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terça-feira, junho 18, 2024

Covid a flutuar aí pelos ares, borboletas amarelas, fadinhas douradas

 



Na minha família, nos últimos dias, duas pessoas com covid. Há umas duas ou três semanas, outras duas. Li agora que, na realidade, a bicheza anda outra vez em força, por aí, e provavelmente em maior quantidade do que se pensa. É que, não havendo a obrigação de comunicar, pelo menos do que sei, a maior parte das pessoas não comunica a ninguém. Anti-piréticos ou analgésicos, anti-histamínicos, muitos líquidos e descanso. E, assim, grande parte da malta vai-se orientando sem precisar de ir ao médico. Portanto, os números de que se fala devem ser apenas os dos casos mais graves. Só espero não apanhar pois se me dá outra vez para o sono, não estando eu ainda restabelecida do anterior, não sei como vai ser. 

Quando digo que ainda não me restabeleci é porque, na altura em que tive covid, dormia horas a fio e, um ou dois ou três meses depois, ainda tinha um sono incomum. E agora, um ano depois, tenho ainda mais sono do que me parece normal. Se, depois de almoço ou depois de jantar, me sentar comodamente, sem estar a fazer alguma coisa, é certo e sabido que, daí a pouco, estou a dormir. Mas isto acontece comigo e acontece com o meu marido. Por exemplo, ainda hoje, estava à minha espera para irmos fazer uma caminhada antes de almoço. Sentou-se e, como me atrasei, passado um bocado estava a dormir.

Não sei se é por isso mas também parece que estou mais preguiçosa. 

Nos últimos dias, trabalhei bastante. Andei a varrer, a toda a volta da casa, os caminhos que circundam a casa. Numas zonas, há folhinhas secas de azinheira e bolotas que não acabam; noutras, há caruma, há pinhas secas e roídas; e, por todo o lado, há outras folhas. E há outra coisa que complica imenso a varredura: a folhagem agrega poeiras e terras e, às tantas, já começam a despontar aí ervas ou, mesmo, pequenos pés de azinheiras.

Portanto, arranquei ervas e pontas de coisas que nascem por todo o lado, e varri e varri e carreguei não sei quantos contentores, pesados. Claro que, em primeiro lugar, temo sempre que o esforço continuado perturbe as minhas articulações dos joelhos. Por isso, tentei ser comedida no seu transporte e, sobretudo, airosa no acto de pegar neles, pesadões, e os despejar em zonas em que mais matéria orgânica dará jeito.

E, se por aí, até ver (e deixa cá bater três vezes na madeira), ainda me parece que estou bem, a verdade é que desde ontem ao fim do dia e até hoje, só tenho vontade de dormir. Esforcei-me por não adormecer de tarde não fosse de noite ter alguma insónia. Mas, caraças, que soneira.

Por isso, não vou comentar o espectáculo que são as comissões parlamentares com as pessoas a serem espremidas em directo, com as televisões em cima, nem vou comentar as expulsões da Sónia Tavares e da Bárbara Guimarães por terem sido apanhadas a comer num local destinado a quem pagou bilhete (ou o recebeu de presente) para isso e não a pessoas que ali estão a trabalhar. E não o faço não apenas porque tenho mais que fazer mas porque estou cheia, cheia de sono.

Há bocado, depois de ter acabado o jogo de futebol, o meu marido resolveu ir dar uma volta com o dog mas eu não fui, já tinha dado para esse peditório. O dog também não queria ir, achava que já estava mas é na hora de se encostar para descansar. Regressaram algum tempo depois e o pobrezinho vinha feito um pinto (e refiro-me ao dog pois não trato o meu marido por pobrezinho). Há um lado bom nisto: a terra fica regada. Por isso, apesar de ficar um bocado desconfortável com este tempo, não consigo insurgir-me. O que me vale é que lavei a roupa hoje de manhã. Estava vento, secou bem. 

E agora, antes de desligar o computador, só me lembro de vos dizer que nestes dias em que andei a varrer e a deixar que a minha pele assimilasse vitamina D ao máximo, fui acompanhada por uma maravilhosa borboleta amarela. Não sei se alguma vez tinha visto uma borboleta tão linda. Vários tons de amarelo, quase reluzente. Como andava mais do que à paisana, desprovida de quaisquer equipamentos que não a vassoura, uma pá metálica e um contentor, não tive como registar tamanha beleza. A fotografia lá em cima foi obtida na internet e não tem nada a ver com a formosura da que esvoaçava à minha volta. Não sei, de resto, se era sempre a mesma ou se, tal como há esquilos, agora também há borboletas que, se calhar, são fadinhas douradas.

Ah, é verdade, já me esquecia de dizer que, para além da vida ser uma coisa fantástica, há ainda outra: é que a linha mais curta entre dois pontos é uma linha entre nós (isto é, eu e vocês aí desse lado).

The shortest distance between two points
Is a line from me to you
The shortest distance between two points
Is a line from me to you, me to you, you, you, you, you

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Dias felizes para si que está aí desse lado

sábado, julho 17, 2021

Quando me tiram as palavras da boca

 



Acabámos de trabalhar a horas, concretamente por volta das seis da tarde. Uma coisa tão única que parecia que estávamos a entrar de férias. Cedendo à sugestão da minha filha, desafiei-o para irmos até à praia. 

Fomos.

Muita gente e tanto mais quanto a maré estava quase cheia. Ainda assim caminhámos, depois ele deu um mergulho. Eu, como tinha guardado a máscara no soutien do fato de banho, tive essa desculpa para não mergulhar também. Ainda assim, andei dentro de água a apanhar com as ondas, mas de pé, virando-me de costas quando receava que me cobrissem até ao pescoço e estragassem a máscara. Estava boa a água. Tive pena de não ter ousado. Lá dentro parecia frescota mas, mal saía, pensava que estava boa e voltava a entrar; mas debalde. Deve ser a isto que há quem chame mixed feelings.

Como nos tínhamos esquecido de levar toalha ou whatever, estendi o vestido na areia e sentei-me em cima. Ter-me-ia apetecido deitar e ficar a sentir o sol macio do fim da tarde e a ouvir o mar mas o vestido não dava pano para tanto.

Vi uma jovem que não fazia outra coisa senão fazer selfies com o namorado. Fazia poses, fazia caras, trejeitos, arrebitava-se, dobrava a perna, atirava a cabeça para trás. Chamei a atenção do meu marido, interrogando-me sobre o que levaria o jovem namorado a prestar-se àquela absurda sessão fotográfica. Interiormente, pensei que talvez fosse amor. Mas um amor que assenta em cima do narcisismo de um dos membros do casal é coisa de perna curta, não vai a lado nenhum. A seguir, pensei  que tal como há quem, em namoros, sofra de violência física há, certamente, quem sofra de violência psicológica. Aturar uma pessoa narcisista deve ser do pior que existe. 

Eu acho que não aguentaria, às tantas andaria a atirar sucessivos copos de água por cima da cabeça do narcisista. E se a água normal não fizesse o narcisista pegar na trouxa e desamparar de vez, partiria para copos de água de cozer corvina para os deixar malcheirosos, quiçá até lhe juntasse uma pinguinha de azeite para não ficarem apenas a feder a pexum mas ficarem, também, completamente untuosos.

Adiante.


Contudo, qualquer coisa de inspirador aquela sessão deve ter tido porque me pus à frente do meu namorado e disse: vamos também fazer uma selfie. Ele empinou-se, fez corpo. Deu-me logo vontade de rir. Pedi para se pôr normal para não estragar a fotografia. E, antes que me desse daquelas imparáveis vontades de rir, carreguei no botão. 

E coloquei no grupo da família do whatsapp, dizendo que também sabíamos fazer selfies. 

Como não tinham assistido à macacada que aqueles dois para ali estavam a fazer à beira-mar -- certamente dezenas de selfies, se calhar até faziam vídeos, quiçá para publicar uma story no insta -- não devem ter percebido o porquê da legenda. 

Agora uma coisa é certa: parece que acabou a covid. A malta já não está nem aí. Montes de grupos de jovens, grupos de amigas, grupos de casais, notoriamente mistura de vários agregados familiares. Claro que máscara zero o que não seria grave já que estão ao ar livre. A questão é que estão encostados, deitados ou sentados muito juntos, virados uns para os outros, tudo no maior chill out, desfrutando o belo sunset. Sem qualquer cuidado. Dir-se-ia que não há nem nunca houve covid. Só espero é que a versão delta ou gama ou lambda ou o escambau não seja da qualidade de ficar tinhosamente em suspensão durante o tempo suficiente para ficarem todos infectados, caso algum deles o esteja.

Vim impressionada com o descaso que observei. 

Mas, vá, é tempo de férias pelo que corações ao alto.

Depois, resolvemos ir e eu, que estava com a ideia de que já estava em férias, disse que boa, boa, era se fossemos comprar caracóis. Ele disse que sim. Como ele é alérgico a caracóis, sugeri que comprássemos também gambas para ele, coisa a que eu sou alérgica. Não quis, disse que comia o resto das costeletas. Disse que então não valia a pena ir comprar caracóis, até porque teríamos que fazer um desvio. Insistiu.

Portanto, o meu jantar foi um prato de caracóis. Depois comi um pêssego e uma fatia de queijo. Ou melhor: duas. Melhor: três. Perco-me: uma fatia de pêssego fresquinho com uma fatiazinha de queijo da serra é um petisco de detrás da orelha. A seguir, comi um quadrado de chocolate preto com figo, uma maravilha que a minha filha me ofereceu.

A seguir começámos a ver Gambito de Dama

Yes, Mr. Anónimo do Baldinho, fiz-lhe a vontade. Não estávamos numa de The Crown e, tem razão, Cold Water Man, o Virgin River é capaz de ser uma pepineira (mas acho que ainda vou ter que confirmar, ainda tenho esperança que aconteça ali um twist que vire a mesa e mostre que a chazada do início é só para despistar). Então, The Queen's Gambit. E foram três episódios de seguida. Viciante. Dou-lhe razão.

O meu filho ligou quando estávamos a ver. Tinha sido também uma sua fortíssima recomendação. Perguntou se não estávamos a ver The Crown. Confirmei. Disse-me que o conceito das séries não costuma ser andar a intercalar episódios de séries diferentes mas que, pronto, está bem. 

Já disse ao meu marido que, se calhar, podemos ver estas coisas no computador e levá-lo para o jardim. Não percebeu, diz que na sala a ver na televisão estamos melhor. Expliquei que é para não estarmos fechados em casa, assim teríamos o melhor dos mundos, estaríamos ao ar livre e a ver séries. Isto durante o dia, bem entendido. Acho que não ficou convencido.

Agora foi-se deitar. Diz que amanhã há mais.

E haverá.

Tenho ainda a reportar um outro evento. As minhas orquídeas, que não têm nome nem pensamentos de gente, tinham largado as pétalas. Fiquei na dúvida se estavam a caminho de se finar ou se estavam simplesmente numa de mudar de visual. Mas deixei-as ficar à janela e fui regando. Eis senão quando vejo que estão a rebentar uns little botões e, hoje, que as flores começam a dar as caras. Estou contente. Há coisas que quase parecem milagres. Mas, se calhar, não é milagre, se calhar é normal. A menos que, em vez de cor-de-rosa, me apareçam amarelas. Isso é que era bom, milagre para ninguém botar defeito.

Gostava também de falar de Léa Seydoux, actriz que muito admiro e que, ao que parece, está em quatro filmes em Cannes e que, tendo testado positivo, não poderá esta presente. 

Mas o adiantado da hora faz-me protelar a intenção. Já vão sendo horas de me recolher aos meus aposentos.

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As borboletas são obra de Salvador Dali e sobre a escolha destas imagens para enfeitarem este texto e sobre a escolha do título do post, a Wendy McNeill tirou-me as palavras da boca: Ask Me No Questions

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Bem, para que isto tenha um toque de quelque chose, partilho um vídeo que me diz também quelque chose:


"Ela escreveu o que eu sinto" | Clarice Lispector e Maria Bethânia


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Um belo sábado!

domingo, fevereiro 16, 2020

A vida efémera das borboletas. E das cartas de amor (de amor e não só).





Tenho andado constipada e na sexta-feira piorei. À noite estava deitada abaixo e dormi mal, com tosse, dores no corpo, dores de garganta. Tirando o bocado em que fui ao médico, este sábado passei o dia em casa. De tarde dormi e, no resto do tempo, pouco fiz, agasalhada e apanhada. Felizmente, o tratamento já começou a fazer efeito e, embora a minha mãe quase me tenha implorado que este domingo também me mantenha resguardada, recordando-me insistentemente que já não tenho vinte anos, estou em crer que tal não acontecerá. Não sou bicho de hibernação.

Este estado em que me encontro não apenas me abate pela ociosidade forçada como me reduz as faculdades.

Por exemplo.

Tenho quase a certeza que há uns dois ou três dias li no Guardian um artigo sobre um site que proporciona os contactos para que estranhos se correspondam, através de cartas de verdade, cartas escritas à mão. Mas agora não o encontro. Só se não foi no Guardian. Nesta demanda fui dar a artigos antigos (por exemplo: Writing letters to complete strangers can make the world a better place), fui dar a um site e talvez seja o site referido no artigo (The world needs more love letters), fui dar a uma conferência Ted (Hannah Brencher: Cartas de amor para estranhos). Tenho estado entretida a passarinhar por isso. Mas, certamente por preguiça mental, ainda não percebi bem como funciona pois não acredito que as pessoas tornem públicas as moradas de destino das cartas. Em alguns casos apenas as escrevem e deixam em lugares públicos para quem as queira ler. Mas o que tinha lido não era isso: era mesmo escrever cartas a uma pessoa, receber resposta dela e, assim, estabelecer um hábito de correspondência.

Na minha adolescência eu escrevia muitas cartas. Todos os dias, era uma emoção saber se o carteiro tinha trazido uma carta. Recebia envelopes com longas cartas e eu, igualmente, escrevia longas cartas.

Do prazer com que as escrevia só eu sei. E do prazer que sentia ao abrir o envelope, desdobrar as folhas, ler tudo o que me tinham escrito também. Nesses momentos, tocava o mundo de quem me tinha escrito e quem me tinha escrito não apenas me mostrava o seu mundo como a sua pele, as suas vísceras, a sua alma. Momentos de partilha e comunhão.

Há tanto tempo.

Agora, se quisesse voltar a escrever uma carta assim teria a maior dificuldade, parece que já mal sei escrever à mão. Também já nem me passa pela cabeça voltar a receber uma carta escrita à mão, entregue pelo carteiro. Isso já não existe. E, no entanto, como gostaria.

De vez em quando recebo mails escritos como se fossem cartas, mails longos. Fico toda contente. É como se o prazer de receber uma carta estivesse de volta.

De todas as que recebi, recordo agora uma, um mail longo em que o autor me falava de si.

Não acreditei em nada. Não sei porquê mas não acreditei. Contudo, estava escrito de uma forma credível e, sobretudo, muito bem escrito. Na altura senti-me especialmente tocada. Uma carta interessante que eu agora gostaria de reler. O pior é que estupidamente apaguei esse mail e, portanto, não consigo satisfazer a minha curiosidade. Ia escrever saudade no lugar de curiosidade mas é igualmente estúpido dizer que se tem saudade de uma carta.

Mas agora que estou a escrever isto estou a pensar que era bom que a carta tivesse sido escrita à mão. Escrever à mão é como colocar o DNA à vista. Ao passo que por mail a mesma pessoa pode fazer-se passar por outra, usando diferentes nomes e endereços de mail, se escrever à mão não o conseguirá. 

E, enquanto escrevo, estou também a pensar: será que isto que aqui escrevo pode também ser lido como uma carta? Quem me lê, lê como se estivesse a ler uma carta que eu lhe escrevi?


Assim, também a deslizante caneta
que mancha uma superfície
não tem consciência do objectivo
de qualquer traço
ou que o todo terminará
como uma amálgama
de heresia e sensatez;
por isso ela confia na mão
cujo discurso silencioso anima
os dedos palpitantes --
cujo espasmo não colhe pólen
mas sossega o coração.



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As fotografias de borboletas são da autoria de Brian Hale

Excertos de 'Borboleta' de Joseph Brodsky, trad. Jorge Sousa Braga in 'Animal Animal, um bestiário poético'
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Deveria dizer que, de certo modo,
careces de existência?
O que estão, então, sentindo as minhas mãos
tão parecido contigo?

quinta-feira, setembro 26, 2019

O efeito borboleta





Sabes? Hoje li que as borboletas estão a desaparecer. Notícia triste, não achas?

No outro dia dei comigo a pensar que não sei para onde vão as borboletas quando morrem. Nunca as vi caídas no chão. Pensei que, se calhar, vão para o céu. O que achas? Um céu cheio de borboletas, já pensaste? 

Li que o desaparecimento tem a ver com as alterações climáticas. As borboletas e outros insectos. Li que a polinização pode ficar em perigo e, sem polinização, o que acontecerá é tão mau que nem quero falar-te nisso.

Mas deixa que te conte outra coisa. No outro dia, vieram chamar-me para ver. Fotografei-a, claro. Uma borboleta muito bonita.


Uma semana depois fotografei outra, igualmente bonita. Mais colorida. Depois, no mesmo sítio da primeira vez, vi outra igual à primeira e pensei que poderia ser a mesma. Depois pensei que não sei se as borboletas conhecem os lugares, se voltam a eles, se pensarão que estão a voltar a um lugar onde já foram felizes. Também não sei se pressentem as pessoas por perto.

(Tu pressentes-me?)

Contemplei-as, encantada com a sua beleza. E intrigada. Faz-me muita impressão que um ser tão belo -- uma daquelas belezas perfeitas para as quais conseguimos encontrar explicação: simetria, harmonia, conjugação feliz de cores -- resulte de uma metamorfose que parece um passe de mágica. Sabes o que penso? Penso que o mundo real é, afinal, um mundo de magia onde os milagres acontecem. E isso enche-me de esperança. 

Eu não sei como explicar que seres tão sublimes habitem o mesmo mundo que eu. Não sei se para seres assim, que nascem outros e que são tão efémeros na sua extrema beleza, o tempo é o mesmo que o meu. Não sei se uma borboleta, recém nascida depois de ter sido outro ser, tem consciência de como o tempo passa. Não sei se sente que o seu tempo se esvai mais rapidamente do que para mim. Talvez não. E talvez seja o meu tempo que passe sem que eu o sinta, tão longe estou. Tão longe estou. Tão longe. Sentes isso, não sentes?

Que tempo é o nosso?


Sentirá a solidão, a bela borboleta cujo tempo se esvai? Sentirá que um dia ninguém mais saberá dela? Saberá que um dia o bicho anterior não mais se transformará, deixando-a por acontecer? Quantas coisas, diz-me, quantas coisas ficam por acontecer sem que ninguém o saiba?

Olha. Fecha os olhos e pensa. Como ficará o mundo sem a beleza efémera das borboletas? Consegues imaginar? A tristeza e a escuridão descerão sobre nós? Ou teremos nós, entretanto, adquirido a capacidade de nos transformarmos em seres sem destino, inexplicáveis, fatalmente belos e efémeros? 

Faço muitas perguntas, não é? É que não sei respostas, sabes? Tu sabes? Tens respostas para mim?

Saberás tu que contemplo a beleza das borboletas? Saberás que sinto que o tempo, um dia, nos surpreenderá na sua suprema sabedoria? Será que deus, afinal, é o tempo? O tempo que está em todo o lado, infinitamente sábio, infinitamente bondoso. Um deus que nos transporta, que nos suspende, que nos traz os sonhos que nos mantêm vivos. Um deus que nos abraça. Que nos traz a palavra que nos abraça. Que nos traz aquele olhar. Aquele sorriso. A tua mão que se estende até mim. Mesmo que em sonhos.


Olha, não me respondas. Prefiro não ter respostas, prefiro sonhar com borboletas livres e eternas voando e dançando in heaven.  Prefiro adivinhar-te. Prefiro pressentir-te aí, imóvel, escutando em silêncio a minha respiração.

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E prefiro não pensar no dia em que as borboletas vão desaparecer

E sabes porquê, não sabes? É que não sei se ainda vamos a tempo de as convencer a ficar por cá e isso entristece-me muito.  

O que achas? Temos tempo? Vamos ter o nosso tempo?

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E agora, a quem possa interessar, convido a descer até ao post seguinte. É o avesso do outro, do das metáforas. 

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E um dia feliz a todos.

sábado, maio 11, 2019

Dizem que o azul quase não existe





Ouço que não há animais azuis. Como se isso fosse possível. Se calhar também pensam que não há flores azuis. Ou, sei lá, a ignorância é tanta, que não há corações azuis. Pensam, talvez, que o azul é uma cor rara, uma quimera.

E, no entanto, são azuis as palavras que me chegam de longe, envoltas em enigmas, em mistério, em saudade, palavras que descrevem uma geometria impossível, palavras sem sombra, sem mácula, azuis na sua mais íntima essência. Fecho os meus olhos e vejo uns outros olhos que, ao longe, as deixam cair, lágrimas límpidas, azuis,  que calam o que a boca está proibida de dizer. 


E, no entanto, são azuis os pássaros que voam das árvores à minha passagem, deixando um rasto de luz pelo céu, também ele azul. E cantam gritos de amor, de amor louco, azul, infinito, gritos que atravessam o espaço e vêm depositar-se, devagarinho, na concha macia da minha mão. Cantares azuis de pássaros azuis, transportando sonhos sem rumo, memórias esquivas que se escondem de ti e de mim e nos desafiam. Como se os abismos pudessem ser também azuis, tentadoramente azuis.


E são azuis as borboletas que rasgam o silêncio das árvores que sobem pelo infinito afora, azuis, muito azuis, azuis de veludo, borboletas que dançam magias pela noite adentro. Voam, caprichosas, enquanto cortejam o movimento das suas asas, efémeras, belas demais para poderem ter uma vida longa. E voam como um sopro azul, um sopro carregado de sublimes segredos que a noite me traz.

E, no entanto, são também azuis os recônditos esconderijos onde o meu coração bate, bate pelo teu, um coração tão azul como o meu, um coração de tigre azul, invisível, imaterial mas sempre presente junto a mim.


E, no entanto, é azul o lobo triste cujos longínquos uivos me chegam, um lobo que desliza pela noite em toda a sua magnífica solidão, um lobo que sinto e pressinto escondido por entre as paredes em que o meu corpo se enleia, chamando na noite pelo teu. Um lobo azul, fugidio, um lobo que espera por mim por entre os labirintos da noite, que me deixa palavras para sempre perdidas, uivos lancinantes, de um negrume quase azul.


E, no entanto, são também azuis as pétalas de rosa que encondro, de manhã, dispostas em volta do meu corpo regressado da noite. Azuis, macias, de um veludo azul e perfumado, pétalas que espalhas durante os sonhos em que o meu corpo anseia pelo calor prometido do teu abraço, apertado, longo, azul, tão, tão azul.


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Os animais não podem ser azuis -- dizem


(mas eu não acredito)

sexta-feira, março 01, 2019

A beleza efémera das borboletas




A beleza efémera é qualquer coisa que me emociona. Por exemplo, se vejo a transparência e intangibilidade de todo o espectro cromático a atravessar um céu pesado e cinzento, penso que isso vai durar apenas uns breves instantes, um arco-íris perfeito a nascer para logo desaparecer como se fosse um golpe de magia,  uma aparição inesperada, fatal. 

Ou uma flor que nasce, perfeita, e que, passados uns dias, já não existe. Um espanto. Talvez por isso, quando me oferecem flores e começam a secar, deixo que sequem, deixo que fiquem assim, acho-as bonitas na mesma, tenho pena que acabem, custa-me deitá-las fora. A minha prima, há algum tempo, ofereceu-me um ramo de flores lindas. Ainda as conservo. Estão na jarra em que as coloquei na altura, continuam lindas.

E aquela borboleta tão bonita que tenho lá in heaven. Tão linda. Foi ficando lá, eternamente bela. E, no entanto, que vida curta teve.


Tenho, desde sempre, o prazer -- e a necessidade -- de fazer fotografia. Captar o instante. O instante breve, efémero, para sempre fixado. 

Quem escreve um livro, quem pinta um quadro, quem compõe uma música tenta conquistar a eternidade, deixar a sua marca para todo o sempre. Há quase um egoísmo, um lutar contra a efemeridade. Sabe-se que alguns autores ou pintores ou músicos editam e editam e editam a sua obra em busca da perfeição. Não querem correr o risco de deixar marcas da sua imperfeita humanidade.

Mas há algumas pessoas para quem não é bem assim. Há pessoas que fazem belas esculturas de areia sabendo que virá uma onda ou a chuva ou o vento e que toda a obra se esvairá, o trabalho tido em vão. Surpreende-me que, apesar disso, os autores se dediquem com um afinco total como se estivessem a produzir uma obra eterna. Acho que há nisso uma certa bravura e uma espécie de generosidade absoluta. São a excepção. São quem está mais perto do mundo da beleza natural, perecível, desinteressado. 


Volto às borboletas. In heaven há borboletas amarelas ou brancas ou castanhas e amarelas. Lindas. Parece mentira que existam. Parece mentira que apareçam, quase do nada, de onde menos se espera, uns seres alados, coloridos, perfeitíssimos, quase etéreos. Seres de uma coragem abnegada. Nascem para embelezar o espaço por onde andam e para dar a vida por outros seres. Um milagre quase incompreensível. Uma ficção em que ninguém acredita.

E, no entanto, quase não as vemos, como se fossem banais. Não são. São magia em estado puro.

As imagens que aqui partilho convosco são verdadeiras obras de arte, fotografias muito ampliadas de borboletas ou traças que integram a série Metamorphosis. O autor é Jake Mosher. Parecem pinturas, tapeçarias, obra laboriosa, inventada, infinitamente editada. 


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Que a beleza, em qualquer das suas múltiplas formas, vos acompanhe. 

terça-feira, julho 24, 2018

Coisas porcalhonas
-- que, logicamente, devem ser evitadas --







Pode ser que às mentes auto-sustentáveis as estações do ano não alterem a disposição. Mas a minha ainda é movida a coisas que se escafedem com o dealbar das temperaturas mais altas -- mesmo quando de altas não têm nada.

Sempre me lembro de chegar a estas alturas e já estar por tudo. Ficam à espera que proteste e eu moita. Podem provocar, tripudiar, saltar em cima a pés juntos que eu olho de longe, indiferente às minudências do pequeno mundo. Acham que o meu silêncio não prenuncia nada de bom, temem chumbo grosso mas eu, em paz, nada digo -- porque, simplesmente, estou sem paciência, desejando que passem à frente porque a mim tanto se me dá.


Hoje, no restaurante, ao almoço, dois dos meninos contaram que o outro avô defende o Bruno de Carvalho e acha que o Marta Soares é que é o culpado disto tudo. O meu marido ia entrando em apoplexia, que não podia ser, que essa não, que estavam equivocados, que o avô era pessoa de bom senso. E os meninos que não, que o outro avô era mesmo a favor do Bruno de Carvalho. O meu marido, fora dele, pediu aos meninos que dissessem ao avô que, que ele ache que o Salazar foi o maior, ainda vá que não vá, agora que ache que o Bruno de Carvalho deve voltar ao Sporting essa é que não. Os miúdos disseram que sim, que levavam o recado. E, dizendo isto, o meu marido atirava-se para trás na cadeira, perplexo, indignado. E eu, observando-o, gabava-lhe a energia.

A mim não apenas aquilo me foi completamente indiferente como nem que por ali adentro entrasse o clã Aveiro em peso, com a D. Dolores de shorts esfiapados e nalgas ao léu,  o namoradão todo camioneiro e altamente barrigudo feito sleeping partner, mais as manas Cátia e Elma em monoquini, bota alta e purpurinas multicores artisticamente espalhadas pelo corpo, com o CR7 em tronco nu a dar saltos no ar e a uivar, e a menina Georgina com três bebés ao colo e com as mamocas e as quatro bochechas três vezes maiores que eram quando ele a conheceu, que a mim me daria igual. Sem ânimo para me exaltar ou entusiasmar com o que quer que seja. Mesmo se entrasse o Marcelo a dar beijinhos de mesa em mesa eu juro que ficaria pregada à cadeira, impassível -- e se ele fizesse mesmo questão numa selfie comigo pois que viesse ele sentar-se ao meu colo que eu nem aí.


E isto para dizer que parece que nada do que vou sabendo sobre a actualidade me tira do sério, me entusiasma ou me revolta. Tudo me parece mais do mesmo. Monotonia mais chata esta.

[Mas sou eu. Sei que sou. É a energia dentro de mim que parece esfumar-se, retirando-me a vontade de espadeirar o mundo à minha volta. Fico mansa como uma rola budista num galho de azinheira]


Só coisas meio desasadas é que puxam por mim. Por exemplo, isto dos hábitos pouco higiénicos. Isto, sim, parece-me útil. Chamem-lhe coisa de estação pateta, chamem-me a mim desmiolada-mor. Tanto se me dá. A mim parece-me instrutivo e pertimente.

Portanto, transpondo -- em tradução e ordenação livres -- o artigo Tous ces gestes du quotidien qui ne sont pas hygiéniques, de Ophélie Ostermann, publicado no Le Figaro . Madame, partilho convosco dez dos erros mais frequentes a nível de higiene quotidiana. Cenas a evitar, portanto.


1. Nunca limpar o telemóvel

Uma nojeira. Pousamo-lo em todo o lado, mexemos nele sem quaisquer cuidados. Encostamo-lo quase à boca ou à cara mesmo que esta tenha cremes ou esteja transpirada, pegamos-lhe com as mãos pouco limpas. Portanto, façam o favor de, volta e meia, o limpar. Dizem as boas regras de higiene que bom mesmo era limpá-lo três vezes por dia com uma toalhita anti-séptica. Mas, se calhar, se o fizermos, ainda corremos o risco de nos tornarmos num daqueles maníaco-compulsivos com a mania das limpezas e, caneco, tudo menos isso. Eu diria que, talvez, uma vez por semana não fosse mau de todo. E, não havendo toalhitas dessas, talvez um papelinho com álcool. Melhor que nada.


2 . Não deixar arejar a cama

Parece ser coisa de gente arrumada mas é um erro. Refiro-me a, de manhã, quando se sai de casa, deixar a cama toda feita, muito bem feitinha, sem que o colchão ou o lençol de baixo fiquem a arejar. Errado. O ideal será deixar a roupa puxada para trás, lençol de cima incluído. Arejar é bom.


3 . Cortar o melão no prato (sem ter a certeza que foi previamente lavado)

Ou bem que se lava o melão antes de cortá-lo (tal como se deve fazer com toda a fruta) ou descasca-se antes de colocá-lo no prato. Nunca se sabe se traz vestígios de terra, de fertilizantes, herbicidas ou estrume de bicho cagador. Por via das dúvidas, há que ter cuidado.


4 . Partilhar a toalha da casa de banho

Se parece um bocado nojento partilhar a escova de dentes, pode parecer normal partilhar a toalha do lavatório da casa de banho. Errado. Limpar as mãos ou a boca deixa na toalha bactérias, células mortas e, num ambiente quente e húmido, ainda mais os germes se multiplicam. A menos que goste de partilhar micoses, verrugas e cenas que resultem de bicheza variada, não o faça. 


5 . Beber bebidas pela lata

Uma porcaria. Quando se levanta a tampa, uma parte que está em contacto com o meio exterior mergulha na bebida e lá vai toda a espécie de micróbios ao banho na bebida que vamos beber. Portanto: não beber bebidas directamente pela lata é o conselho a ter em atenção.


6 . Não lavar as mãos depois de mexer em moedas ou notas

Escuso de lembrar que quase não há dinheiro que não contenha vestígios de droga. Mas, mesmo não pensando na droga, sabido é que, de mão e mão, a bicheza miúda vai-se acumulando. O ideal seria usar toalhitas de limpeza ou aqueles sprays desinfectantes para ir mantendo as mãos limpas depois de mexer em dinheiro. Não havendo, água e gel de lavagem são melhores que nada.


7 . Pousar a malinha de mão ('carteira', para as tias) ou o saco das compras em cima da mesa da cozinha, da mesa do restaurante ou em cima da cama

Esta espero que o meu marido não leia. Volta e meia pouso o que não devo onde não devo. Errado. Razão tem ele em chamar-me a atenção (mas, lá está, prefiro que ele não leia isto para não me aparecer a cantar de galo). Em especial se já os pousámos no chão, nos transportes públicos ou noutros locais onde a higiene não abunde, nada de os pôr em locais que se querem limpos como a mesa onde comemos, a bancada da cozinha ou a nossa rica caminha. 


8. Não lavar as mãos antes de, na casa de banho, limpar as partes íntimas

Penso que já é bem sabido que, depois de irmos à casa de banho, devemos lavar as mãos. No entanto, pasmo, mas pasmo mesmo, por, em casas de banho públicas, ver frequentemente mulheres que saem do habitáculo privado e... ala moça que se faz tarde, e aí vão elas, as porcalhonas, sem lavar as mãos. Pois bem. Depois, sempre. Isso já deveria ser sabido e consabido. Mas, se temos as mãos pouco limpas, deveremos lavá-las também antes de limparmos as intimidades ... a menos que não nos importemos de correr o risco de nos contagiarmos com as porcarias que, incognitamente, transportamos nas mãos.

9 . Não lavar a roupa antes de a vestirmos pela primeira vez.

Penso que toda a gente lavará a roupa interior nova antes de a usar. Contudo, talvez não lavem a roupa que se encontra exposta e disponível para ser provada. Errado. Excepto se forem peças dobradinhas e resguardadas, parece de bom tom lavar o que já pode ter sido provado por gente transpirada, suja e mal cheirosa (já para não dizer com doenças estranhas e contagiosas). Agora que o escrevo, dou por mim a pensar que... bem prega Frei Tomás. Mas, de facto, pensando bem, parece uma nojice uma pessoa vestir uma coisa que sabe-se lá quem é que a vestiu antes. (Credo... só de pensar nisso...)


10 . Dormir com cuecas

Já aqui, no blog, referi uma vez que é mais saudável dormir nu ou, pelo menos, sem cuecas. E repito: as cuecas podem favorecer o desenvolvimento de irritações, inflamações, culturas de fungos -- especialmente se forem de fibra (as cuecas). E isto é tanto mais relevante para as mulheres. Arejar é que é bom. (E isto é regra que se aplica à genitália, ao colchão da cama e, assim de repente, a tudo)

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Para tentar atenuar -- que um tema sobre práticas pouco higiénicas não será do mais apelativo que há, reconheço --  resolvi aqui ter as melhores fotografias (em grandes planos) tiradas em jardins e que integraram o conjunto em apreço na eleição do melhor Garden photographer of the year com o patrocínio de Royal Botanic Gardens in Kew, London [no The Guardian]. São lindas, não são? Ah como eu gostava de ser capaz de fotografar assim.Tão, tão, tão bonitas.

E para que o ambiente fique mesmo limpinho, peço agora a ajuda do grande Cine Povero

Ruy Belo :: Algumas proposições com pássaros e árvores / Por Luísa Cruz



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Lá em cima Antoine Ciosi interpreta Ti Tengu Cara e talvez também não tenha nada a ver com nada mas eu gosto, sabe-me bem ouvi-lo.

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sábado, maio 13, 2017

A incompreensível e efémera beleza das borboletas




Por vezes, tão auto-centrados nos encontramos que acabamos por não perceber que o mundo é múltiplo, vasto, grande parte dele invisível, outra grande parte incompreensível. E apenas um dos muitos mundos que existem. E que, dada a nossa frágil natureza e a nossa efemeridade, somos nada. Portanto, pobres de espírito os que acham que tudo sabem, os que tratam com desprezo os outros, os que julgam com facilidade e, sobretudo, os que condenam sem julgamento. O muito que alguns julgam que têm, sabedoria ou bens materiais, é nada. Poeira.


Estive a ver borboletas. Lindíssimas, uma perfeição rara. Uma variedade que impressiona, tal a diversidade.

Uma vez no campo estava a andar -- aqueles meus passeios em silêncio em que tento não perturbar a harmonia de quem lá vive, pássaros, coelhos, lagartixas e todos os outros que não vejo. E ao meu lado, seguindo-me, duas borboletas brancas. Fico sempre num estado de quase êxtase quando me acontecem coisas assim, quase arrepiada, quase como se estivesse a ser abençoada por viver um momento tão maravilhoso. Seria deliberado da parte delas ou, tão silenciosa eu ia, me tornei invisível? Lembro-me de ter falado nisto a uma pessoa que se limitou a comentar: 'são raras as borboletas brancas'. Não sei. Nada sei de borboletas.

Outra vez, também in heaven, entrou uma borboleta lindíssima na sala. Já não me lembro como, morreu. Peguei nela e vi-a de perto: as cores, o desenho das asas, a elegância. Coloquei-a numa tacinha de casquinha. Anos depois ainda lá está, intacta, igual, perfeita. Apenas sem vida. E eu olho-a sem perceber que tragédia se abateu sobre ela que a deixou assim, com o corpo igual mas sem poder sentir o prazer de voar, de estar viva. E pergunto-me se todas as borboletas do mundo ficarão assim, intactas e eternamente perfeitas, depois de morrerem. Milhões e milhões de borboletas parecendo vivas mas sem vida? Não faço ideia.


Ao ver as borboletas, lembrei-me de uma das pessoas fascinantes que tive o privilégio de conhecer. Um melómano. Uma família de músicos. Um dos vários filhos é um grande músico. Tirando músicos, outras artes. Uma casa especial, neto de um vulto maior das artes lusas. Conversávamos muito. E ele falava-me de mundos que eu desconhecia. Já falei aqui dele. Tinha um hobby: fazia bird watching. E eu não conseguia perceber: mas fazem o quê? Fotografam? E ele sorria e dizia que não. Então o quê? E ele sorria e dizia que nada, apenas olhava os pássaros. Naquela altura eu não conseguia perceber que prazer se poderia ter em ir para montes e vales, rios e pântanos, à procura de algumas espécies de pássaros só para olhar para eles. E, no entanto, como ele gostava de o fazer e com que júbilo falava do que via.


Um amigo meu, por razões que aqui não vêm ao caso uma pessoa incomum, tem alguns gostos muito diferentes dos meus e um deles é que é caçador. Diz que, para ele, o prazer maior e que, nos dias antes, nem o deixa dormir  é o pensar em estar no campo, ao começo ainda de noite, depois a luz a nascer ao de leve, ele escondido a ver surgir o dia, a ouvir os sons da natureza, a perceber um bater de asas, um bicho que corre. Diz que nem é tanto o perceber a altura certa para disparar mas o sentir da natureza, o adivinhar os sons, os movimentos invisíveis, a luz sobre tudo. E eu, ouvindo-o falar, quase me esqueço que, a seguir, ele dispara a matar.


A idade tem-me trazido a serenidade necessária para aceitar a existência de múltiplas camadas de sensações e percepções e para me sentir disponível para procurar, no fundo de tudo, a sua suprema simplicidade, núcleo identitário de cada coisa, de cada bicho, de cada pessoa.

Não sei nem quero saber se são legítimas as contradições que habitam os seres e as coisas. Sei, ou julgo que sei, que a tolerância, harmonia, a bondade e a elegância ajudam a que valha a pena viver o efémero momento em que a alma habita o nosso corpo.

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E, a propósito de contradições e da beleza fugaz, Nabokov

Um olhar de perto


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Algumas fotografias mostram visões de muito perto de asas de borboletas.

Lá em cima Polina Semionova dança Butterffly, composta e tocada por Yasser Farouk

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