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quarta-feira, julho 16, 2025

Sobre a demolição de barracas

 

Vi, estarrecida, imagens horríveis de barracas a serem destruídas sem que qualquer solução fosse apresentada aos seus habitantes e destruído ficou o meu coração ao pensar na aflição daquelas pessoas. 

Fotografia de José Fonseca Fernandes

Hoje disse aos meus netos que se me saísse muito dinheiro no euromilhões, pegaria em parte do dinheiro e estudaria em conjunto com algumas das autarquias em que o drama é maior qual a forma mais expedita de dar casas com conforto e dignidade às pessoas que vivem em condições miseráveis.

Custa-me conceber que, por exemplo, se arranje dinheiro a rodos para a Defesa ou dinheiro para jorrar sobre os médicos do SNS (médicos ditos 'tarefeiros' num daqueles expedientes para fugirem ao fisco e a todo o tipo de controlo -- enquanto estupidamente se continua sem se perceber que o tema da Saúde tem que ser 'agarrado' a sério por gente competente) ou dinheiro aos montes para fazer cartazes que poluem as estradas e as rotundas de cada vez que há eleições ou, nas autarquias, dinheiro a perder de vista com assessores e parasitas partidários e, depois, não há dinheiro para encontrar uma solução para estes pobres coitados que não conseguem um tecto seguro e legal para se acolherem.

Não há muito vi fotografias de um parque de campismo gigantesco na Costa da Caparica. Não parecem tendas, parecem casinhas, ou tendas de campanha, não sei bem, todas iguais. Disseram-me que muitas pessoas vivem ali todo o ano. Perguntei se não poderia ser uma solução para instalar com um mínimo de conforto e dignidade as pessoas que hoje vivem em bairros clandestinos. Responderam que o problema destas soluções é que, em vez de provisórias, soluções assim tendem a ser definitivas. Claro que não sei qual a melhor solução mas parece-me que qualquer solução é melhor do que a indiferença perante a aflição de quem não tem onde viver, de quem não tem uma morada, de quem não tem onde se lavar ou de quem não tem um mínimo de condições decentes para ter filhos.

Não sei se o PRR previu verbas para alojar as muitas pessoas que, tantas vezes vindas de longe, tantas vezes completamente desenraizadas, desaculturadas, vulneráveis, e, ainda assim, trabalhadoras, não têm outra solução senão juntas chapas, cartões e o que encontram para fazer um abrigo mais do que frágil, mais do que impróprio para um ser humano. Se previu, previu pouco e virá tarde de mais. Se não previu, os irresponsáveis que não pensaram nisso deveriam ser corridos.

Há tempos vi uma reportagem com prédios devolutos que pertencem ás Forças Armadas. De que se está à espera para lá instalar pessoas? E quem diz isso diz muitas outras casas do Estado. Ou da Igreja. 

Marcelo, que tanto falava dos sem-abrigo, já se esqueceu? Ou só se lembra quando as televisões o filmam a distribuir a sopa dos pobres? Quanta hipocrisia.

E já nem falo no cagalhoças do Moedas, essa anedota que para aí anda a armar-se em bom. Mete-me nervos de cada vez que o vejo: um saquito cheio de nada, um daqueles sacos pequenos para apanhar o cocó de cão. Obra feita, zero. Real sensibilidade e capacidade de acção para o que é preciso, zero. Só conversa fiada, só, só.

E o de Loures, com aquela vereadora, insensível, empedernida, gente desalmada, que nervos que também me dão. Caraças.

Enfim. Fico-me por aqui. Sinto-me verdadeiramente impotente perante a desgraça desta pobre gente que precisa urgentemente de habitação social. Estão a trabalhar para nós. Não podemos ignorá-los nem deixar que vivam como animais. Neste caso o tema não é o arrendamento acessível nem sem ser acessível pois estamos a falar de pessoas que primeiro precisam de se organizar, de se estabelecerem decentemente, só depois se pensa em como poderão pagar alguma coisa -- neste caso o tema é mesmo alojamento social, urgente, dar tecto e meios de higiene, dar uma morada e uma ajuda àquelas pessoas, permitir que sejam cidadãos de pleno direito.

quarta-feira, outubro 16, 2024

Tomar o destino nas mãos.
Fazer reviver um solo morto
Mudar o clima
Sentir como suas as palavras: I am the master of my fate. I am the captain of my soul.

 

Hoje, por aqui, chove que dá gosto. Por isso, talvez não seja o melhor dia para falar da falta de água, de solos desidratados, sem vegetação e, logo, sem vida animal, terras desertificadas, populações em êxodo. Mas sabemos que é essa a progressão em curso -- a menos que saibamos perceber a natureza, respeitar e guardar o que a ela dá, aprender a o milagre da regeneração.

Transformar terras áridas em solos férteis é daqueles projectos que penso que deveriam ser amplamente divulgados, financiados, acarinhados.

O vídeo abaixo explica bem o que está a ser feito por aquelas bandas, a alegria que traz à população, a esperança que traz, o futuro com que poderão sonhar. Querendo, podem pôr-se legendas em português, embora apenas de autotradução automática, ou seja sem grande qualidade. Ainda assim, faço questão em partilhá-lo.

A genius way to restore dead soil

Soil is vital for plant growth, supports biodiversity, filters water, and keeps ecosystems balanced. But in Kenya, worsening droughts have left the soil damaged and dry, threatening both nature and local communities.
In our 20th Planet Wild mission, we're supporting a surprisingly simple method to help transform these barren lands into thriving ecosystems. 
A special thanks to Dr. Rob Thompson / University of Reading for providing us with additional footage.
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Invictus

I am the master of my fate. I am the captain of my soul.


segunda-feira, junho 01, 2020

A decoração da casa dos pobrezinhos que é capaz de ser o menor dos males nisto do corona.
E a bela casa de Nina Campbell (que nada tem a ver com o assunto).





Isto dos signos é coisa estúpida, sem qualquer explicação científica que lhe valha. Vai contra tudo aquilo em que acredito: não assenta em nada que consiga explicar-se, não faz sentido sob qualquer perspectiva. E, no entanto, ao que parece, estatisticamente as pessoas revêem-se nas descrições e nas previsões. Pelo menos foi o que li num livro escrito por matemáticos que se dedicaram ao estudo do fenómeno. 

No meu signo diz que sou dada a tudo o que na realidade sou. E uma dessas coisas é a casa. Sou muito dada à minha casa. Sou muito sensível a casas.

Se há coisa que me faz muita impressão é estar numa casa que me parece escura, triste, sem alma, imprópria para acolher pessoas. Se entro numa casa assim, não consigo abstrair-me do que eu faria se pudesse. As pessoas falam comigo e eu com elas e, em background, estou a pensar: este conjunto de móveis escuros, sofás escuros e quadros pendurados junto ao tecto é mais do que suficiente para quem aqui vive sofra de depressão profunda. Ou olho para uma casa toda neutra, incolor, desprovida de graça e penso: eu punha aqui umas almofadas em turquesa e, naquela mesa de apoio, uma jarra em azul profundo com uma flor única, alta, em bordeaux indecente. E um espelho naquela parede a reflectir a luz da rua. Mas não digo nada, não quero perturbar a inércia e a propriedade de quem lá vive.

Mas porque sou assim, dada a decorações e a intuições, ainda mais me custa saber as condições dos que vivem quase sem dinheiro para comer quanto mais para frescuras. Casas pobres, precárias, quartos tristes e alugados, camaratas em que apenas interessa que o corpo possa descansar, ou a pobreza humilde que disfarça as dificuldades ou a pobreza remediada que vê o facebook e o instagram e gostava de ser e ter igual mas o que sobra mal dá para um verniz, uma blusinha. 

Dizer isto é mera conversa e mesmo que, por dentro eu sinta que não é mera conversa a verdade é que, de facto, é mera conversa. Conversa que não produz efeito é conversa deitada fora, ociosa, fútil.

Falo de barriga cheia.

E não vale a pena armar-me em irmãzinha da caridade que, em vez de orações, distribui bibelots e conselhos de decoração. Mas o facto de nada disto, na verdade, não fazer sentido não anula o facto de que  a verdade é que, quando ouço nos novos focos de contágio, penso nas condições em que vivem aquelas pobres pessoas. Muitos são imigrantes, muitos são simplesmente pobres. E ser pobre deve ser tudo menos simples. Portanto, dizer que alguém é simplesmente pobre é uma coisa que é simplesmente estúpida.

E eu só espero -- e nada mais posso fazer do que esperar -- é que os muitos milhões que virão dos apoios para recuperar a economia sirvam para trazer um pouco mais de dignidade às pessoas mais pobres, às que vivem amontosadas, às invisíveis que mantêm o mundo a funcionar quando os outros se recolhem para se proteger de contágios, às que não conseguem constituir família ou, se o conseguem, mal conseguem acompanhar o seu desenvolvimento, quanto mais pensar na decoração da sua casa.

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O meu domingo foi descansado, tirando a parte de ir ao supermercado e à loja das ferramentas. O dia esteve cinzento mas bom. Há bocado, estava a ver umas coisas do trabalho, depois a ler blogs, e, por fim, fui ver o Youtube. Apareceu-me um vídeo e gostei muito de vê-lo. Gosto muito da casa que aqui se mostra. Podia ser a minha casa. Gosto da Nina Campbell. Se a conhecesse o mais certo era dar-me bem com ela.


E, no entanto, é nas pessoas dos bairros da periferia que agora merecem a preocupação de quem se ocupa das coisas da saúde pública que eu penso enquanto vejo o vídeo. No sábado, quando estava a vir de casa da minha mãe, passámos por uma carrinha, daquelas de muitos lugares (oito? nove? mais?). Era branca e ia cheia de homens jovens, quase todos negros. Iam apertados nos seus lugares. Todos sem máscara. Era sábado à tarde, deviam vir do trabalho. O mundo é um lugar perigoso para o ser humano, em especial para alguns seres humanos.



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As cores e as fleurs que aqui apareceram não são du mal, são do bem. Pretendem trazer alguma luz a um tema que me ensombra o coração. Pintou-as Monet.

Chet Baker canta Almost Blue.

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Uma boa semana para todos

domingo, abril 12, 2020

O quanto lhes devemos





Nunca como antes ficou tão evidente o quanto todos precisamos de todos e o quão importantes -- e vitais -- são algumas das profissões de que tanto nos esquecemos ou que tão arrogantemente menosprezamos.

Se uma grande parte de nós pode estar confinada, protegida de contágios, trabalhando em casa, uma outra parte tem que continuar a sair todos os dias para manter os serviços essenciais a funcionar e para garantir que a cadeia de abastecimento não se interrompa, vencendo o medo, correndo riscos, muitas vezes separando-se da família. 

Claro que, desde logo, obviamente, os profissionais de saúde -- embora desses talvez não se possa falar tanto em baixos ordenados (pelo menos, de forma generalizada) mas em que, tema de cifrões à parte, o que há a enaltecer agora é a dedicação, a entrega, a superação que os leva a enfrentar o risco de peito feito -- mas, também, os técnicos que mantêm os equipamentos operacionais e os auxiliares, os bombeiros, os funcionários dos lares e residências de terceira idade.

E, uma vez mais, refiro também os que trabalham nas empresas de águas, nas empresas de electricidade, nos operadores de comunicações, os camionistas, os que se ocupam da recolha de lixo, os empregados dos supermercados, os agentes de segurança, os farmacêuticos, os motoristas de transportes públicos, os carteiros, os operários fabris cujas fábricas ainda laboram, os entregadores de tudo, os donos e empregados de pequenas mercearias, e tantos, tantos outros. 

A todos esses nunca agradeceremos o suficiente. E seria bom que a nossa memória, que é fútil e fugidia, nunca os esquecesse. Devemos-lhes tanto. 

Uma parte significativa das pessoas infectadas pelo corona serão, certamente, pessoas com essas profissões. Só ligados à Saúde, se bem registei, serão mais de mil e quinhentos os que já foram infectados.

Para nós que, quando vamos ao supermercado, chegamos a casa e nos lavamos e relavamos e que temos mil cuidados com as coisas que trouxémos (e fazemos bem), imagine-se os riscos que as pessoas que circulam, que lidam sabe-se lá com quem, com  o quê, correm. E, no entanto, todos os dias têm que fazer frente à inquietação e ir à luta.

Não sou moralista e detesto a caça aos culpados de cada vez que acontece alguma coisa. Mas esta situação da covid que, à primeira vista, parecia uma treta sem relevância, um corona como tantos outros, uma cagada em três actos, veio a revelar-se a gota de água que fez transbordar o desconchavo que é este mundo. Os países paralisados, as ruas desertas, as lojas fechadas, as escolas vazias, silenciosas, grande parte das fábricas paradas, alguns países a deixarem morrer ao abandono os seus mais velhos ou os mais pobres, mortos a serem deixados à espera de vaga na morgue, enrolados em plástico ou enfiados em caixões de cartão ou enterrados em valas comuns -- tudo coisas impensáveis nestes tempos que julgávamos de abundância, nestes tempos que julgávamos civilizados.
[E isto também já para não falar numa coisa de que um dia iremos perceber o alcance mas que, para já, não é tema para aqui chamado: em toda a linha da satisfação das necessidades vitais, equipamentos e tecnologia chinesa. Em tempo de guerra não se limpam armas e, estando em causa a vida humana, a nacionalidade das armas e munições é secundária. Mas é tema a que, quando estivermos saudáveis e fortes, a viver uma vida normal, certamente haveremos de voltar.] 
Para concluir, que hoje não me sinto de muita conversa: um dia que tenhamos que voltar à normalidade, à 'nova normalidade', certos de que ainda corremos riscos -- conscientes de que são sempre muitos os riscos que corremos porque essa é a nossa natureza, frágil, efémera, vulnerável  -- tendo que vencer o medo, é bom que nos lembremos de quem nunca pôde estar resguardado, de quem, todos os dias, venceu o medo para que nós, os fantásticos e os melhores do mundo, pudéssemos estar resguardados.

Embora por melhores palavras, é também isto que diz Emily Maitlis.

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Já depois de ter escrito isto, vi no DN que também o Pedro Marques Lopes fala no tema:
A menos democrática das crises

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Antes de começar o post, vinha para falar do meu dia -- que foi de trabalho de manhã e tranquilo à tarde, ao sol e entre passarinhos -- mas, não sei porquê, comecei a pensar no dia em que vamos sair da hibernação... e derivei para isto. Não nos vai ser fácil, imagino. O mundo que conhecíamos deverá, então, parecer-nos estranho. Deve parecer-nos pouco seguro. Depois, dei por mim a pensar outra vez nas pessoas que continuam a dar o corpo às balas enquanto os outros, como eu, se confinam, tudo fazendo (e bem) para quebrar os elos de propagação do vírus. Não sei como faremos para agradecermos a essas corajosas pessoas e, sobretudo, para que passemos a tratá-las com o respeito que lhes é devido.

Claro que não devia aperaltar o texto com macacadas, pinturas ou esculturas com máscaras,  mas é que acho que não vale a pena pôr um ar ensimesmado para falar de coisas sérias. E, de resto, andarmos com máscaras vai ser o que nos espera nos próximos tempos. E também sinto que deveria ter esperado por um texto mais adequado para aqui partilhar o Moving On pelo Leonard Cohen. Mas, na volta, não bato certo e o que melhor se me ajusta são coisas que pouco têm a ver umas com as outras. Seja como for, peço que também vejam o vídeo do Moving on, tão bonito.

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A quem atribua um sentido religioso ao dia, desejo que esta Páscoa traga a esperança que a ressurreição significa.

A todos, desejo força para lutarmos todos, juntos, por um mundo melhor, por uma vida mais feliz.

sábado, abril 04, 2020

Não sei sobre o que escrever. Muito menos sei que título dar a uma conversa à toa.





Não vou falar do meu dia.

Só uma coisa: é que, no meio da trabalheira, me lembrei de convocar a família para uma vídeoconferência. Como em cada casa há mais que um computador, os dos adultos e o iPad dos meninos -- que na escola já o usam e agora por maioria de razão -- receberam todos convocatória. E, então, foi uma alegria. Na casa do meu filho, os meninos estavam felizes, cada um em seu sítio, conversando uns com os outros por esta via e aparecendo, de surpresa aos outros, para mutuamente se surpreenderem. O primeiro meeting foi a seguir ao almoço mas houve confusão pois um dos da minha filha estava a ir para as aulas. Mas a menina apareceu toda aperaltada. Adorei vê-la. Disse-lhe: 'Mas estás tão bonita, com uma roupa tão bonita...'. Ela, coquette, disfarçando: 'Não, não, nada, apeteceu-me foi pôr umas collants, há muito tempo que não usava...'. Ouvi o pai a dizer: 'Foi, foi...'. O meu marido segredou: 'Não digas nada, não a envergonhes'. A posteriori, tive que lhe explicar que a alegria de perceber que os outros reparam em como nos arranjámos bem às vezes parece timidez. Mas, por baixo do que parece timidez, está a alegria, a motivação para uma próxima vez.


Ao fim da tarde já estávamos todos. O que em tempos era, aqui, por mim, chamado de ex-bebé e que agora já é um menino crescido com nove anos estava a fazer um lego que lhe oferecemos e que os tios encomendaram, por nós, recorrendo à glovo. Gostou do presente. Estava já resignada à ideia de não podermos oferecer-lhe um presentinho, quando os tios se lembraram desta alternativa. Assim, quando ele até estava conformado com a ideia de que, face às circunstâncias, não poderia ter presentes, o meu menino mais querido recebeu vários. Aliás, do lado da mãe, também. É que mal ela pressentiu que isto poderia acontecer, ainda a porca não tinha começado a torcer o rabo, foi logo a correr, num fim de dia, e preveniu-se com o qb para lhe organizar uma festinha e ter presente para o seu 'bichinho'. Entretanto, o menino do meio queria era combinar jogar o fortnite com os primos. Ela mostrou-nos o trabalho que tinha feito de tarde e que me pareceu um cogumelo cheio de brilhantes e que, afinal, era uma menina, creio que com brilhantes no cabelo. O bebé andava à aventura, descobrindo os irmãos, perguntando coisas, radiante da vida. O mais crescido de todos, está cada vez mais um pré-adolescente. Ainda hoje, ao vê-lo numa fotografia de costas, até tive que ampliar, já me parecia um rapazinho crescido, outro que não ele. Meu amor mais lindo.
Foi ele que me baptizou como Tá. Era bebé, ainda não falava e quando eu lá ia a casa, ria, brincava e dizia tá, tá, tá. Um dia a minha filha disse: eu acho que a tá és tu. Não achei, achei que era apenas alegria. Mas, à medida que foi crescendo e dizendo as primeiras palavras, foi ficando cada vez mais claro que a Tá era mesmo eu. E era. E ainda hoje sou.

Momentos bons. Aos poucos vamo-nos habituando a apreciar os sucedâneos, como se estivéssemos a descobrir outras formas de expressar o afecto. 

E esteve sol. Não um sol exuberante mas, antes, aquele solzinho manso que nos faz brilhar os olhos e o coração. Depois do cinzento e do frio que me custou na alma, um dia suave, morninho, aprazível.

Tive reuniões na rua. Via-me no monitor do computador com o cabelo luzindo ao sol, o rosto atravessado pela luz. Do outro lado, ouviram os passarinhos. Senti-me melhor, consegui trazer um pouco do encantamento do lugar para dentro de situações que de encantamento têm raspas.


Na parte da manhã, só me despachei do trabalho bem depois da uma e, antes do meeting familiar das duas, tinha que almoçar e telefonar à minha mãe pelo que foi de raspão que, antes de fazer a chamada, vi os números. Vi o número absoluto dos novos casos e mentalmente calculei que não devia chegar aos 10%. Fiquei contente. Em número absoluto são muitos, os casos difíceis vão surgindo, cada vez mais, os que não resistem também. Mas, se conseguirmos continuar assim, regredindo na percentagem, estaremos a ir no bom caminho e talvez consigamos evitar chegar ao desespero mais absoluto em que, por exemplo, se vive em algumas regiões de Espanha ou Itália. Mas, ainda assim, vai ser muito mau. Quem está mal, está mal durante muito tempo. É daqueles casos em que a matemática também ajuda. Neste caso é a teoria das filas de espera que entra em cena. Neste caso há mais doentes a chegarem aos cuidados intensivos do que a sair deles. Desenvolve-se o efeito de acumulação que, neste caso, tem a particularidade de estarmos a falar de pessoas a precisarem de assistência para respirar e de os que lá estão não darem o lugar a outros senão ao fim de muito tempo (a menos que morram antes, claro). É, pois, fácil modelizar a situação para calcular de quantos ventiladores se vai precisar tal como é fácil perceber que, por muitos que haja, serão sempre poucos.

Caneco. Não queria falar nisto.


Queria falar noutra coisa.

Mas a esta hora estou a ver o Governo Sombra e, uma vez mais, aprecio a sensatez e a honestidade intelectual de Pedro Mexia e a estupidez insanável de João Miguel Tavares. Agora acha que o governo vai ter que dizer em que data é que se vai poder abandonar o distanciamento social. Como se o governo devesse ser mentiroso e estúpido só para lhe agradar. Só um mentecapto pode pensar assim, caraças. E eu a única coisa com que me espanto é por alguém o convidar para emitir opinião. E não apenas o convidam como lhe pagam. Gente, certamente, ainda mais burra que ele.

E, já agora que voltei a descambar para este tema tão incontornável, deixem que expresse a minha estranheza por não ver sinais de solidariedade e compaixão por parte da Igreja. Não digo que não haja, digo apenas que não vejo. Esperaria que os cardeais e bispos anunciassem que os mosteiros e demais edifícios habitáveis tinham sido cedidos para alojar idosos de lares onde surgem casos ou, de futuro, se não houver lugar para albergar infectados ou doentes em recuperação mas ainda contagiosos. Assim como esperaria que a Igreja tivesse já anunciado que padres, freiras, diáconos, acólitos, beatos e demais fiéis tinham sido alocados ao cuidado de idosos isolados em casa, ao cuidado dos sem abrigo e de todos que sejam vítimas indefesas desta droga virulenta. Mas não ouvi ainda nada disso. Não sei o que se passa. Agora que missas e outros ajuntamentos estão fora de questão (e presumo que nem façam grande falta), não estaria na altura dos devotos receberem formação e mostrarem que existem para abnegadamente servir os outros? Mas, na volta, está bem, está.


Bem. Digo que não quero falar nisto e, mal me distraio, aqui estou caída. É que queria era falar do post tão bonito do Steve McCurry, do qual retirei as fotografias e as citações abaixo que aqui partilho convosco: Proud, Strong, Unshakeable: Portraits of Resilence
  • The world breaks everyone, and afterward, some are strong at the broken places – Ernest Hemingway
  • Resilience is the ability to overcome adversity, cope with setbacks, and persevere in the face of  trauma and deprivation.
  • The greatest glory in living lies not in never falling, but in rising every time we fall. – Nelson Mandela
  • The bamboo that bends is stronger than the oak that resists. – provérbio japonês
E queria falar disto porque sinceramente acredito que, no meio da adversidade, da saudade, do medo, do sofrimento, do desespero, das dificuldades e da falta de alento, é necessário que, de dentro de nós, se levante a força que todos temos, uma força mesmo que desconhecida, se levante a esperança, se levante a persistência. Haveremos de chegar a dias melhores. É respirar fundo, olhar pela janela, procurar uma ideia que traga paz e beleza, levantar a cabeça, esperar que melhores dias cheguem -- e acreditar. 


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Um bom sábado. Saúde.

sexta-feira, novembro 29, 2019

Transformar água salgada em água potável, transformar luz do sol em energia. Nada de mais.
[E um breve esclarecimento sobre doutoramentos]


Não é que já esteja tão flexível como antes do mau jeito mas acho que já estou um pouco melhor. Não sei se foi do ben-u-ron, se do brufen, se do omega 3, se de tudo junto que eu, se posso evitar andar empanada, não facilito. Ben-u-ron de madrugada, que nem conseguia mexer-me ou, quase, respirar, duas balas de omega 3 ao pequeno almoço, brufen ao almoço e, agora ao jantar, mais duas balas do omega 3. E a coisa parece que já está a resultar. Se mais daqui a nada perceber que subsiste algum ensarilhamento muscular, vai outro ben-u-ron e, expectavelmente, a coisa ficará resolvida. Talvez amanhã já possa voltar a fazer a minha caminhada e isto já para não falar nas minhas piruetas acrobáticas.

Tenho ideia de que quando apanho uma constipação (como apanhei na sexta-feira da semana passada, depois de ter passado o dia com os pés gelados), tendo a ficar com alguma debilidade que leva a que os músculos se mostrem mais sensíveis a coisas pesadas ou a movimentos invulgares. Nem sei se também não fico mais atreita a tendinites ou contracturas quando ando mais cansada. 

A minha mãe preocupa-se, não gosta que eu tome medicamentos, tem medo que me façam mal. Digo-lhe que os tomo porque tem que ser e que é só por um ou dois ou, vá lá, três dias. Não se deixa convencer. Sugere que eu passe a beber chá de gengibre ou de curcuma, a comer maçãs e outras coisas que ajudem a reduzir inflamações e a tornar mais resistente o sistema imunitário.

Por isso, quando cheguei, fui ao supermercado e comprei um bocado de gengibre e uma caixinha de saquetas de chá também de gengibre. Também já o bebi. Não encontrei foi curcuma. Tenho que ver no Celeiro. Nem sei se curcuma é para fazer chá ou para temperar a comida. Tenho que me informar. E, por via das dúvidas, antes de jantar comi um bravo de esmolfe. Acredito muito nos saberes da minha mãe.

Bem, não interessa, até porque isto de ter uma dor aqui e outra acolá é tudo menos original. De resto, nem é bem nas costas.
Tirando isso, estou como a Ana: também não tenho adidas, não faço ideia se tenho ou não cento e vinte canais de têvê pois se vejo uma meia dúzia já é muito, não estou inscrita num ginásio, não tenho qualquer bicho de superior estimação, não tenho mau dormir, não tenho o sonho de uma viagem sem retorno, credo, cruzes, nem pensar, claro que quererei sempre voltar, não tenho suspeita de ser diferente, nem pensar, nem isso nem pitada de jeitinho para poeta, felizmente não tenho um rol de incompetentes e invejosos ao redor, nunca me passou pela cabeça aquilo de um ou dois mortos queridos merecerem mais a vida do que os outros, nem nenhuma culpa abandonada no altar, nem tenho quaisquer nobilíssimas intenções nem baú de rancores lá no fundo, muito fundo, do armário. 
Pronto, adiante, já chega destes trololós.

E a ver se hoje, que já não tenho aquele ferrete aqui espetado a doer-me para escambau e a tirar-me do sério, não me dá para provocar de novo uma certa pessoa com mais uma inocente private joke, já que ontem acabei foi a desencadear justas perplexidades junto dos demais Leitores. Portanto, dentro do género, acho que já bastou o que escrevi ontem.


E, falando muito a sério, claro que acho bem que as pessoas estudem, investiguem, se tornem doutoras. Claro que sim. Só se fosse burra de todo é que acharia que não; e posso ser burra mas, na minha inocência e auto-caridade, acho que não de todo. E claro que acredito que não é por serem estudiosas, especializadas num assunto e sabedoras a sério, que vão deixar de usar perfume. Ora essa, que é uma coisa tem a ver com a outra? Sou maluca mas não sou parva (acho eu). Mas é que há quem, à conta de se doutorar, deixe de viver, quem se esqueça de que há outros assuntos que também interessam, de que há dias com luz do sol, quem se esqueça de apanhar ar, de conviver e dar uso aos sentidos, etc. -- e o que escrevi foi, em especial, para uma pessoa assim. Uma pessoa, de facto, especial.

Mas adiante que o tema que aqui quero trazer também não é nada disto, é completamente outro.

...   &   ...   Mudança de agulha   ...   &   ...


No outro dia, ao ver o mapa das regiões de Portugal que estarão alagadas no prazo de trinta anos, involuntariamente dei por mim a pensar que idade terei se viver até lá. Pensei que, se fosse com outra coisa, era capaz de pensar que até lá não me doa a mim a cabeça. Mas esta não é uma coisa qualquer.

E tomara que não aconteça senão no prazo de décadas. O que se passa é que há fenómenos que desencadeiam outros e aquilo para que os cientistas cada vez mais chamam a atenção é que várias linhas vermelhas foram já ultrapassadas e que a emergência pode chegar mais cedo do que se pensava. E pode ser horrível.

Mas não penso apenas em mim. Tenho que pensar os meus filhos, nos meus netos e nos meus bisnetos, chegue eu a conhecê-los ou não. E penso não apenas neles mas em toda a gente. 

Sempre pensei, a propósito de tudo, que tenho como que a obrigação de deixar as coisas melhores do que as encontrei. No trabalho, por exemplo, penso isso frequentemente.

E, nisto do planeta, sinto que não vou cumprir. Aliás, acho que, colectivamente, estamos a caminho de falhar. E isso frustra-me. E preocupa-me, dá-me medo.

Mas é bairrista pensar apenas no que nos rodeia e esquecer os que já vivem com as dificuldades com que provavelmente nos vamos deparar daqui por uns anos. A falta de água potável é fatal. Nada medra: nem plantas, nem animais, nem gente. 

Por isso, conseguir que as populações tenham água limpa e energia é vital. E tudo o que possamos fazer para divulgar iniciativas como as que hoje aqui mostro ou, mesmo, para ajudá-las é pouco.


Permitam, pois, que divulgue o vídeo abaixo. Não o faço pela organização em si mas, em geral, pela necessidade de haver quem o faça. Um dia pode acontecer que sejamos nós a precisar de transformar água salgada em água potável.


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E, por ora, é isto.

A todos uma bela e white friday

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segunda-feira, novembro 25, 2019

Podia ficar-me pelo meu encantamento in heaven ou pela maravilhosa decadência do Ginjal.
Mas prefiro chamar a vossa atenção para aquilo que sabem.





Fim de semana tranquilo. Mas não estive na melhor forma, estive um pouco adoentada. Resfriei-me na sexta-feira e mais do que pensava. 

No sábado estive no campo. De tarde, pensei que estava melhor, pus-me a passear por entre as árvores, andei nas minhas deambulações, nem dei pelo frio. 

Voltaram a aparecer as pegadas de bicho grande, a terra escavada. Eu estava longe mas pareceu-me o meu nome chamado pelo meu marido. Era ele mesmo: tinha visto aquelas marcas, quis alertar-me não fosse haver javalis por ali. Mas não. Provavelmente só por ali andam à noite. Pelo menos, assim o espero.


O que é curioso é que aparentemente andam a lavrar a terra com o focinho ou com as patas exactamente nos mesmos sítios onde andaram antes. A minha mãe no outro dia, quando lhe mostrei fotografias de tantos cogumelos, disse: 'Se calhar, também por lá tens trufas'. Não sei, não faço ideia. Mas, ao ver como a terra está, fico com a ideia de que há animais por ali a quererem encontrar alguma coisa. Será mesmo trufas? Nem sei como descobri-las. Sei que se parecem com torrões de terra pelo que não faço ideia de como procurá-las. E há também muitos cogumelos arrancados, meio comidos.


O campo está verde, lindo. Tudo se cobre de musgos, de líquenes. Não consigo olhar para os campos e ver ali o ocaso de nada. Pelo contrário, o próprio processo de transformação das folhas rubras em nada, misturando-se e preparando-se para a a dissolução final, tudo me parece um fenómeno maravilhoso, de uma beleza difícil de reproduzir ou descrever, como se tudo estivesse a nascer, a acontecer.


As cores e os perfumes e as aragens enchem o espaço bem como o canto dos pássaros que parecem andar mais felizes e livres do que nunca. 

Fotografo, fotografo. Parece que nunca vi tamanha beleza, parece que é um milagre que estou a testemunhar pela primeira e única vez, parece que é uma bênção de que me é dado fazer parte.


O sentimento de pertença que ali sinto envolve-me toda, todas as células do meu corpo. Uma paz, uma felicidade, uma harmonia tão absoluta, uma total fusão com a terra, com o ar que transporta cheiros e cantos, com a magia da luz cuja cor muda os cenários em minha volta. Um estado de encantamento, de puro e agradecido encantamento. Não sei dizer de outra forma.


Convencida de que já estava bem, fui à noite a casa dos meus pais. Por precaução, levei a echarpe em volta do pescoço, a tapar-me a boca. Embora um resfriado não seja contagioso, não quero que haja o risco de lhes passar alguma coisa.

Mas talvez tenha voltado a apanhar frio. Este domingo de manhã estava outra vez um pouco congestionada mas, como não tenho paciência para estar fechada e me apetecia ir a um sítio onde não ia há algum tempo, fomos ao Ginjal.


E, de novo, aquela sensação de alegria pela descoberta. A cada vez que lá volto as paredes estão diferentes. Como um ser vivo que se transmuta, assim aquelas velhas e decadentes paredes: sempre novas, cada vez mais belas. 


Fotografei, fotografei. Como é possível um lugar assim?

Lisboa vista dali é bela, magnífica. Tão bonito tudo. E tão bom andar por ali. A maré muito cheia, as águas muito perto, aquela frescura boa, molhada, aquele cheiro a beira do rio, aquela vastidão, aquela perfeição que as paredes grafitadas, tingidas, devastadas pelo tempo apenas complementam. E o rio, largo, imenso. E os barcos e as gaivotas e as pessoas. Tudo tão bom, tão bonito.


E, de novo, devo ter apanhado algum frio pois voltei a sentir-me pior. Felizmente a mim o chá quente e uma sesta fazem milagres e voltei a sentir-me boa. 

Estive a ler. Cercada de livros, no conforto desta minha sala tão acolhedora, com um chá quente, com uma luz a incidir nas páginas e pouco mais, eu estou nas minhas sete quintas.

O meu marido antecipou-se-me e está ele com o Augustus do Stoner. Não faz mal, leio-o a seguir. Estive com aqueles livros em que os arquitectos falam das suas casas, mostrando como é o lugar onde vivem. Gosto do que dizem os arquitectos (alguns arquitectos). Casas, objectos, memórias, o espaço, a luz, o interior e o exterior, o conforto, a simplicidade, a história das suas vidas, a partilha -- uma maneira interessante de falar das coisas.

E agora que aqui estou, depois de há bocado ter escrito sobre a Joacine e o Livre, estou a ouvir a chuva, a ouvir música, sons bons que se misturam, feliz e tranquila, sentindo o conforto bom da minha casa.

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Antes de começar a escrever vinha com a ideia de falar um pouco mais sobre como é impossível romper com o sistema (seja lá o que isso, na realidade, significa) estando dentro do sistema como, por vezes, ingenuamente parecem acreditar os que se deixam encantar por falas aparentemente rebeldes como as do Livre (e digo isto simpatizando com o Rui Tavares a quem acho um homem genuinamente bem intencionado).

E tinha a ideia de mostrar um vídeo que me impressiona bastante. E impressiona-me não apenas pelo vídeo em si mas porque fico a pensar que o mundo poderia ser um lugar menos perigoso se mais pessoas, em lugares de decisão e poder, pensassem e agissem como parece que o protagonista deste vídeo, Feike Sijbesma, CEO da DSM, pensa. Mas não sou ingénua. As disparidades são tão abissais, o mal feito ao planeta é tamanho, a estupidez intrínseca dos humanos é tão destruidora que não é a visão solidária e inclusiva de uma pessoa, ou de cem pessoas que sejam, mesmo de mil pessoas, mesmo de cem mil pessoas que vão fazer a diferença.

Ou talvez seja. Talvez.

Talvez se muitas vozes se levantarem, talvez se, em vez de se propagarem mentiras, intrigas, futilidades e disparates nas redes sociais e na comunicação social, se difundirem bons exemplos, gritos de alerta, passos no caminho certo, talvez progressivamente haja uma leve inflexão no sentido da destruição, talvez nos desviemos da rota para o abismo que temos vindo a trilhar. Talvez. 

You know


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Sergei Polunin está lá em cima no lugar das bandas sonoras mas, obviamente, é mais, muito, muito mais que isso. Não deixem, por favor, de ver como ele voa.

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E uma boa semana a todos a começar já por esta segunda-feira.

sábado, novembro 16, 2019

Nós, pessoas -- neste planeta



Estou de volta a casa. Neste momento passa bem da uma da manhã. Já mudei de roupa, estou confortável e, tivesse eu algum tino, estaria a descansar e não aqui a tentar vencer o sono. Mas ter tino é coisa que notoriamente não me assiste. 

Quando digo que nem que me pagassem várias barras de outro todos os meses a troco de ter que sair para fora, em serviço, vários dias todas as semanas eu não aceitaria, é mesmo. Não é forma de dizer ou de fazer género, é mesmo verdade. Uma vida como, por exemplo, a da Elisa Ferreira ou a do Centeno, para mim, seria um tormento. Admiro-os e penso sempre que somos devedores de gratidão pela abnegação que revelam. Mesmo que a eles não lhes custe tanto como a mim me custaria. E não é só pela chatice das reuniões consecutivas ou por ter que almoçar e jantar sempre acompanhada ou fora de horas ou à pressa ou pelo incómodo de andar a fazer e desfazer malas, ou de ter que andar sempre a prestar atenção a qualquer coisa ou a ter que chegar ao quarto e ainda ter relatórios para ler ou apontamentos para tomar -- é por tudo isto junto. 

A minha vida não é nada que se compare, nada, mas, o pouco que tem disto, já me causa desconforto. Penso que é esta sensação que se associa à saída da chamada zona de conforto. Daqui até final do ano vou ter várias saídas e cenas e isto já para não falar nos jantares de natal que, para mim, começam dentro de umas três semanas e temo bem que a uns três não consiga mesmo escapar-me. Já estou a ver alguns Leitores a protestarem ou a encolherem os ombros, a dizerem que nada disto é sacrifício e que tem certas profissões já sabe ao que vai e que ganha o suficiente para comer e calar. Pois, não digo que não. Cada coisa pode ser vista sob múltiplas perspectivas e cada um pode escolher aquela com que melhor se identifica. 


Enquanto estou com o computador ao colo, cheia de preguiça e toda contente por estar aqui sossegada no meu canto, espreito a polémica da retenção ou não de alunos em função do seu mau aproveitamento escolar. E penso que a sociedade continua a derrapar e, em vez de saber repensar-se para ser mais justa e inclusiva, para saber como atrair e reter os miúdos na escola, continua a pensar com os pés presos enfiados no lodo dos tempos antigos. Como se o planeta não estivesse com espasmos e em sofrimento, as pessoas continuam a agir como se ele estivesse ainda azulinho, calminho, sem nuvens negras a pairar sobre as suas cabeças, como se todos, por todo o lado, vivessem na maior prosperidade, como se os mais pobres dos pobres não estivessem a morrer nas suas terras ou a caminho das nossas cidades. E nós, aqui no nosso cantinho à beira-mar plantado, continuamos com discussões estéreis que poderiam ter feito sentido há quarenta anos. Não agora.

Presumo que não seja preciso reinventar a roda: será apenas uma questão de colher boas experiências. Haverá crianças com problemas cognitivos, problemas comportamentais, problemas familiares. Requererão atenção especial. E, claro, há tudo o que anda em volta da pobreza que é doença que puxa a gente para baixo e para a qual há-de haver maneira de encontrar o caminho certo para preservar as crianças o suficiente para, apesar da pobreza, conseguirem ter cabeça para aprender e ir em frente. 


Língua portuguesa, bem entendido, matemática, ciências e artes, história e geografia, e tudo isso que é obrigatório, matricial -- mas também ética, sustentabilidade, responsabilidade social, defesa do planeta.

Essas coisas. Desde crianças todos deveriam estar bem conscientes da sua responsabilidade neste mundo. Se as crianças estiverem envolvidas e motivadas, gostarão de fazer parte de uma solução para se salvarem enquanto espécie num habitat cada vez mais instável, num planeta que dá mostras de não nos conseguir acolher por muito mais tempo. Se envolvidas, as crianças e os jovens gostarão de aprender. Gostarão de trabalhar em equipa. Saberão estar neste mundo.
Há temas que são complexos demais para serem falados assim. Este não é lugar para expor causas, para desenvolver teorias. E sei bem que falando apenas ao de leve sobre assuntos sérios mais parece que estou a lambuzar-me com guloseimas, a sujar o bibe com canetinhas de bico de feltro, a brincar aos 'crescidos'. Portanto, não digo nada. 
Partilho apenas alguns vídeos que, assim de repente, encontrei sobre o que aqui me estava a ocorrer. 








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Pinturas de Juan Yoc

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E um bom sábado: saúde, alegria, afecto e tudo o mais que vos saiba bem

domingo, novembro 10, 2019

Sara, 22 anos, sem-abrigo, mãe de Salvador





Quando se está grávida, depois da emoção da descoberta de que vem aí um bebé, começa por haver a expectativa de ir vendo que se está mesmo a concretizar, que vai adiante. Há alegria em ver o ventre a arredondar, depois a surpresa de sentir o primeiro movimento. A princípio mal de sente, fica-se até na dúvida se foi. Depois é nítico. Pequenos movimentos, uma alegria, um serzinho de verdade ali dentro. O ventre crescendo, o bebé a mexer. Depois começam os seios também a crescer, os mamilos a aumentarem. Sente-se como que repuxar, o volume a pressionar a pele, os seios cada vez mais tensos. Para o fim os movimentos do bebé são mais fortes, o bebé, apertado, estica-se, espeta um joelho, espeta um pé. A barriga parece deformar-se para um lado, depois para o outro. Há um bebé de verdade dentro do nosso corpo e sentimos que, não tarda, ele vai querer sair. 

Ao mesmo tempo que há alegria, há também a expectativa: como será o bebé? estará mesmo tudo bem com ele? E como será depois? Quem ficará com ele, quando formos trabalhar? Pensamos, avaliamos. Queremos o melhor. Já nos custa a perspectiva de o deixarmos entregues a outros que não nós. Transportamos dentro de nós um ser, carne da nossa carne, queremos tê-lo nos nossos braços e tudo faremos para que seja o mais feliz possível.

É bom termos quem nos acompanhe num período em que as emoções fervilham, que partilhe os nossos receios e anseios, quem nos ajude. A família, os amigos, o pai do bebé, todos unidos na alegria de estarem prestes a acolher uma criança que é e sempre será um motivo de felicidade. Preparamos o enxoval, o berço, preparamos tudo para a sua chegada.

Para o fim da gravidez, quase não há posição quando estamos deitadas. E o ventre pesado pressiona a bexiga e temos que ir muitas vezes à casa de banho, mesmo quando estamos a dormir e acordamos amiúde.

Até que um dia aparece um sinal, um pouco de sangue. É o rolhão mucoso que sai dando sinal de que o dia se está a aproximar. E depois rompem-se as águas. E aí sabe-se que vai mesmo acontecer.

O ventre contrai-se, fica muito duro. Dói. Pode doer muito, muito, muito. Há anestesias mas, quando as não há, as dores podem ser insuportáveis. Contracções cada vez mais seguidas, cada vez mais dolorosas.

Se é importante que uma gravidez seja acompanhada para que os exames atestem a viabilidade do feto, para que haja a garantia de que a mãe está de boa saúde, para que o bebé também venha saudável, no momento do parto ainda mais acompanhamento deve haver. Não só é necessário garantir assistência em caso de problema da mãe ou do bebé como o pós parto pode exigir cuidados para um ou para outro. E, não menos importante, o apoio emocional, o afecto. Num momento tão especial, tão física e emocionalmente intenso, a presença de quem nos ampare e dê carinho é quase indispensável.

Até que o grande momento chega: o bebé sai de dentro de nós, por vezes rasgando-nos. Ensanguentado, frágil, dependente de nós.

E logo todas as dores param, advém o supremo alívio.

E logo a seguir há a suprema emoção e alegria de sentir o bebé nos nossos braços. Nasceu. Um filho a quem desejamos o melhor do mundo. Para sempre quereremos o seu bem, para sempre contará com o nosso amor.

E logo o leite começa a subir, os seios a incharem, todo o corpo preparado para alimentar e ter o bebé nos braços. E imediatamente se estabelece a cumplicidade entre mãe e filho, aquela intimidade boa que queremos que dure a vida inteira.

Nada disto sentiu Sara, a jovem de 22 anos que atravessou a gravidez sozinha, escondida. em situação precária. Sem acompanhamento médico, sem acompanhamento afectuoso, sem apoio emocional. Como se alimentava? Se queria ir à casa de banho, onde iria? Quando lhe custava estar deitada, como se deitaria? Numa pequena tenda, assente em chão duro, como ajeitaria o corpo? Nestes dias em que choveu e em que a temperatura desceu à noite, como se aqueceu? Quando pensava como seria o seu bebé e que vida lhe poderia proporcionar, que abismo se desenharia perante os seus olhos? Pensaria, com lágrimas escorrendo, que não tinha roupinhas, não tinha berço, não tinha apoio familiar, não tinha futuro?

Nada sei de Sara a não ser que ninguém sabia que estava grávida, que fugia de quem pudesse descobri-la, que vivia numa pequena tenda, que talvez seja de ascendência cabo-verdiana.

O corpo dela passou pelas mesmas transformações de todas as mulheres grávidas mas em vez de alegria talvez sentisse apenas medo e desespero.

Quando soube do que aconteceu, foi nela que logo pensei. Coitada, coitada. Que coisa mais triste. Como deve precisar de um abraço, como deve precisar de se sentir amada. Coitada. Que pena sinto dela. Coitada, coitada. 

Li que vivia em condições de extrema vulnerabilidade e que quando descoberta, não tinha sinais de ter consumido drogas, não ofereceu resistência e pareceu estar triste.

Não sei como funciona a justiça neste casos nem sei do que se passou com Sara para chegar ao ponto a que chegou. Mas sei que, com o meu desconhecimento, o que eu faria seria acolhê-la numa daquelas casas que acolhem mães desprotegidas, trataria de que sentisse apoio, carinho, companhia, tudo faria para enquadrá-la socialmente, para lhe arranjar um trabalho e para que sentisse que tinha um lar.

E se, nessas circunstâncias, ela sentisse que queria criar  seu filho, nada faria para impedir que esse vínculo se estabelecesse. Pelo contrário, ajudá-la-ia de todas as maneiras.

Não há amor maior que o amor de uma mãe pelo seu filho e toda a sociedade se deveria mobilizar para que nenhuma mãe sentisse alguma vez não ter condições para criar o seu filho e, temendo pela sua vida futura, o abandone. Nunca.

O mesmo amor que o bebé precisa, precisa, certamente, Sara, sua mãe.

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As fotografias de grávidas provêm do site Photo-Maternité

quinta-feira, junho 27, 2019

Oscar e Valeria e todos os outros que tentam atravessar montanhas, desertos, rios e mares na esperança de alcançar um mundo melhor


É fácil a gente comover-se. Daí, é fácil a gente evoluir para a revolta. E ,se muita gente se comove e revolta, mais fácil é sentirmos que fazemos parte de um movimento colectivo que se comove e revolta com a situação, sentimo-nos confortáveis com a causa comum. E a causa comum esgota-se nisso, em comovermo-nos e em revoltarmo-nos. Ou seja, na realidade é uma causa inútil.

Difícil é sermos racionais, consequentes. Difícil é percebermos que escolhas devemos fazer para poiarmos quem saiba evitar que situações como as que nos comovem e revoltam voltem a acontecer.

Falo, neste caso, em defendermos, no nosso país, políticas de acolhimento de refugiados, falo em termos programas de acolhimento para crianças sem família, falo em termos políticas articuladas e sérias de imigração. Falo em não cedermos a populismos, em não ficarmos revoltados se o Correio da Manhã fizer reportagens a dizer que os nossos impostos servem para pagar casas para estrangeiros, sem cuidarmos de saber que os estrangeiros em questão são, afinal, corajosas pessoas que fugiram da guerra, da fome, da violência. Falo em escolhermos quem nos represente na União Europeia para defender a mesma coisa em todos os países da UE. Falo em apoiarmos quem, na UE, quer fazer frente aos Salvinis deste mundo. Falo em transformar a nossa comoção e revolta em coerência.



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Volto aqui para dizer que, depois deste, comecei a escrever outro post dedicado aos livros mas, à medida que ia escrevendo, ia pensando que não deveria publicá-lo senão este iria já lá mais para baixo. Há alturas em que temos que pôr de lado o nosso egoísmo. Apetecia-me escrever mas, na realidade, estaria a relativizar a importância do tema deste post. Não a importância do post que os meus posts valem zero. Mas o tema, esse, sim, é importante. Sem a nossa atenção, cuidado e alguma abnegação tudo continuará igual, imensas correntes de gente a enfrentar o perigo, tantas vezes soçobrando pelo caminho, tantas vezes devolvida como mercadoria indesejável, tantas vezes agredidos, tantas vezes separados dos seus. Por isso, é com este post que termino a minha jornada: desejando que o mundo rico acorde para a necessidade de acolher os que fogem da guerra, do medo e da pobreza.