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sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Eu numa fotografia, eu nas palavras que escrevo, eu nas minhas memórias -- em dia de descobertas e trabalhos pesados

 



Ainda não arrumei grande parte das coisas que vieram em sacos no sábado passado mas, ainda assim, resolvemos lá voltar hoje, só os dois, dar um avanço. 

A minha filha já tinha dito que podia ficar com um serviço de jantar, a minha nora, embora pouco convencida, disse que ainda conseguia acomodar mais um serviço de chá. E eu, não tendo nenhum deles referido um serviço de café que escolhi com a minha mãe quando ainda andava no liceu e de que sempre gostei muito, resolvi que esse viria para mim. O que elas escolheram é da Vista Alegre mas o que eu escolhi é de uma fábrica na Baviera, um desenho e umas cores completamente diferentes. Na altura a minha mãe hesitou pois era muito diferente das louças que ela tinha. Mas consegui convencê-la. Quando o desembalar a ver se fotografo para vos mostrar.

Acondicionar este tipo de louças, especialmente quando serviços completos, é muito trabalhoso e demorado e mais vale estarmos os dois sozinhos pois despachamos muito mais serviço. 

O serviço com que a minha filha ficou, disse-me a minha mãe não há muito tempo, nem chegou a ser estreado. É muito bonito. Já aqui falei nisso pois, quando ela me contou que na parte de baixo do móvel do lado esquerdo havia um segundo Vista Alegre ainda por estrear, fiquei com muita pena. Não sei para que o comprou tendo já um outro e isto para não falar de um outro, da Sociedade das Porcelanas de Coimbra (que viria a ser comprada e absorvida pela Vista Alegre) que, esse, era frequentemente usado. Não sei qual a ideia ao comprá-lo pois era óbvio que não chegaria a ser usado. Não sei se terá pensado que era um investimento. Provavelmente, mais que um investimento, um legado. Acontece que os destinatários já não têm onde guardar mais pratos, mais chávenas, mais copos. Neste caso, em particular, a minha filha diz que vai reformular a arrumação do aparador da sala de jantar para ver se lá o consegue encaixar. 

Mas o que acontece é que, porque me custa desfazer de coisas que a minha mãe adquiriu e conservou com tanto cuidado e agrado, vou trazer tudo. Fica tudo encaixotado num canto da cave e, com sorte, quando os meus netos tiverem a sua casa, virão cá abastecer-se.

No sábado tinha trazido toalhas e mais toalhas de mesa de renda e bordadas que agora tenho que ver onde as vou guardar. Hoje trouxe sacos de lençóis de linho, bordados, lençóis cheios de rendas, a dobra toda em renda, ora em bicos, ora em palas, ora a direito, ou a renda como entremeio, ou com renda e bordados, ou seja, também de toda a espécie e feitio -- predominantemente brancos com rendas e bordados também em branco. Mas vi uns de que me lembrei. A partir de certa altura, não sei bem, talvez tendo eu uns dezassete anos, a minha mãe e as minhas avós resolveram começar a fazer-me o enxoval. E lembro-me de ir a uma senhora que pregava rendas e fazia bordados para escolher para mim e de a minha mãe aproveitar a embalagem e mandar também fazer alguns para ela e lembro-me de ter sugerido que fizesse lençóis brancos com um bordado em cinza claro. Já não me lembrava do efeito mas, na realidade, estão muito bonitos. 

Pelo toque do tecido e pela forma como estão tão imaculadamente dobrados e arrumados tenho a certeza que não foram usados uma única vez. É que no roupeiro do corredor há pilhas de lençóis normais e eram esses que andavam a uso. Uns coloridos, outros com bordado inglês, outros com bordados simples. De alguns ainda me lembro de quando vivia lá. Imagine-se. Mas, portanto, todo aquele afã de fazer rendas, bordados, de escolher o melhor pano, de escolher a pessoa mais perfeccionista para fazer a obra de arte mais perfeita, foi para encher gavetas e prateleiras com coisas que não eram destinadas a ser usadas.

E agora tudo me vem parar a mim que também não uso nada disso. E fico cheia de pena, quase como se parte dos interesses ou ocupações da minha mãe tivessem sido inúteis. Na prática, como se tivesse desperdiçado parte da sua vida com coisas que, em termos muito pragmáticos, não servem para nada. Isso deixa-me triste.

Quando me encher de coragem para arrumá-los a ver se antes os fotografo. Ao menos vêem a luz do dia e podem ser observados por alguém em vez de estarem, em prateleiras no topo de roupeiros, votados ao ostracismo.

Ao tentar avaliar o volume de trabalho que ainda tenho pela frente, espreitei para dentro de alguns roupeiros. É de pesadelo. Coisas infindáveis. Mas num deles, ao tentar perceber o que me parecia um embrulho feito de tecido, fiz uma descoberta que me deixou emocionada. O vestido de casamento da minha mãe. Era estreita e magra como uma modelo. Não sei como cabia naquele vestido, lindo. Parecia-me que estava embrulhado num tecido fino, branco. Afinal, percebi despois, parece ser uma camisa de dormir, também até aos pés. Deve ter sido a que usou na noite de núpcias. Não sei agora onde vou guardá-lo. Se tivesse uma casa gigante com uma divisão a servir de museu, engomá-lo-ia, mandaria fazer uma caixa de vidro e pendurá-lo-ia lá dentro, como se vê nos museus, um lindo vestido em exposição.

E fiz uma outra descoberta extraordinária: numa gaveta da grande escrivaninha, que tem um conteúdo também infinito, por baixo de exames médicos, dentro de um envelope que estava dentro de um saco, ou seja, totalmente camuflado, estavam cartas escritas pelo meu pai quando estava na tropa e namorava a minha mãe. No endereço estava Menina tal e tal (o nome da minha mãe). Não sei se vou gostar de ler ou se vou sentir-me intrusa. Ao pegar no molho, vi que a última estava num envelope feito à mão, quase a desmanchar-se. E tinha escrito 'Por mão própria'. Uma letra muito bonita, mais bonita que a do meu pai (que é bonita). Se bem percebi, datada de mil novecentos e vintes e tais, é uma carta do meu avô materno dirigida à Menina tal e tal, minha avó. Tenho que rever a data pois, se vi bem, a minha avó pouco mais seria que uma criança. Aliás, a minha mãe, se não estou em erro, nasceu quando a minha avó ainda nem tinha dezassete anos. Tê-los-ia quase, estava por dias, mas ainda não feitos. Creio. 

E muitos envelopes com muitas fotografias. Dos meus pais em jovens, dos amigos, de primos, minhas em bebé e até adolescente, dos meus avós. Tantas, tantas fotografias. Eu deveria ter paciência e tempo livre para ler tudo o que tenho encontrado, para organizar as fotografias e todos os achados.

Mas não sei quando será que isso pode acontecer.

Comecei  também já a separar roupa da minha mãe. Fico com muita pena. Há tão pouco tempo ela ainda usava aquelas blusas, aqueles casacos, aquelas echarpes. A vida é efémera, ingrata. Sei que é da natureza, que não há volta. Tantas vezes eu dizia: 'Ninguém cá fica'. Ninguém. Mas quando nos toca a nós, de perto, as coisas ficam muito difíceis.

Ainda no início de Novembro, há três meses apenas, quando a minha mãe resolveu ir para uma residência assistida, estive com ela a escolher a roupa que ia levar. Só levou roupa de inverno porque, segundo dizia, na primavera ou no verão, ela mesma iria a casa para escolher roupa mais fresca. Estava cheia de planos. Foi carregada. Pensava que ia ainda viver muitos anos, queria levar muitas 'mudas', sempre gostou de se arranjar bem e, além disso, tinha lá amigas e isso ainda incentivava mais os seus brios. Ainda assim, nos primeiros dias em que lá esteve e antes de começar abruptamente a decair, ainda queria mais ténis, uns pares de calças de fato de treino para fazer ginástica, mais casaquinhos, mais não sei o quê. Voltei a casa várias vezes para ir procurar o que ela me ia pedindo. Tinha-se esquecido também de levar o casaco de tricot que estava a fazer, lá andei à procura disso e mais de um saco com novelos dessa lã. Em qualquer instante desses dias em que estava a fazer as malas ou a pedir que lhe levasse mais coisas eu adivinhei que, traiçoeiramente, um monstro silencioso estava a devorá-la por dentro. Dois meses e poucos dias depois estava morta. E eu pensar nisto deixa-me ainda perplexa e tristíssima. Quando escrevo ou digo ou penso que a minha mãe está morta ainda me parece mentira. Uma mentira muito cruel.

Sei que, num plano racional, pode dizer-se que a minha mãe sofreu durante pouco tempo e viveu bem, motivada e autónoma, até pouco antes de cair doente e, em pouco tempo, morrer. Mas, num plano emocional, é muito difícil.

Por exemplo, vendo aquelas suas roupas, as suas carteiras, as suas coisas, tudo ainda tão presente em mim, custa-me muito. E custa-me a acreditar. 

Estou a pôr quase tudo em montes em cima da cama dela. E tenho combinado com a senhora que a ajudava nos cuidados ao meu pai -- e que continuou a ir a casa dela no mínimo duas vezes por dia ver se estava tudo bem e que a ajudava nas compras --, que ela vai lá a casa (tem a chave), vê o que eu coloco em cima da cama, escolhe para ela o que quiser, vê se há coisas que se possam dar a quem precisar. E, se houver coisas que ninguém conhecido queira, ela mesma doa ou põe no lixo. Isso para mim é uma grande ajuda pois não tenho que ser eu a desfazer-me das coisas da minha mãe.

Ah, é verdade. Descobri também um rolo grande e grosso, atado com uma fitinha, e com um papel por fora a dizer Diplomas. Só vi o que era cá em casa. Muitos diplomas. Do meu pai, da minha mãe, meus. E, no meio, uma aguarela da autoria do meu tio, irmão da minha mãe. Lembrava-se daquela pintura. Era eu pequenina e achava que aquela pintura era insólita, inesperada, bonita. Depois deixei de vê-la. Agora descobri-a no meio dos diplomas. Estas descobertas enternecem-me.

Enfim. Irei dando notícias.

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Uma boa sexta-feira

Saúde. Força. Paz.

domingo, setembro 19, 2021

Tenho uma capoeira. É de vidro. Mas há galos que tiveram que ficar de fora.

 


Gosto de fazer arrumações, das grandes. E, quando as faço, é de a a z

Neste caso, com o movimento de translação que imprimi aos roupeiros in heaven, deu-se origem a uma das derivadas destas mudanças: a crivagem para ver o que deve ficar e o que deve ser dado ou ir para o lixo.

Há uma informação essencial para compreender a minha casa mas eu, como gosto de manter alguma reserva, não a transmito aqui. Por isso, não deve ser fácil perceber porque é que numa casa grande há tanta falta de espaços para arrumação. Mas acreditem que há. Por isso, aproveito todos os lugarzinhos possíveis para enxertar um armário onde guardar a tralha.

O meu marido massacra-me com um mantra que me recuso a interiorizar: diz que não há falta de espaço, há é tralha a mais. Aos anos que o diz. Em parte terá razão, não digo que não.

Quando se compra uma casa usada ou se fazem obras e grandes mudanças ou se aceita a casa como ela é e apenas se melhora uma ou outra coisa. Nós optámos pela segunda hipótese. 

Uma das particularidades um bocado absurdas da casa é que, tendo a casa principal duas casas de banho, uma delas é tão grande, senão maior, do que o meu quarto. Um tamanho inusitado e sem jeito. Eu olhava aquele salão com irritação: um desperdício sem solução. Até que resolvi marimbar-me para a ordem natural das coisas e mandar fazer um roupeiro praticamente de parede a parede. Não é normal as casas de banho terem móveis destes mas azarinho.

Só que, como isto se deu numa outra encarnação, o roupeiro é de madeira maciça, cor de madeira, mais ou menos cor de mel. Se fosse hoje seria branquinho. Mas não, senhor, uma coisa imponente e despropositada na big casa de banho. Agora olho para ele e só me apetece pintar. Um dia ainda pego numas latas de tinta, talvez branco, talvez branco azulado, e graffito aquilo tudo, talvez um graffiti a dois tons.

Bom: aquele roupeiro tinha tudo -- roupas do meu marido que estavam boas e que eram boas mas, na altura, ou um pouco apertadas ou um pouco largas, lençóis, almofadas, pijamas, produtos de higiene. Ou seja, cheio como um ovo.

Depois havia o guarda-fatos ultra-vintage que era da mobília de quarto dos anteriores proprietários, daqueles móveis em mogno num castanho quase preto com o qual consegui conviver até há algum tempo mas que, progressivamente, se me tornou quase sepulcral. Já antes tinha colocado pedra mármore nos tampos da cómoda e mesas-de-cabeceira como forma de aclarar o ambiente. Agora o quarto está outro, como já antes o referi. Esse guarda-fatos foi para o quarto do estúdio, depois de esvaziado.

Na cozinha desse estúdio, para uma das paredes mandámos fazer um móvel, igualmente em madeira-madeira, também em cor-se-mel, creio que é cerejeira, igual aos demais móveis da cozinha. Por fora, são portas de alto a baixo. Mas, por dentro, esse móvel é um mundo. Tem roupeiro, tem arrumação, tem gavetas, tem uma parte despenseira. Também estava cheio.

E o que estava no quarto do estúdio, um de pinho-mel que, quando a minha filha era pequena, estava no seu quarto, foi para a casinha das ferramentas.

Ora, tudo o que estava dentro de cada um teve que saltar cá para fora para que a arrumação agora se fizesse racional, organizada, lógica, optimizada. 

Muita coisa foi à vida. Temos levados sacos de roupa para aqueles contentores da doação de vestuário. Outras coisas vão simplesmente para o lixo. E tenho descoberto coisas surpreendentes. Hoje vi uma colcha de que não tinha qualquer ideia. É linda. Deve ter sido das tias do meu marido, quiçá até da avó. Não me lembro do nome do tecido, se é que é aquele de que hoje à tarde me lembrei. Tem um relevo, parece de seda, é espesso. É em tons de marfim. Pensei logo trazer para o meu quarto da casa nova. Mas, claro, lavei-a. 

Quando foram as partilhas foi um processo tão atribulado, tão louco, que acabei por nem saber o que tínhamos trazido. Depois o meu marido também não queria usar nada daquilo. Por ele não tinha ficado com nada. Como elas tinham dito que gostavam que as coisas fossem repartidas pelos sobrinhos, cumpriu-se o desejo. Mas muita coisa foi para o lixo, logo no momento em que se separavam as coisas. Como eram coisas boas e bonitas e tão estimadas por elas, não consegui deitar fora o que trouxemos apesar do meu marido não querer ver aquilo nem pintado. Portanto, ficou tudo em sacos, na arca, ou encafuado nos roupeiros. 

Agora, nestas arrumações, ao sair tudo à cena, descobri coisas muito interessantes. E nem ele sabe de quem é que as coisas são. A bem dizer nem eu sei. Às tantas também pode ser das minhas avós. O que sei é que são autênticas revelações. 

E, claro, lavei tudo. Hoje foram mais três máquinas de roupa. O que me valeu é que, com o vento que esteve, estendido tudo ao sol nas cordas que prendemos entre as árvores, seca tudo num instante. Fica a roupa bem seca, rija, perfumada. Só depois arrumo nos seus novos poisos. 

E tenho a dizer que sigo o método kondo. Sigo quer na seleção do que conservo e do que vai fora, quer na dobragem e acondicionamento. Gosto imenso de o fazer. E gosto de, depois, olhar para as gavetas, tudo tão bem organizado. 


Tenho ainda a dizer uma outra coisa. Penso que já é sabido por quem por aqui me acompanha: acho piada às galinhas e aos galos enquanto objectos. Prestam-se a representações divertidas. Por isso, havia galináceos all over. Com o touch minimalista da minha filha, todos esses meus excessos foram recolhidos. Então não se sabia o que fazer a tanta bicheza, sendo que é bicheza esteticamente do meu agrado. Então, tive uma ideia. O meu marido, se estivesse aqui diria que isso é o pior, eu ter ideias.

Mas tive e estranhamente ele achou a modos que um disparate... mas não se opôs ferreamente. Portanto, a coisa concretizou-se. Uma vitrina é agora a capoeira em que se juntam quase todos os cacarejantes. Está na cozinha, ao pé do frigorífico. Está cheia. Mesmo assim não couberam todos pelo que há uns quantos tresmalhados.

Fiz o mesmo com os carrinhos antigos, uma colecção de quando o meu marido era pequeno. Estavam num rebordo da parede do antigo quarto do meu filho. Impossível limpá-los. Pensei no mesmo das galinhas mas numa versão diferente. Acho que ficou com piada e, da próxima, a ver se não me esqueço de fotografar. 

E é isto. São duas da manhã, trabalhei que me desunhei durante todo o santo dia, e, como é bom de ver, daqui hoje não sai mais do que isto.

Ah, creio que não vale a pena dizer que o meu marido, com isto tudo, só não me rifa porque se calhar tem receio que ninguém queira habilitar-se. O que ele tem protestado só eu sei. 

(Mas, no fim, quando vê tudo arrumado, clean e bem cheiroso, fica caladinho e eu percebo que gosta do produto final. Mas, porque acha que já merecia um dia de descanso, não diz nada para marcar a sua posição)


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Uma vez mais chego a esta hora e sinto-me incapaz de responder e agradecer os comentários. 
A ver se este domingo ou na segunda consigo. 
As minhas desculpas.
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Desejo-vos um belo dia de domingo

sexta-feira, março 26, 2021

A vida continua

 



Estamos, de novo, apenas os dois em casa. As obras em casa dos hóspedes acabaram e eles regressaram. Enquanto cá estiveram, porque ficava aqui com companhia até tarde (quem sai aos seus não degenera), apenas pegava nisto lá para a uma ou uma e tal da manhã. Portanto, apesar de ler todos os comentários, não consegui responder a nenhum. Foi sempre meio a dormir que acabei cada post. Hoje, contudo, apesar de poder parecer que ia ser dia de quase descanso, foi, na verdade, outro dia dos valentes. Tentámos condensar um dia inteiro em apenas parte dele e, de tarde, fomos a casa da minha mãe, levámos sumos e bolos e um menino e uma menina para fazerem coro nos parabéns a você. Não foi um comportamento dos mais canónicos mas um dia não são dias, e um dia como o de hoje não podia passar em branco. Além disso, depois não poderíamos mudar de concelho. Portanto, teve que ser.

Não queria cantorias, não queria festejos, ela. Mas, creio, eram meros mixed feelings: por um lado custa-lhe alegrias estando a memória do meu pai ali ao lado ainda tão recente, ele no quarto, ela a querer que a maltinha fizesse pouco barulho para não o incomodar, e, por outro, gosta da alegria de nos ter ali a celebrar a sua vida. Sendo dia de trabalho, os netos não puderam ir e sendo proibido circular entre concelhos a partir de hoje, também não poderia ser no fim de semana, o melhor foi o festejo ser mesmo assim, restrito a nós dois e a dois dos bisnetos. 

Mas ficou feliz. A vida continua.

A bisneta ensinou-a a fazer algumas coisas no tablet, o bisneto comeu que se regalou e foi ver televisão, todo bem instalado, fomos apanhar laranjas, conversámos, provei o poncho que tem estado a fazer-me -- e, sempre que em casa, estivemos sempre de máscara, com as janelas bem abertas e lanchámos à vez. Os meninos mais pequenos andam na escola, sem máscara, podem trazer o bicho -- nunca se sabe. Fica muito estranho: fomos habituados a esperar uns pelos outros para comermos ao mesmo tempo, fomos habituados a beijar-nos e abraçar-nos quando nos vemos. Agora é tudo diferente. 

Mas adaptamo-nos. Que remédio. 

Depois fomos levar os meninos a casa e, aproveitando a viagem, fomos à farmácia e, en passant, fomos comprar comida ao restaurantezinho a que, em tempos, íamos. Só funciona em regime de take away. Mas foi um bocado assustador para quem, como eu, vive aqui recatada e bem mandada. À porta do restaurante umas quantas mesas. Presumo que seja o que se chama venda ao postigo. Uns bebem cervejas, outros comem amêijoas e bebem uns copos, outros conversam e fumam. Todos sem máscara, todos em proximidade total. Todos. Uma animação das antigas, tertúlia à maneira. O meu marido quis logo dar meia volta. Como coloco os meus interesses acima dos meus incómodos, de máscara bem afivelada, tentando arranjar um corredor de ar não contaminado, consegui ir buscar uma ementa. E, de ementa em punho, lá fui ter com ele, que estava afastado, para escolhermos o que encomendar. Depois, contrariado (e quase zangado comigo por eu não ter desandado de imediato), lá foi encomendar os comes. Depois fomos fazer tempo e, quando regressámos, continuava a bem frequentada e animada reinação. Todos sem máscara, todos a escassos centímetros uns dos outros, todos falando alto e bom som, ou seja expelindo ar em quantidades generosas. Tal e qual como se não houvesse nem nunca tivesse havido covid. 

Não chegámos a casa cedo. E, depois de jantar, ainda estive a resolver o que chegou durante a tarde. E isto depois de me ter levantado com as galinhas. Não gosto nada de ter uma reunião logo à primeira hora da manhã. Nada, nada. Não me importo de trabalhar até às quinhentas. Mas não gosto de interacção humana ao início dos inícios da manhã. Mas, enfim, por vezes tem que ser. Foi mais um dia em que estive numa reunião com o cabelo molhado. Dantes saía de casa com o cabelo molhado mas, pelo caminho, o cabelo secava. Agora vou do banho para a reunião quase directamente, apenas o tempo de me vestir e de tomar o meu rápido pequeno almoço de permeio. Não tem mal: faz de conta que é deliberado, um wet look. Não uso secador mas, ao princípio, ficava a achar que, se calhar, devia usá-lo para não me apresentar quase saída do banho. Agora não importo, até acho uma certa graça.

Por isso, é também mais um daqueles dias em que, se não fosse este gosto em escrever, já deveria era estar entre lençóis. Mas ainda aqui estou, os dedos saltitando alegremente sobre o teclado, os dedos ainda bem despertos apesar da cabeça estar a dormir. Não sei como se explica isto. É um misto de não passar sem escrever com gostar de estar com quem, aí desse lado, me acompanha todos os dias. 

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As imagens mostram fantásticas obras de arquitectura e retirei-as de 50 Times Architects Really Outdid Themselves And People Celebrated Their Works Online

Katie Melua interpreta The Walls Of The World

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Entretanto, ao abrir o YouTube, tenho a novidade que Liziqi ganhou um daqueles prémios do Guinness, coisa que me deixou de queixo caído. Pensava que os guiness eram para a maior feijoada, para o maior bolo rei, para o maior nabo ou para proezas do género. Afinal, toma.

Chinese YouTuber 李子柒 Liziqi earns GUINNESS WORLD RECORDS TITLE


Li Ziqi is a Chinese food and country-life blogger, entrepreneur, and internet celebrity. She activated her YouTube channel on 22 August 2017 and her content is about creating dishes from basic ingredients and tools using traditional Chinese techniques.


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Uma sexta-feira feliz

terça-feira, novembro 24, 2020

Um dia normal em tempos pouco normais
[Com jasminum mesnyi em flor, folhas caídas e culinárias de permeio]

 

Encanto-me com as flores que vou descobrindo no meu jardim. O gosto pela jardinagem da anterior proprietária é muito idêntico ao meu. Todas as suas opções me agradam e me surpreendem. Ando com o telemóvel a fotografar e a identificar. Que prazer sinto nisto.

Hoje descobri que tenho um maravilhoso jasminum mesnyi. As frágeis hastes estão a cobrir-se de florzinhas amarelas. Quando era apenas verde estava perto de uma das buganvílias e apenas há pouco tempo percebi que aquilo não eram rebentos frescos de buganvília. Que contente fiquei quando as pequenas florzinhas amarelas começaram a surgir. Foi como se fosse magia, as florzinhas a brotarem, de dia para dia mais florzinhas. Tão perfeitas, tão lindas, tão cheias de sol.

A romãzeira, por sua vez, como que ao despique, está com as folhinhas todas amarelas, muito bonita. E mais bonita ainda quanto as folhinhas vão tombando e a relva está, ela própria, coberta por aquela poalha dourada. Encanto-me, encanto-me.

Ao pé está um vaso que também está florido, umas flores matizadas, rosa e branco. Tudo tão bonito, deus meu. E uso a palavra deus deliberadamente pois tem que haver algures um bando de divindades ocultas e desenhar e a fazer existir todos estes pequenos seres tão superiores e tão cheios de beleza. 

A anterior proprietária queixava-se das formigas, dizia que havia sempre muitas formigas, que tinha que pôr um pó para as neutralizar, que lhe davam conta das flores. Ainda não dei por elas e as flores rebentam de alegria e cor. Fico feliz por ver como as flores não me estranharam e parecem felizes com a minha companhia. 

As florzinhas das buganvílias também vão caindo na relva. Apanhei umas quantas e coloquei na taça que está em cima da mesa redonda do recanto da sala junto à cozinha e a que chamamos copa. A minha filha já lá tinha posto algumas que já estão secas embora ainda bonitas e eu agora juntei outras, mais frescas.

De cada vez que passo naquele bocado de jardim penso que, se calhar, deveria varrê-lo. Mas não o faço. Aquele colorido é bonito demais para ser varrido da superfície da terra. Ah, se eu pudesse conservar todos estes instantes. Fotografo para ver se as imagens que vou colhendo me ajudam a guardar a memória destes momentos de cor, paz e beleza.

Hoje, durante a caminhada da hora do almoço, passámos por uma casa em construção. Deve vir a ser uma bela casa. Contudo não me seduz. Casas feitas de raiz não me seduzem. Casas que já viveram outras vidas, sim (desde que me agradem, claro). Esta, onde agora vivo, com um jardim que vinha sendo plantado, melhorado e acarinhado talvez há uns vinte anos, tem para mim um valor inestimável. Quando por aqui passa, a anterior proprietária fala sempre nos cursos de jardinagem ali da Ajuda, diz que eu iria gostar. Claro que sim. Hei-de frequentá-los. Assim tenha disponibilidade, lá estarei. Penso que, tendo aprendido a melhor cuidar dele, ainda mais prazer terei com este belo jardim que me encontrou e pelo qual logo me apaixonei.

Tirando isso, o que posso acrescentar é também muito simples.

No domingo tive preguiça de fazer sopa. Fiz esta segunda de manhã. Fiz assim:

Numa panela, coloquei água, três cebolas, duas cenouras bem grandes, duas courgettes ainda maiores, uma batata doce cor-de-laranja, um pouco de sal. Lume no máximo para ferver, antes de baixar. Depois, num tachinho mais pequeno, coloquei uns quantos feijões-verdes laminados, uma mão-cheia de ervilhas e cenourinhas baby congeladas e umas favinhas pequenas também congeladas. Verti um pouco do caldo da panela sobre estes legumes e depois de ferver, depois baixei. Quando estava tudo cozinhado, já fora do lume, juntei azeite virgem de baixa acidez e, com varinha mágica, desfiz tudo até estar um belo puré de legumes. Juntei, depois, os legumes do tachinho com respectivo caldo. Misturei tudo com uma colher e juntei uma generosa rama de hortelã. 

Ao almoço, estava morninha, saborosa, bem cheirosa.

Comemos sopa. O meu marido mexeu ovos onde misturou alguns legumes que ontem sobraram do peixe cozido do almoço e ficou uma saborosa tortilha espanhola. Com isso fez umas sandes, em pão quentinho, a que juntou umas folhas de alface. De sobremesa comi dióspiro cortado às rodelas com canela.

Para o jantar, descongelei carnes e miúdos de galinha do campo (vulgo canjinha de galinha) e, como me pareceu pouco, tirei um saquinho com peitos de frango. Pensei: faço um arroz vagamente de frango para acompanhar peito de frango recheado. Afinal, os peitos de frango eram bifinhos do lombo de porco. 

Portanto, acabou por ser assim:

Num tachinho, coloquei um bocado de água com um pouco de sal, uma cebola grande, umas folhas de louro, salsa e os bocados de galinha e respectivos miúdos. Deixei que cozesse. Quando tudo estava macio, retirei a carne que desossei e cortei tudo aos bocadinhos. Coloquei o caldo de cozer numa caneca. No tacho coloquei o caldo da cozedura que completei com água para encher a caneca, outro tanto só com água da torneira. Piquei lá para dentro uma cebola picada, feijão verde cordado aos bocados grandes, uma cenoura aos bocadinhos, ervilhas qb. Deixei cozer um bocado. Juntei, então, uma caneca de arroz basmati e as carnes cortadas. Depois de ferver, baixei, o tacho sempre tapado. Quando o arroz absorveu todo o caldo, desliguei.

Entretanto, numa frigideira grande juntei azeite, dentes de alho com a casca a que apenas dei um golpe, muitos, uma cabeça grande inteira, mais folhas de louro. Quando os alhos começaram a dar mostras de querer abrir, coloquei os bifinhos. Polvilhei com um pouco, muito pouco, de sal, um pouco de orégãos, poucos, um pouco de alecrim seco, pouco. Tudo na conta. Fui virando até estarem com ar de querer ficar dourados, macios.

O arroz e os bifinhos foram acompanhados de salada de alface. E o que tenho a confessar é que a frigideira foi colocada na mesa e foi difícil resistir a molhar vezes de mais o pão de nozes, quentinho, no molho. 

Para sobremesa, comi maçã que cortei às fatias, cada uma com uma lasca de um bem apaladado cheddar maturado.

A ver se arranjo coragem para intercalar com uns jantares mais à base de chá para ver se não chego ao verão a pesar para cima de uns cem quilos. Ponho-me a cozinhar de gosto, depois gosto de sentir os aromas desta culinária caseira, e depois, com esta vida saudável que levo e que ainda mais apetite me dá, sinto vontade de comer mais do que a conta. Acho que, em vez de fazer uma simples caminhada por dia, tenho é que passar a andar a correr e aos saltos a ver se dou cabo das avantajadas calorias que esta santa vidinha corre o risco de me trazer.

Esta coisa do corona tem coisas tramadas -- e escuso de elencar todas as mil coisas que estão a destruir muitas vidas e a virar o mundo do avesso -- mas, para mim, até ver, apesar da falta que me faz a proximidade estreita e assídua dos meus mais queridos, tem tido alguns aspectos positivos: não perco horas no trânsito, não vivo horas e horas fechada numa torre de vidro sem janelas que se possam abrir, não passo a vida a comer em restaurantes, vivo muito mais em contacto com a natureza, desfruto mais o prazer de estar em casa, não tenho que conviver de perto com gente de quem prefiro guardar distância. Até ando com vontade de fazer doces, compotas, licores. E até nem é tanto para depois me lamber com eles, é, sobretudo, pelo cheirinho bom que imagino que a sua confecção deve espalhar pela casa. Ando nisto. 


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E uma feliz terça-feira
Saúde. Alegria. Força.

quinta-feira, abril 30, 2020

O enigma





Não sei se é a simetria se o requinte do recorte. Olho a pequena flor e parece-me de uma beleza extraordinária. Outras vezes são as palavras. A ligação entre ideias. O inesperado do significado, o inesperado do som. A harmonia. A palavra certa na frase certa, no raciocínio certo. E isto de dizer que é certo é absurdo. Mas certo no sentido de me soar bem, de me surpreender e me agradar. A ligação de formas, a elegância das linhas. A subtileza das cores. A toada. Aquela melodia que nasce de lugar nenhum. A beleza que nos leva, que nos enleva.

Referem-me os clássicos. Sem os clássicos tudo é nada, sugerem-me. Percebo. Como se, sem ter passado por aí, qualquer juízo meu fosse juízo feito em campo aberto, sem escala, inválido. O certo, segundo percebo os conselhos, seria começar pela linha de terra. Depois, então, aventurar-me em busca da linha de água. Só depois ousar a linha de horizonte.  E eu até aceito que possa fazer sentido. Há quem acredite que a b chega-se depois de passar pelo a, a c depois de passar pelo b. As bases, a sequência certa. É o que se ensina na escola, a percorrer o carreirinho.

E, no entanto, há outras cartografias. Não há como negá-las. Situam-se no ar, em terra de ninguém. Cartografias insolentes, não mapeáveis. Não se deixam decifrar. Referências voláteis, inexplicáveis. Topologias que se deslocam, variáveis no tempo, no espaço, lugares apátridas, sem fronteiras, imateriais. Território talvez de uma pessoa só. E de quem queira lá entrar e partilhar esse indecifrável espaço de afinidade, de afecto, esse lugar onde não há explicações possíveis. 

Não sei de certezas nem posso dizer que só sabe alguma coisa quem teve a paciência de começar pelo princípio, quem soube colher o que de melhor alguma vez se fez. Não sei de nada disso, não sei o que é melhor. Mas isso é talvez porque eu sou outra, viro as costas ao saber e aos consensos, não sigo lição moral, não sigo nada, sou bicho de trilhos não percorridos, sou de me aventurar, sou de me deslumbrar com o último fiapo de luz a escorrer pela montanha ao longe, sou de ficar meia hora a olhar para uma frase, sou de ficar com lágrimas nos olhos a olhar um céu imenso e nele apenas uma lua a crescer e uma estrelinha brilhante. Sou de outros vocabulários, sou de outras contas, sou de outras bibliotecas, de outros caminhos. Não sou de me deixar agarrar. Não sou de soletrar, não sou de alfabetos, não sou de tabelas periódicas, não sou de tabuadas. Prefiro a variabilidade das bases, das escalas, prefiro o enigma.

É isso.

Sou capaz de percorrer mil labirintos, de me arriscar por mil abismos, sou capaz de negar os clássicos e as leis mais básicas da física, sou capaz de ignorar a gramática e as mais sábias recomendações de quem sabe mil vezes do que eu. Sou mesmo -- e tudo só para continuar, em total inocência, a procurar a intangível e inexplicável beleza. O que quero mesmo é permanecer na ignorância, não desvendar, nunca, o enigma. Viver no limiar do eterno mistério. 


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Vermeer e Nick Knight ao som de Fields of Gold na voz de Katie Melua

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domingo, janeiro 19, 2020

Não era para ser isto... Sorry...





Este meu sábado foi bem cansativo. Devemos ter feito para cima de quinhentos quilómetros e tivémos um trabalhinho, por sinal, um bocado a atirar para o pesado. Fomos buscar uma secretária enorme, de canto, numa bela madeira, maciça, muito pesada, e uma cadeira com assento e encosto de pele, enorme, com braços, com rodas. Faziam parte da mobília do meu gabinete há uns anos e, quando nos mudámos, tive pena de me desfazer da mobília pelo que a comprei à empresa. Havia uns móveis antigos, tipo arte nova, muito bonitos, mais uma mesa redonda de reuniões, e isso foi tudo para casa do meu filho, uns para a sala e a mesa para a salinha de refeições. Na altura, ele estava a inaugurar a sua casa actual e alguns móveis davam-lhe jeito e aqueles são invulgares e bonitos. A secretária e a cadeira, por serem tão grandes, foram para um outro lugar. Não sabia onde pô-las. Mas, agora que esse lugar vai ficar indisponível, ou me desfazia delas ou íamos buscá-las. Fomos. Tivémos que desmontar tudo, o que foi um castigo. Já está tudo in heaven e curiosamente acho que vai ficar bem no estúdio. O meu marido diz que duvida que, alguma vez nesta vida, consigamos voltar a montar aquilo tudo mas conhecemos um rapaz na aldeia que é muito habilidoso, ele será capaz de resolver aquele puzzle.


Tenho pássaros a voar dentro da minha cabeça. Pássaros, borboletas. Nuvens, flores, sorrisos. E tenho a esperança de um dia conseguir tempo e vontade para me sentar a uma mesa e desatar a escrever. Mesmo que as palavras contenham dores ou lágrimas é com sorrisos dentro de mim que me vejo a escrever. Mas, como já o contei aqui muitas vezes, quando penso nisto, o que primeiro me vem à mente é saber onde é que me instalaria a escrever. Pode parecer fútil, e certamente é, mas tenho que ter um espaço adequado para deixar que a coisa flua sem entraves. Confortável, sem me distrair, sem me isolar, sem me sentir maçada. E hoje, ao imaginar a secretária instalada no estúdio, debaixo da janela que dá para o jardim e para as laranjeiras, pareceu-me um lugar muito apropriado para quando estiver no campo. Já me imagino a arranjar uma jarra de vidro, transparente e incolor, e lá dentro colocar alecrim, rosmaninho. Ou lírios.

E, antes de ir para lá, fazer uma limonada sem açúcar e levar um jarrinho bonito e um copo, para ir bebendo. Gosto de limonadas sem açúcar. Talvez também um pratinho com alguns miolos de amêndoa.


Mas nisto da escrita, passando por cima da criteriosa escolha de lugar convidativo e da dúvida metódica que me leva a questionar se alguma vez terei alguma coisa de jeito para dizer, tenho ainda uma outra questão de fundo. O meu lado prático leva-me a pensar que só fará sentido pôr-me a escrever se houver editora que me publique e, portanto, dou por mim a pensar que o melhor é tentar arranjar editora e, só se o tiver arranjado, é que me armar em escritora. Mas, por dentro, penso que os escritores a sério não pensam assim. Repreendo-me. Mas não me levo a sério pelo que, ao mesmo tempo me auto-rotulo como fútil, penso que não estou nem aí e, muito cá na minha, continuo a ter estes pensamentos a atravessarem os meus sonhos.

Veremos se algum dia me dará para ousar. Se der, será entrega total. Acho eu.


Depois, à noite, ainda fomos a casa dos meus pais. O meu pai já estava a dormir e a minha mãe, claro, protestou por termos ido àquela hora, já cansados, quando deveríamos era ter ido descansar.

No caminho, de dia, fui lendo. Quando saio de casa, é sempre com alguma dificuldade que escolho um livro para a viagem. Vários apelam por mim mas o que faz sentido é levar apenas um. Volta e meia penso que deveria disciplinar-me, enquadrar as minhas actividades. Horários. Às terças, quintas e sábados, entre as tantas e as tantas, ler. Por exemplo. Mas isso é contranatura em mim. Sou naturalmente desorganizada e indisciplinada. Acho sempre que dou conta de tudo e que, quando chegar a hora de cada coisa, conseguirei dar resposta. Por isso, o meu programa é aberto e, como é óbvio, algumas coisas vão ficando para depois. Devia escrever menos aqui e ler mais. Devia. Mas isso era se eu fosse boa nos deveres e não como sou, toda entregue aos prazeres.

É como agora. Depois do post da dança em versão slow, estava com vontade de escrever uma coisa, uma rêverie azougada sobre uma certa noite de insónia -- e até estava já a imaginar o lençol, o livro, as letras gravadas -- e, por dentro, toda eu já me ria com a perspectiva de trocar as voltas, de brincar. Mas, desmiolada como sou, mal me apanhei com a página em branco, sem pensar desatei a escrever este desassunto que aqui têm. Não sou de fiar, é o que é. Sorry. As flores e os pássaros que voam dentro de mim levam sempre a melhor.


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As fotografias foram feitas este sábado in heaven e, como é bom de ver, dei um banho de azul na última.

Convido-vos ainda a descerem para recordarem como é um bom um slowzinho a preceito.

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A si que aí desse lado me acompanha um dia muito bom

domingo, dezembro 22, 2019

Crónica de um dia de Natal avant la lettre
-- com fotografias das minhas decorações festivas --




Dia feliz. Dormimos bem. Acordámos cedo mas não absurdamente cedo. Claro que, por essa altura, já o avô estava de volta das suas incursões madrugadoras e, portanto, foi ele que preparou o pequeno almoço para os meninos. Mexeu ovos, comeram pão com manteiga e beberam leite. No fim, o avô perguntou-lhes se queriam frango ao que ambos logo quiseram pelo que cada um comeu uma asa de frango. A mãe quando soube ficou escandalizada.

[O jantar de sexta-feira foi frango no churrasco, não confeccionado em casa mas adquirido. Tendo eu trabalhado, não teria tido tempo de ir às compras e cozinhado a tempo de o repasto estar pronto quando os comensais se apresentassem. Mas, apesar de os mais pequenos comerem como lobos, comprámos demais e sobrou bastante].
Mas, então depois do pequeno-almoço, fomos todos às compras. 

Para o almoço, uma vez mais, resolvemos simplificar. Não vi como ir ao supermercado, cozinhar, ir às compras e estar tudo a postos quando chegasse a hora de almoço e se nos juntasse o resto da turma. Por isso, fomos buscar a um restaurante que vende comida para fora. 

Quando enviei a fotografia da ementa por sms ao meu filho e lhe liguei para saber o que queriam, até pensou que tivesse acontecido alguma coisa. Desde que nasceu que sabe que a minha onda é fazer tachos, panelas, tabuleiros a transbordar de comida e não de a comprar feita. Mas hoje teria sido impossível.

Portanto, foi isso. Um descanso. Até me soube bem. E a eles também que voltaram todos a fazer jus ao seu proverbial apetite.

Ainda me lembro de como eu era quando os meus filhos eram bebés ou pequeninos. O meu filho sempre foi um belo garfo. Fez um short cut entre a fase de mamar e a de comer de tudo. Odiava biberão e as papas davam-lhe vómitos. Nem o cheiro do cerelac ou do nestum ele suportava. Queria era comida de adulto. Um desatino. Para conseguir que ele bebesse leite, tinha que lhe dar o biberão quando estivesse ferrado no sono. Desse-lhe peixe frito com arroz de tomate e nem a pele do peixe ele queria que eu deixasse de lado: um entusiasmo. Ainda me lembro de uma indigestão que arranjou, devia ter um ano e tal, com o leitão da Bairrada que devorava. Estávamos de férias na Curia e queria lá ele sopinhas moídas ou comida de bebé. Qual quê. Quase se atirava em voo picado para as travessas de leitão, incluindo a pele estaladiça e respectivas batatas fritas. Se eu tentava impedi-lo, chorava furioso como se eu estivesse a privá-lo de se alimentar. Enfim. A minha filha era o contrário. Não gostava de comer. Era picuinhas, nunca tinha apetite, era super vagarosa, qualquer coisinha que achasse suspeita ou diferente do habitual rejeitava. Ainda é um bocado assim, excepto se for coisa que lhe agrade mesmo. Eu insistia, queria que ela comesse mais, distraía-a a ver se conseguia enfiar-lhe mais algumas colheradas à sorrelfa. Hoje percebo como tudo isso era disparatado.
Vejo como são os meus filhos: se os filhos não querem comer, não comem. Pelo contrário, ralham é se os vêem a comer demais. Talvez por isso, as crianças comem de tudo e comem de gosto.

Bem.

A seguir, ao almoço começou o forrobodó, tudo no maior chinfrim. Para ver se se mantinham sossegados, tive a ideia de fazerem o Got Talent ou The Voice. E foi uma festa. Uns foram para os quartos para ensaiarem. Os dois rapazinhos do meio resolveram compor as suas canções. O mais novo (o mais novo, não contando com o bebé) cantou uma canção interminável, cheia de sentimento, bem puxada à emoção. Canta bem e gosta de actuar. Enquanto isso, o bebé cantava ainda mais gritadamente e mais emocionadamente, quase abafando o canto do mano grande. O outro, aquele que é, em absoluto, um boa onda, cantou uma canção triste com uns meninos infelizes que tinham uns pais que não tinham trabalho. Uma coisa surpreendente. A menina, toda star, cantou o Trevo do Diogo Piçarra mas numa versão brasileira (e ficaram admirados de eu não conhecer pois, pelos vistos, é coisa bem conhecida, pelo menos na faixa etária dos sete aos onze anos) e ficou contente por ver que a ouvíamos com atenção. A seguir foi o mais velho. Mais crescido, com alguma timidez por ver os estarolas dos concorrentes e os adultos em volta na assistência, de cada vez que ia começar, desatava a rir. E eu com ele. Cantou o 'Vejam bem'. Pôs-se a cantar baixinho e, então, o avô desatou a cantar alto e bom som, quase o inibindo. Teve, então, que optar por uma canção em que o avô não competisse por ele. A seguir foi a votação mas, milagre dos milagres, empataram todos. Queriam, a seguir, desempatar mas, nessa altura, achámos que estava era na hora de irmos para a rua.

O ar estava saturado de tanta humidade mas não estava nem muito vento nem chovia. Portanto, ala que em casa, fechados, a coisa fica ingerível. E então andaram a caçar tesouros, andaram de carrossel, andaram a comer fatias douradas e pão quente e eu comi uma coisa que adoro, uma azevia com recheio de grão. Já mais para o fim da tarde regressámos a casa. Nessa altura o bebé foi para casa com os pais para ver se dormia a sesta. Mas alguns dos outros, especialmente a menininha, também já davam sinais de rabugice. Tinham tido, na véspera, um jantar com os tios e tias do lado da mãe e respectivos primos pelo que tinham estado a pé até à meia-noite, tendo depois acordado às oito da manhã. Por isso, perto das oito da noite já estavam na implicância uns com os outros.

O jantar foi outra vez tercearizado. Mandámos vir pizzas feitas em forninho de lenha, pizzas das boas. E fiz outra coisa: numa frigideira, um fio de azeite, cebola ripadinha e salsa cortadinha. Alourou e amoleceu lentamente, depois juntei frango (do frango assado da véspera) cortado aos bocadinhos. A seguir juntei ovos e fui envolvendo até estar com aspecto de ovinhos mexidos. Acompanhado com arroz branco. E salada de tomate.

Entretanto, o bebé já tinha regressado mas os pais foram jantar com amigos.

E foi o jantar e foi o apetite geral e a alegria de sempre. No fim, o bebé veio ter comigo: 'Há geado?'. Ao princípio não percebi: 'Geado?' e ele, 'Sim, geado. Ali' e apontou para o frigorífico. Havia gelado, sim senhor.

De volta à sala, já todos arrebitados e bem dispostos, foi a galhofa e a brincadeira. Primeiro estiveram a fazer de conta que iam operar um deles: anestesista, cirurgião, enfermeiro. Tirar o apêndice. O mais crescido dizia: pinça, bisturi, agulha; e o bebé ia passando um pauzinho não sei de quê, o martelinho do xilofone, uma caneta. O mais crescido prosseguia: uma cana de pesca. O bebé passava a coisa de apagar velas. O mais crescido dizia: boa, já apanhei um robalo. A seguir veio outro que ficou a agarrar a cabeça do paciente. Iam pôr-lhe uma bochecha robot. E vá de anestesia. O que me rio a ouvir as maluqueiras deles.

Pelo meio, eles próprios rebolavam, riam. 

Por fim, a cirurgia já tinha virado wrestling com os quatro rapazinhos nas lutas amalucadas, a voarem uns sobre os outros.

A menina estava com a tia nos penteados, na manicura, nas massagens. Estiveram também a ver recordações que a tia guardava em caixinhas e que sempre preservei intactas, tal como ela cá as deixou, nomeadamente um vestido de noiva para a Barbie que a minha mãe fez como se fosse um vestido a sério, em seda e tule, uma verdadeira obra de arte.

Nessa altura, a ver se os rapazes se acalmavam, lembrei-me de brincarem às adivinhas. 

Nessa altura já o avô estava deitado no seu sofá a ver televisão, razoavelmente conformado à impossibilidade de se manter a ordem. 

Aderiram mas não a adivinhas ditas mas por mímica. Nessas coisas, a minha filha brinca com eles como uma igual e foi uma risota, uma diversão. Coisas engraçadas, coisas inesperadas, coisas com muito sentido de amor. Por exemplo, o mais crescido (onze anos) pôs-se a teclar. Os outros: pianista!, informático!, escritor! e ele: Não. Um dirigente do Benfica a enviar mails. Pimbas. Palavra de sportinguista.

E assim foi até que os que tinham ido jantar fora chegaram. Fiquei na sala a ver se descobria uma meia do paciente que tinha estado a ser operado pois andava com um pé à vista. Lá achei. E em menos de um par de minutos todos se vestiram, despediram, beijinhos e até daqui por poucos dias.

Ficámos, então, os dois. A casa quase virada do avesso e nós quase de rastos.

Agora a casa está quase arrumada e silenciosa. Estou a ouvir a Katie Melua a cantar canções natalícias.

Hoje de manhã, encontrei uma senhora que conheço que me disse que, pelo Natal, cá em casa deve ser uma alegria, uma casa cheia. Depois corrigiu: no Natal e sem ser no Natal. É verdade: tenho a sorte de ser muitas vezes, de ser Natal muitas vezes por ano. E tenho a sorte de todos gostarem uns dos outros -- que é o que mais me enche de felicidade -- e de gostarem de estar juntos, cá em casa. 

Já passa bem da uma da manhã e o meu marido já se foi deitar. E eu para lá caminho.

Conforme ontem tinha dito que ia tentar,  juntei aqui, para vos mostrar, algumas fotografias das minhas decorações natalícias. Como se vê, é tudo muito pouco elaborado: meia bola e força. Gosto de luzinhas, gosto de motivos simples, coisas que num instante se disponham e que, no fim das festas, rapidamente se recolham.


E já é domingo e, uma vez mais, não vi televisão nem sei de notícias ou temáticas relevantes para o futuro da humanidade. Mas, para dizer a verdade, não me fez muita falta. Terei tempo de saber a quantas ando até porque o que é mesmo importante vive dentro de mim, num cantinho do meu coração.

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E, por ora, nada mais. 
A todos desejo um belo dia de domingo.

domingo, abril 21, 2019

Quem sabe este não é mesmo um lugar poderoso aqui in heaven?
E que o seu poder não chega até vós...?





Dia tranquilíssimo. Uma aragem suave, um sol ameno. Limpei a casa, pasmei com o que a casa se suja mesmo com pouco movimento. A casa tem cinco portas que dão para a rua. Destas usamos regularmente três. E como andamos sempre dentro e fora, deve entrar pó ou somos nós que o trazemos connosco. Pó, não. Terra. Folhinhas, coisinhas do campo. 

E passeei, sentindo-me de férias. Três dias de férias.

E fiz uma descoberta que me deixou maravilhada e de que falarei mais logo.

E vi, espantada, que as roseiras bravas floriram. Costumo chamar-lhes rosinhas de Maio (e se calhar é mesmo o nome delas -- não sei) e, vendo-as agora, em Abril, perfumadas e efémeras, enterneci-me.

E o gatinho cor de mel veio pôr-se no banco de pedra junto à casa, como se fosse um barão. Ou uma baronesa -- não faço ideia.

E outro, o preto e branco, andou a passear-se sobre um muro e eu, que estava noutra, só o apanhei em desfocagem.

Depois, mais à frente, apareceram dois branquinhos a correr, assustados.

E, portanto, andei pelos campos a flanar e a fotografar e, de novo, fiz vídeos.

O meu marido hoje apanhou alguns dos infinitos rebentos ladrões que despontam por todo o lado mas circunscreveu-se à parte de cima do terreno. Está com dor nas costas.
Esta nossa terra, pela morfologia e por tudo, nunca poderá ser um terreno agrícola mas de terreno seco e pedregoso virou esta terra fértil onde tudo nasce, tudo cresce. E cresce de forma descontrolada. Se um dia deixarmos de tentar conter toda esta exuberância tenho a impressão que os caminhos desaparecerão no meio de árvores e arbustos e que a própria casa se tornará mais uma gruta para animais ou outros seres dos bosques.
Depois queimou o que apanhou mas num bidão para não ter que levar tudo lá para baixo. Não sabemos se mesmo para queiminhas destas tem que haver autorização mas, por via das dúvidas, pedimos na mesma.

Um dos vídeos que fiz foi uma tentativa de repetir um que tinha feito ontem ao fim do dia e que não pude aproveitar.
Como sempre que ando muito tempo fora quando a tarde vai alta, o meu marido começou a chamar por mim. Não respondi, claro, pois estava a filmar mas, na ausência de resposta, ele foi andando e chamando e o meu nome acaba por se ouvir perfeitamente. 
Hoje repeti mas não ficou nada bem pois deu-me para fazer com a máquina o que faço quando lá estou mas, pelos vistos, a uma velocidade muito maior. Portanto, uma almariação. Uma das coisas que tenho que aprender é a pôr alguns bocados dos vídeos em slow motion. Assim, como poderão constatar, fica complicado de ver. Fechem, por favor, os olhos para, no fim do vídeo, não caírem para o lado ou então tomem antes comprimidos para o enjoo.

Mas, acreditem, a intenção é boa.

Círculo de pedras in heaven



Entretanto, vou procurar uma coisa.

Cá está. Mostro um bocadinho daquilo do livro de Feng Shui para não pensarem que é delírio meu.


Aliás, o livro tem boas ideias e a disposição das coisas e dos jardins transmite uma sensação de grande harmonia. Não sei se algo mais que isso mas serenidade e harmonia transmite.

Tenho também a dizer que, quando me ouço, percebo que a meio das frases parece que me distraio e me esqueço de conjugar o sujeito com o predicado ou outras coisas do género. Um exaspero. Não sei se isso daria para editar mas devia dar porque há casos em que é uma vergonha.

E uma rectificação. Quando estamos na cidade a preparar as coisas para virmos para cá, andamos numa azáfama, a guardar isto, aquilo e o outro, e eu arrumo umas coisas, ele arruma outras e eu pergunto-lhe se ele já guardou isto e ele diz que eu me despache, que está farto de estar à espera. Ora bem. Eu sou despassarada, faço as coisas em piloto automático e, volta e meia, no meio destes preparativos, nem me lembro bem de as ter feito. E tão habituada estou a cometer gaffes que hoje, quando constatei que, em vez do cabrito pascal, tinha vindo porco, logo assumi que tinha sido mais uma das minhas. Quando, arreliada comigo mesmo, contei ao meu marido que não iríamos sacrificar nenhum cabrito, ele saíu-se com esta: 'Mas não era o saco que estava em cima, no congelador?'. E aí percebi que não fui eu, foi ele. Mas pronto, o assado de porco, cozinhado como um cabrito, ficou quase a saber ao dito. E comeu-se. 

Fiz assim: 
Num tabuleiro de forno, coloquei uma grande cebola nova cortada grosseiramente, um bom ramo de salsa, uns dentes de alho, um bocado de casca de laranja. Por cima a peça de porco. Por cima, pouco sal, mais salsa, orégãos, alecrim. Reguei com um pouco tinto alentejano e de azeite. O forno que estava previamente aquecido, foi reduzido para receber o tabuleiro. Esteve lá cerca de duas horas em forno a 170º. De vez em quando, virava a carne. No fim, cozi batata doce e, quando cozidas, verti-as sobre o tabuleiro. Parte das batatas absorveu o molho. Por cima pus um pouco mais de orégãos e um fio de azeite. Voltou tudo ao forno para bronzear. 
E esta fotografia é para o Soliplass que talvez reconheça a silhueta que se vê ao fundo.
Boa Páscoa, Lenhador que se fez ao Mar

E, uma vez mais, boa Páscoa a todos

segunda-feira, setembro 24, 2018

O meu mundo anda agora um bocado ensombrado.
E o pior é que os astros o confirmam





Submersa por eventos que perturbam a minha existência e não encontrando explicação para tanta pressão em cima de mim, tenho tentado avaliar a situação.

Apareceu-me com elogios, os maiores, e como sendo o mais honroso dos convites. Pensei: honroso mas, mais do que um convite, um tremendo desafio. Depois pensei melhor: mais do que um desafio, um tremendo transtorno. Depois pensei ainda melhor: mais do que um transtorno, uma infinita canseira e um caminho cheio de permanentes escolhos. Ou, não querendo levar a sério, uma tremenda falta de ética da minha parte se, pensando que não me apetece tal caminho, o aceitasse para depois, pela calada, não o levar a sério.

Só que, ao comunicar que não, o não não é aceite. E, ao não ser aceite o não, a situação complica-se.


Desabituada de contratempos que não consigo ultrapassar e sem oráculos que me ajudem, fui espreitar a conversa dos astros. E, ao contrário do habitual em que, cá para o meu lado, é sempre tudo peace and love e alegria e energia e luz e o escambau, desta vez vejo astros que não costumam estar a pairar pelas minhas bandas e que, agora, por aqui andam a ensombrar a minha existência. Em vão me desloco entre sites onde a coisa costumar parecer bater certo (Vogue, Elle, Madame Figaro). Todos me dizem a mesma coisa. Aconselham-me a descontrair-me, a deixar as coisas fluirem, a esperar que a tormenta passe pois a bonança aparecerá. Tudo novo para mim. O estado normal é a bonança. Não que não apareçam problemas. Aparecem. Mas costumo, apesar de tudo, sentir-me dona do meu destino. Arquitecta do meu destino. E agora não. Agora oferecem-me um novo destino, desenharam-no a pensar em mim.

Mais. O meu não está a causar abalo. Sei de reuniões para o discutirem. Horas de reuniões para discutirem o meu não, reuniões nas quais não participo. Depois, sou de novo confrontada com o mesmo honroso convite. Reconheço: honroso convite. Se eu estivesse para, nesta altura da minha vida, embarcar nele. Mas, justamente, não quero.


Leio nos horóscopos: tormentos, pressões, insistências. Só lá para Abril a coisa se aligeira. No pico do verão uma descida louca ao vazio para dele vir como nova, reentrando fulgurantemente no meu mundo de bons auspícios.

Pergunto-me: mas que é isto? Quando busco consolo nos astros, o que encontro é a confirmação de que há sombras demais para o meu gosto a enlearam-se nos meus passos. Faço o quê?

Sou pessoa de soluções, não de problemas. Quando comecei a trabalhar, fui contratada para fazer modelos sob a supervisão do Banco Mundial. Modelos para resolverem questões complexas e estruturais no país. Uma dimensão estratosférica de condições, restrições, objectivos. Combinações infinitas de soluções e apenas uma óptima -- e era, justamente, essa que eu queria encontrar. Meses, largos meses de trabalho. Mensalmente chegava dos Estados Unidos um senhor simpático que analisava o que eu fazia, discutíamos as minhas dificuldades e os resultados que ia obtendo. Grupos de ilustres passavam horas analisando o meu trabalho. Eu ia arranjando soluções para os nós górdios que iam aparecendo. 

E isso foi o começo de uma carreira levada nisto: a encontrar soluções.


E agora não consigo encontrar a solução para o meu próprio caso. Dizem-me: não temos outra pessoa, pela relevância do lugar, pela natureza das situações, pelo equilíbrio de forças, pelas suas características, só pode ser você. E eu digo: seria se eu quisesse -- e eu não quero. E não saímos daqui. O tempo passa, o clima adensa-se e é isto. Parece uma equação impossível. O meu filho pergunta se estarei a ver bem as coisas, que talvez seja uma coisa fantástica. Talvez seja, sim. Mas eu não quero. 

Entretanto, hoje acordei depois de uma noite de sono profundo e, do nada, apareceu-me uma possível solução. Uma contraproposta de alto risco, a que me ocorreu. O meu marido diz: eles não devem aceitar -- e pensa bem antes de avançar.

Quanto mais quero libertar-me de teias e apertados laços mais tentam enlear-me, prender-me, usar-me. Chega a um ponto em que o que sinto é isto: chega de me usarem. 

Mas do outro lado, atónitos pelo não que não esperavam, quando esperariam agradecida aceitação e entusiástico reconhecimento, o pasmo não é menor. Penso que mais do que pasmo: desconforto. Pior: desagrado.

Estamos nisto.


Lêem-me, vocês, e não me percebem, talvez. Presumo que estejam aí desse lado, intrigados: 'De que raio está ela a falar?'. Mas não posso ser mais explícita. O meu mundo é cheio de coisas das quais não quero falar. Se falo é por meias-palavras e acredito que soe encriptado para quem não está por dentro. Aliás, quase ninguém está por dentro. Tudo isto se passa entre gabinetes silenciosos, em ambiente reservado, sigiloso. O meu mundo é um mundo em que mais de metade não se sabe. Quando há questionários para averiguar o grau de satisfação dos colaboradores, quase sempre se queixam que há um défice de comunicação. Então, reforçamos a dose de newsletters, portais internos, reuniões de feedback, encontros. Mas a mesma metade continua a não poder ser dita. Podem as pessoas trabalhar anos no mesmo lugar e não saber de metade do que lá se passa. Segredos, reservadíssimas combinações, compromissos, negociações, acordos não revelados. 

O que vale é que é domingo, que o outono entrou bem, que o dia está uma maravilha, que as minhas árvores estão grandes, cheirosas e cheias de pássaros, que a janta já está pronta que hoje é para todos, lotação esgotada e conversas e risos como se mais nada houvesse no mundo. A vida é cheia de enredos, de armadilhas, de labirintos -- mas também de jardins, de abraços, de cantos e de luz, de silêncios e afectos bons.


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As fotografias foram feitas este fim de semana in heaven