemente que chegava a uma casa e que era uma casa muito grande, quase sem portas, em que se andava de divisão em divisão como se a casa não tivesse fim ou fosse circular. De umas divisões saía-se para o jardim mas como a casa era assim, havia jardins que se viam de um lado mas não de outro. E todas as divisões estavam requintadamente decoradas, com peças que me deixavam espantada. Ia de uma para outra, surpreendida, com vontade de não sair de lá.

Na verdade, as minhas casas, quer a do campo quer esta, seguem um pouco esse conceito: são casas muito abertas, em que se circula quase como se a casa fosse circular. Isso traz algumas dificuldades, em especial quando nos queremos isolar pois, em especial se está mais gente em casa, há sempre alguém a passar. Se tenho reuniões. é mais do que certo que o cão anda por ali ou que o meu marido chega e passa por perto, com cuidado para não ser visto. Da porta de entrada até a grande parte das divisões é circulação franca, sem portas.

Talvez porque os sonhos, de certa forma, se materializaram, não tenho sonhado com aquelas maravilhosas casas. Adorava aqueles sonhos, gostava imenso de sonhá-los.

O mais parecido que agora tenho com isso é passear por aqui à noitinha. As luzes acesas dentro de casa, as janelas a deixarem ver tudo lá para dentro. Casas bonitas, a intimidade ali à vista, gente cozinhando, gente na sala vendo televisão. Ontem vi uma biblioteca que me deixou com vontade de ali ficar a olhar para dentro de casa. O meu marido chama-me. Claro. Também não gostaria de ver estranhos parados na rua a olharem para dentro da minha casa. Mas talvez os donos não se importassem, talvez até me convidassem a entrar. Adoraria.

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O vídeo que hoje partilho mostra as casas de Jorge Amado. Sabendo como ele gostava de receber, é fácil ver as suas casas e imaginá-lo, a ele e à mulher, em animadas tertúlias com os amigos. É a filha e a neta que aqui mostram as suas casas.

Paloma Amado, filha de Jorge Amado, mostra as casas do pai pelo Brasil e mundo | Casa Brasileira

O escritor brasileiro Jorge Amado deixou grandes obras literárias e sua marca por todos os lugares que morou. Paloma Amado, filha do autor baiano, abriu as portas da casa dele na Bahia, onde atualmente funciona um museu, projeto feito pelo cenógrafo Gringo Cardia. Jorge Amado também morou em Copacabana, no Rio de Janeiro. O apartamento do escritor foi vendido, mas alguns itens foram mantidos pelo comprador para manter a brasilidade do local, como o sofá e objetos de arte popular.

Outro endereço de Jorge Amado foi Paris. Ele viveu durante um tempo em hotéis na cidade francesa logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1947. O escritor encontrou amigos, como Maria Bethânia e Marcello Mastroianni, por lá e transformou o local em sua casa, sentindo como se tivesse na Bahia.


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Pinturas de Lee Krasner ao som de 'Casa no Campo' interpretada por Elis Regina

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Um dia bom
Saúde. Aconchego. Paz.

quinta-feira, outubro 27, 2022

Ensaio sobre a cegueira -- parte II

 

Já o contei algumas vezes. Não era especial fã do Saramago. Tinha lido o Memorial do Convento, gostei, voltei atrás e fui ler o Levantado do Chão. Também tinha a Viagem a Portugal que gostava de consultar. Nos seguintes vacilei, ou pelos livros em si ou porque não era a altura certa para os ler. Desaderi.

Até que, um dia, um amigo, alguém em quem sempre confiei no que se refere a livros, me disse que eu deveria ler o Ensaio sobre a Cegueira. Falei-lhe das minhas reticências. Ele assegurou que eu ia gostar. Acreditei. Fui ler. Às primeiras páginas ainda estava de pé atrás mas, se ele tinha insistido, eu devia afoitar-me até descobrir porquê. E depois não conseguia parar. Livro extraordinário. Lia até de madrugada. No dia seguinte ele perguntava onde é que eu ia. E eu, impressionada, contava. Ele dizia: 'Vai piorar'. E piorava. 

Livro mais agarrador, mais arrasador. Aqueles que cegavam podíamos ser nós. E eu alimentava a esperança de ser a mulher do médico, não uma cega. Depois disso, em muitas situações vi retratados os que se deixaram cegar e que viraram animais sem tino, cães esfomeados, sarnentos, sem dono.

Posso dizer que foi dos livros mais extraordinários que até hoje já li.

Depois deixei, outra vez, de ser capaz de ler livros dele. Mas aquele ficou-me marcado.

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E hoje, ao ver o vídeo abaixo, voltei a pensar no livro. Não que haja muitas parecenças no enredo mas porque, na realidade, o pior cego é o que não quer ver.

Todos nos deixámos enganar. Eu deixei-me enganar. Os Serviços Secretos de todo o mundo deixaram-se enganar. Apenas uma minoria conseguiu ter a presciência de ver o criminoso em potência que estava ali. E, no entanto, os crimes já se conheciam (prisões, envenenamentos, mortes inexplicáveis). Mas não queríamos ver. A ideia de haver ali alguém que se dava ares de civilizado, apesar de excêntrico, era-nos confortável. Por isso, íamos dando desconto. Perante todas as evidências, mantivemo-nos cegos. 

Vinte Anos de Putin a brincar ao ocidente -- em 3 minutos | NYT Opinion

Vladimir Putin, especialmente nos dias de hoje, é amplamente insultado. Para alguns ele é um criminoso de guerra, para outros ele é um ditador e para muitos ele é simplesmente um homem muito mau.

Mas nem sempre foi assim.

Vasculhámos imagens de vídeo de 20 anos de cúpulas internacionais, discursos e coletivas de imprensa e descobrimos um homem que uma vez foi muito respeitado: aquele que foi pescar e dançar com George W. Bush, que caiu em abraços calorosos com Tony Blair e cujo piadas fizeram os líderes da Nato rebolar de rir.

Como o vídeo revela, os líderes ocidentais já consideraram Vladimir Putin não apenas um aliado, mas também, aparentemente, um amigo.

Mesmo que estivessem simplesmente dando-lhe o benefício da dúvida para fins políticos, estavam fazendo uma aposta ingénua de proporções históricas: seja simpático com Putin, e talvez ele seja simpáticode volta.

É verdade que esse tipo de diplomacia pessoal obteve algumas vitórias significativas de segurança. Tratados de controle de armas foram assinados e Putin permitiu que jatos dos EUA atacassem os talibãs a partir de bases nos estados satélites da Rússia.

Mas quando os tanques russos chegaram à Geórgia em agosto de 2008, Bush descobriu que a sua amizade de oito anos com o líder russo lhe rendeu zero influência sobre as ambições territoriais de Putin.

Embora seja discutível se os governos ocidentais poderiam ter previsto o horizonte sangrento da visão de Putin, agora vamos esclarecer uma coisa: a diplomacia pessoal não funciona quando você mais precisa.

[tradução do google e tentativamente ajeitada por mim a partir do NYT] 


Isto no dia em o psicopata assassino assistiu a treinos de simulação de um ataque nuclear.  A besta a brincar com o fogo.

Vladimir Putin watched military training drills which intended to simulate a “massive nuclear strike response to an enemy attack,” according to a Kremlin statement


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Um bom dia
Saúde. Presciência. Paz.

quarta-feira, outubro 26, 2022

Quão suja é a bomba prestes a explodir dentro da cabeça de Putin?

 

Quando Putin começa a acusar as suas vítimas de andarem a fazer porcaria já toda a gente sabe algumas coisas:

1 - O que ele diz é mentira

2 - Está a manipular a opinião pública

3 - Está a criar condições para que, se for ele a fazê-lo, possa depois desculpar-se, dizendo que agiu em legítima defesa


Não sendo eu versada em temas de guerra, estudei contudo o suficiente de Teoria dos Jogos para poder tecer algumas considerações. Contudo, neste caso nem tal é necessário: o senso comum, neste caso, é mais do que suficiente para tal.

Assim:

a) Quando se começa a conseguir estabelecer padrões comportamentais num jogador, ou seja, quando este se torna previsível, esse jogador perde força, ie, perde vantagem competitiva  

b) Quando um jogador usa uma estratégia comunicacional assente numa lógica de defesa (que, ainda por cima, é falsa e facilmente desmentida) coloca-se num corredor cada vez mais estreito

c) Quando um jogador vê sucessivamente goradas as suas expectativas e sofre derrota após derrota perde o ímpeto vencedor e a inspiração que vem da perspectiva de ganhar e, vulneravelmente, passa a apenas concentrar-se em não perder

d) Quando um jogador começa a revelar que as suas decisões assentam em emoções (raiva, vontade de vingança, desespero) abre caminho para que quem age racionalmente possa mais facilmente criar condições para o derrotar.

Putin começa a ser, portanto, um adversário que, estando já numa trajectória irreversível, mais tarde ou mais cedo vai cometer o erro fatal que vai conduzir ao seu fim. 
 

Neste momento, ele sabe que esta aventura terá inevitavelmente um fim triste para ele e para a Rússia. Pelo meio quase terá destruído a Ucrânia e será responsabilizado pela morte de milhares de pessoas, quer ucranianas quer russas, terá mudado a vida e causado muito sofrimento a muitas famílias, ucranianas e russas. Ele sabe que passará à história como um criminoso ao lado dos grandes criminosos da história. Ele sabe que a Rússia jamais lhe perdoará o que ele está a fazer.

Um líder assim, predestinado ao fracasso, é um líder fraco, um líder odiado, um líder que atrai deslealdades, um líder que, quando cai, não tem perto de si uma mão que tente salvá-lo.

Não se poderá acusar ninguém mais pelo desfecho: será ele mesmo a implodir. A bomba suja de que tanto fala é a amálgama de desvarios e emoções negativas que tomaram conta da sua cabeça.

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Sei que não tem legendas, e é uma pena, mas recomendo o interessante vídeo abaixo no qual Abbas Gallyamov, que durante cerca de 10 anos escreveu os discursos de Putin e o conhece bem por dentro e por fora, se pronuncia sobre o que se tem publicamente observado no comportamento de Putin e o que daí se poderá inferir.

'He's becoming more and more emotional': Putin's former speechwriter decodes behavior

Former Putin speechwriter Abbas Gallyamov tells CNN's Erin Burnett what stands out to him about Russian President Vladimir Putin's current demeanor. 

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Os graffitis anti-Putin são alguns dos muitos que podem ser vistos em várias cidades e amplamente divulgados 

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Um dia bom

Saúde. Esperança. Paz.

terça-feira, outubro 25, 2022

Cair na risota

 


Quem por aqui me acompanha saberá que gosto de me rir. Sou de riso fácil. Pior: se me dá para rir, o difícil é parar.

No outro dia acordei a rir à gargalhada e depois fiquei na cama a conter-me para não continuar a rir não fosse o meu marido acordar.

Mas antes quero explicar uma coisa. Esta nossa fera cabeluda tem um hábito: quando algum de nós se afasta, certamente naquele seu instinto de cão pastor de não querer que nenhuma ovelha se tresmalhe, quer apanhar-nos com os dentes. Não morder para magoar. Nada disso. Agarra-nos a roupa e faz barulhos, como se estivesse a zangar-se por queremos sair do rebanho ou do seu redil. Quer prender-nos, quer que fiquemos onde estão os outros. Se não estamos para esses números, alguém o segura pela trela para que quem quer afastar-se se afaste em paz. Aí, ele fica num stress, não se quer ficar, põe-se a dar saltos, reviravoltas no ar, e a dar freneticamente aos dentes, fazendo autenticamente o barulho de castanholas, tudo para ver se consegue alcançar a pessoa que está a ir para longe do seu alcance.

Vou já avisando que o sonho foi parvo, naquela base de surrealismo que costuma enformar muitos dos meus sonhos, e acredito que, para quem leia, vai parecer destituído de graça. 

Mas, caraças, o que me ri. Tive que me levantar e ir à casa de banho para me rir à vontade.

Mas, então, foi o seguinte. Conto.

Estava eu e umas pessoas da minha família, num local que não identifico, a discutir como fazer um trabalho complicado, montar umas estantes que eram elaboradas, com uns torneados, uns pés trabalhados, umas portas rebuscadas. E eu não fazia ideia de como fazer e as pessoas também hesitavam, diziam que era preciso cuidado para não estragar a talha. Uma dizia que era como o peixe, se se fizesse muita força a madeira ficava moída. E então a minha filha disse que estava para chegar uma pessoa, e disse o nome, e que ele se calhar podia ajudar. Toda a gente franziu a cara e abanou a cabeça, rindo com um certo desdém. E um disse: 'Esse nem um caroço consegue enterrar!'

E, então, toda a gente se desatou a rir, a rir, a rir. Uma gargalhada pegada.

E eu ria-me e pensava que era isso mesmo, um anhuca aselhudo que nem um caroço conseguia enterrar. 

Só que, de repente, um conjunto de mulheres que ninguém conhecia, meio velhas, vestidas de cinzento escuro de alto a baixo, pareciam gémeas, sentadas como se estivessem na assistência, desataram também a rir mas com os dentes a bater castanholas, faziam tal e qual o mesmo barulho que o nosso urso amalucado. Todos nós nos virámo para perceber o que era aquilo, quem eram aquelas, e elas riam que nem malucas a bater os dentes, iguais, desatinadas, sem compostura.

E foi aí que desatei a rir desabaladamente e que acordei a rir. Mesmo agora que estou a escrever estou a rir, só de rever mentalmente aquela situação.

O meu marido está muito admirado e eu até estou com dificuldade em explicar-lhe. Concluiu o de sempre: 'És maluca'.

Se calhar sou. Mas fazer o quê? Acho que nada, acho que sou um caso perdido de maluquice. Mas, pelo menos, sou uma maluca bem disposta, uma maluca malaluca gargalhuca.

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E foi também a minha filha que me enviou, no outro dia, um vídeo com imagens captadas pelas câmaras que algumas pessoas têm à porta de casa. Para aqui colocar fui ao Youtube e há inúmeros vídeos, cada um mais suculento que o outro. Escolhi este vídeo apenas porque é mais curtinho que os outros. Bom para rir.


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Um dia bom
Saúde. Riso. Paz.

segunda-feira, outubro 24, 2022

João Vieira de Almeida, do absoluto sucesso ao buraco mais negro da depressão
Um impressionante testemunho


Felizmente não conheço a depressão. Mas conheço quem a sofreu. E conheço quem a sofreu e soube que esse era o nome do vazio que se instalara dentro de si e conheço quem o sente mas não sabe que nome dar ao que sente.

Ainda este domingo, ao caminhar à beira-rio com a minha mãe, ela me falava de uma conhecida que passa parte dos dias na cama, sem vontade de se levantar e incapaz de sentir motivação para o que quer que seja. 

E, agora que escrevo, recordo uma irmã de uma das minhas tias por afinidade. Era uma família grande, tudo gente muito divertida. Ela era casada e tinha dois filhos. A minha tia, uma das suas irmãs, dizia que não conseguia compreender aquela tristeza. O marido, homem forte e alegre, sofria por não conseguir afastar aquele pesado manto de tristeza de sobre a sua mulher. Ouvia a minha tia a conversar com a minha mãe, ambas sem perceberem, tentando encontrar razões, e lembro-me de prestar atenção, tentando também eu compreender. Sei que se tratava, a minha tia falava de médicos e de tratamentos, mas desconheço o tipo de acompanhamento, presumo que não tenha tido acompanhamento psicológico. Lembro-me de ouvir dizer: 'Coisas de cabeça... É o pior......' Creio que chegou a estar internada. Vivia perto das minhas avós num bairro tranquilíssimo, os filhos eram calmos, o marido era uma simpatia, tinha uma vida sem sobressaltos. Até que um dia se suicidou. Em todos ficou aquele misto de estupefacção e de resignação. Ninguém conseguia perceber porque sofria ela tanto mas também se admitia que talvez um dia não aguentasse mais. 

Mas o que agora para mim foi um balde de água fria, a surpresa absoluta, foi saber que o João Vieira de Almeida, o grande líder da poderosa VdA, atravessou o labirinto, conheceu o abismo.

Quem vive no mundo dos negócios, quem está ligado a empresas com recursos para pagar aos melhores, conhece a VdA. Fazem-se pagar, e bem, mas a verdade é que não desiludem. O actual escritório é um portento: a arquitectura e a decoração são extraordinárias. Passar nas imediações é ver aquele bando de mulheres ultra bem vestidas e de homens altamente executivos, todos confiantes e seguros de si.

Não é o único grande e importante escritório de advogados do país. Mas é um dos melhores, um dos mais carismáticos, um que tem uma presença fortíssima no mercado.

E, no entanto, o líder, o incensado grande líder, um dos considerados 50 homens mais poderosos do país, dá-nos aqui um impressionante testemunho daquilo por que passou. E com que tocante sinceridade e com que imensa humildade o descreve.

O vídeo é o último dos que partilhei abaixo. E aqui uma palavra de louvor ao Observador por esta série de entrevistas sobre a Saúde Mental e uma palavra à Sara Antunes de Oliveira que conduz a conversa com precisão e delicadeza.

Decidi começar por vídeos anteriores para que se conheça a face pública do João Vieira de Almeida (filho do carismático Vasco Vieira de Almeida).

E transcrevo o que dele se escreve no site da firma:

JOÃO VIEIRA DE ALMEIDA

João Vieira de Almeida, Senior Partner da VdA, preside ao Conselho de Administração.

Enquanto Sócio de Corporate e M&A, tem assessorado muitas das operações mais emblemáticas em Portugal, sendo reconhecido pelo mercado como assessor de primeira linha de grandes organizações. É membro de vários Conselhos de Administração e Presidente da Mesa de Assembleias Gerais de empresas.

Reconhecido pelo seu estilo de liderança ímpar, e por antecipar proactivamente os desafios do futuro do setor, prossegue vigorosamente uma visão assente no conceito “One Firm Firm”, tendo-lhe sido atribuído mérito sobre o desenvolvimento e afirmação da VdA, desde um escritório de 6 advogados a uma firma de mais de 450 pessoas, com uma forte presença internacional.

O compromisso irredutível do João para com a cultura e valores da firma, com particular foco no espírito de equipa, na inovação e no empreendedorismo, consolidou estas dimensões como forças motrizes que caracterizam a VdA, aliadas a uma cultura aberta e inclusiva, onde todos os colaboradores têm a justa oportunidade de desenvolver o seu potencial, num ambiente profundamente colaborativo.

Distinguido em 2018 pelo The Lawyer como European Managing Partner of the Year, tem implementando as melhores práticas internacionais de gestão na VdA, que constitui hoje um case study de Harvard e tem sido amplamente reconhecida por sucessivos prémios nacionais e internacionais, incluindo a distinção de FT Most Innovative Law Firm in Continental Europe, que lhe tem sido atribuída consecutivamente nos últimos anos.

Pelo que refere, João Vieira de Almeida agora está bem, embora se mantenha vigilante. E continua a procurar a tranquilidade e o equilíbrio que lhe vem das montanhas. E fala abertamente da sua experiência e vê-se que fala com tocante sinceridade quando refere os que sofrem o que ele sofreu sem o apoio e os meios de que felizmente usufrui. 

Há saída para a depressão e é importante que os que a atravessam acreditem nisso e procurem ajuda. Não há que esconder o que se passa ou tentar atravessar sozinho o sofrimento de um vazio tão negro.

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 João Vieira de Almeida em 2013


Em 2016 a falar de estratégia para o país


Em 2018, com a sua banda


A fantástica Sede da VdA


Em 2020, a brave lawyer and leader


João Vieira de Almeida e a depressão. “Chegava ao escritório e as primeiras horas estava a chorar”



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Uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Serenidade. Ânimo. Paz.

domingo, outubro 23, 2022

Tricot ou podcast?

 


Passou por aqui uma antipática e controversa criatura que opina sempre com enervante sobranceria. Estava a falar dos mercados, pareceu-me. O meu marido, que é quem estava com o comando, tirou-a logo da nossa sala. Mas disse que ela era capaz era de ter jeito para filmes pornográficos. Dei-lhe razão. Uma impiedosa dominatrix. Não consigo perceber qual o racional que justifica que alguém contrate tal pessoa para falar em televisão. É má, antipática, tendenciosa e, receio bem, algo perversa. Poderia dizer 'parva' mas não digo, estou em dia bom.

Estou é com muito sono. Levantámo-nos cedo para irmos com a fera à sua aula. De quinze em quinze dias vai mostrar os progressos que fez e aprender novas técnicas. As aulas são mais para nós que para ele. Ele aprende logo. Nós é que nem tanto.

Depois de ter começado, no primeiro dia, por querer atacar e, à bruta, fazer de tudo para afugentar o instrutor, pessoa com pós graduação em comportamento canino (coisa que desconhecia que existisse), agora está amicíssimo dele. A gente queixa-se que é um urso, implacável com estranhos, e... ele derretido e aos beijinhos ao homem. A gente diz que ele é um teimoso e um maluco e... ele obedece a todas as ordens e porta-se como um fofo. Só visto. Contado não se acredita.

A seguir demos um passeio pelo parque, grande parte do tempo debaixo de água. Bonito mas molhado, o passeio.

Dali seguimos para casa da minha filha para ajudarmos em tarefas de arrumações e decorações. Os rapazes crescem, precisam do seu espaço, têm as suas coisas que já não são de criança. 

Viemos de lá à tarde e eu achei que estava merecedora de um gelado, daqueles maravilhosos. Ocorreu-me, até, que poderíamos ir passear ali perto, para a Guerra Junqueiro, lugar de que muito gosto e que, em tempos, esteve elencado para lá arranjarmos casa. 

Não descobrimos, na altura, mas descobrimos ali perto, na Avenida da Igreja, muito perto do jardim. Era um apartamento com seis assoalhadas, grandes, e que tinha até um logradouro, transformado num jardinzinho simpático. Entusiasmados, apalavrámos. Nós dois na maior alegria. O pior era em casa. Enfrentámos uma resistência tão forte por parte dos nossos filhos, uma frente unida, que não tivemos outro remédio senão desistirmos. Eu e o meu marido achávamos que viver ali, numa zona tão simpática e tão perto dos nossos trabalhos era o máximo. Eles, conservadores, não quiseram mudar de sítio. Ela já namorava e nem pensar em deixar de morar ao pé do namorado. Ele praticava um desporto cujo pavilhão era perto de casa e da escola e recusava-se a mudar. Cedemos. Pouco tempo depois ela mudou de namorado e ele fartou-se daquele desporto. É no que dá irmos na conversa dos filhos...

Mas dizia eu que me tinha ocorrido ir até à Guerra Junqueiro. Afinal desatou a chover que deus a dava. Ainda comi o gelado. Duas bolonas: gianduja e cheesecake. Se era para a desgraça, que fosse das valentes. Bom, de morrer a chorar por mais. Quanto ao passeio, desistimos. Voltámos para casa, fui ao supermercado e, depois das coisas arrumadas, fizemos o passeio do costume, por aqui mesmo.

Quando regressámos era de noite. O dia inteiro fora de casa. E um sono...

Outra coisa. Chega o mau tempo e a gente que anda o ano quase todo de manga curta, fica com vontade de aconchego. 

A minha mãe, por exemplo, anda com alguma vontade de fazer um casaco de malha para ela. 

Escolheu um modelo que nos mostrou e que não mereceu o nosso apoio. A minha filha disse que era um casaco à velha. Eu também achei, sobretudo pelo cor de castanho acinzentado escuro, coisa deprimente. Está a caminhos dos noventa mas não a vemos, e não queremos ver, como velha. Ontem disse que viu um, numa loja, que era bonito. Pensa aquilo que eu pensei quando me desmotivei de fazer camisolas e casacos de malha: há tanta coisa à venda a bons preços que, na volta, não faz muito sentido gastar-se dinheiro em lãs ou gastar tempo a fazê-los. E já falava era de fazer-me mais um poncho. Não me desagrada a ideia pois gosto imenso de ponchos. Mas há casacos de malha tão bonitos que resolvi fazer uma pesquisa e enviei-lhe uns quantos por mail. Casacos elegantes, modernos, com cores de gente que gosta de viver e de confecção pouco complexa. Gostou. A ver se a convenço a fazer um que é lindo.

Só que, ao pesquisar casacos e ponchos, também eu fiquei com uma vontade danada de pegar em lãs e desatar a improvisar, a fazer peças originais, com modelos coloridos, com um toque macio. Que vontade... Há quanto tempo... Até uma manta macia, linda, com um mescla de cores fluida. Que vontade de fazer.


Ando nisto. Com vontade de apagar mails de trabalho até que a caixa de correio fique no osso e com desejo de artesanato, tricot, crochet, tapetes. Penso que Freud explicaria isto. Mentalmente já estou a fazer a transição, não será?
Mas entre a vontade e a concretização vai uma grande distância. Já sei que não vai dar. Para me atirar às coisas tem que ser com dedicação e foco. Não dá para andar a pensar em criatividades e, ao mesmo tempo, com a cabeça enrolada em mil problemas. Ou então faço como antes: à noite. Só que, se me atirar a isso à noite, bye bye blog. 

Também posso enveredar pela versão podcast. Com as mãos vou fazendo casacos, ponchos e mantas e com a boca vou falando estas coisas que para aqui escrevo. Será que funcionaria?


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A música chama-se The heart asks pleasure first e é da autoria de Michael Nyman e faz parte da banda sonora do magnífico O piano

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Um bom dia de domingo

Saúde. Tudo de bom. Paz.

sábado, outubro 22, 2022

E sobre a Liz Truss não há nada, nada, nada?


Não. Nada. Não há nada a dizer. Nada. Nem antes, nem durante nem depois. Ela, Boris, Kwasi Kwarteng, outros que tal. Nada. Figurantes de uma tragédia que tem um nome: Brexit. E que tem um actor principal, que actuou na sombra, que criou as condições, que financiou, que engendrou, que manipulou, que mexeu os cordelinhos. E actores secundários que usaram ferramentas proibidas, que estudaram as motivações profundas, que exploraram os medos, que brincaram com a ignorância, que pagaram. 

E os britânicos votaram sem saber no que estavam a votar. Não perceberam o logro. Deixaram-se enredar na perigosa e imprevisível trama do logro.

E agora ninguém consegue gerir esse logro. O logro é ingerível. Cai um ministro, cai outro, caem às mãos cheias, e cai um primeiro-ministro, cai outro, cai outro, repescam os que caíram. Uma farsa, um absurdo, um caos.

E o rei assiste impotente porque está lá apenas para ser o public relations do reino, para ajudar a vender canecas e bandeirinhas, não para tomar decisões relevantes.

Por isso, nada a dizer da pobre coitada da Liz, nada a dizer do bacano do Boris, nada a dizer do James, nada a dizer de todos os que já se demitiram e dos que ainda se vão demitir. A única coisa com graça nisto do Brexit foi o pai do Boris se ter naturalizado francês.

Um dia aparecerá um político a sério, o Brexit será revertido, as coisas voltarão a entrar na normalidade. Só não sei quando. Talvez quando o actor principal, o diabo que actua na sombra, tiver virado pó.

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Até lá, que viva o outono que, finalmente, parece estar a aceitar deixar de ser verão. Que traga chuvas, aragens, neblinas, cheiro a lareira, terras molhadas, árvores gotejantes, vontade de aconchego.

E que os tempos tragam algum presciência a quem vive ou assiste ao declínio moral que aqui e ali vai medrando nas sociedades democráticas, abertas, tolerantes, inocentes.

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E que a beleza e a graça e o amor estejam sempre por perto

Auto-retrato de Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun (Paris, 1755 –1842)


Lea Desandre & Cecilia Bartoli – De Bottis: Mitilene, regina delle amazzoni: "Io piango" - "Io peno"


The English Patient - The Heart is and Organ of Fire 


Bedroom Folk - Sharon Eyal & Gai Behar (NDT 1 | Strong Language)



Foto de Alain Laboile

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Um bom sábado
Saúde. Aconchego. Beleza. Paz.