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segunda-feira, outubro 02, 2023

Um domingo bom e dedicado a limpezas com uma tarde afável e feliz.

[E Joan Baez revela segredos, um dos quais bem pesado]

 

O que esta casa se suja, apesar de estar fechada, não dá para explicar. Tudo fechado, tudo, tudo bem fechadinho. Antes de sairmos, tudo limpinho. E chego lá, e não sei como, vejo teias de aranha nuns cantinhos, afasto os sofás e vejo pó ou, quando enfio a vassoura por debaixo dos móveis, constato que saem rolos de cotão. Posso fechar os olhos, fazer de conta que não vejo. Se estou cansada demais ou com pressa é isso que faço. Fica para a próxima, digo. Mas nunca saio sem limpar, pelo menos, a maior.

Hoje tinha tempo, foi a preceito, tapetes não apenas bem varridos mas bastamente sacudidos, sem esquecer de afastar tudo o que havia para afastar, tudo, tudo. Se há coisa de que gosto de fazer é isso. Parece que o ar depois fica mais limpo. Ou, então, é psicológico. Mas, seja o que for, é bom na mesma.

E, no entanto, há menos de quinze dias tinha deixado a casa limpa. 

Não sei se é por haver um cão em casa, se é por trazer paus que se entretém a roer como se fossem ossos, se é por trazer tojo seco agarrado ao pelo. Não sei. Creio que não pois quando saio a casa fica limpa. 

E, se eu estive dedicada aos interiores, o meu marido andou de volta das árvores. Depois de anos e anos a lutar por cada pé de árvore, agora estou outra. Percebi que quando há ajuntamento de pés, nenhuma árvore se desenvolve muito e há pés que ficam infelizes e esquálidos. Era minha ideia que a natureza era sagrada e que isso tinha que ser levado à letra. Mudei. Agora acho que devemos ajudá-la, fazendo a misericórdia de eliminar o que não está fadado a vingar. Leio-me ao escrever e sinto-me cruel. Mas não estou a falar do reino animal, apenas do vegetal.

Por isso, alguns aglomerados de pés de aroeiras e de azinheiras, justamente os que estão em frente das janelas da sala da televisão e da sala do lado, foram hoje aligeirados. Ele teve uma trabalheira a serrar aquilo tudo, a cortar aos bocados, a transportar ramagens e troncos.

Mas fica muito melhor, mais desafogado, uma visão mais ampla. Gosto muito mais. Quando me ouve a louvar a nova vista, o meu marido limita-se a dizer: 'Há anos... há anos que ando a querer fazer isto...'

Tenho constatado que, neste tipo de coisas, sou lenta, custo a perceber.

Deixo para fim uma mágoa, uma mágoa gigante. Estou quase certa que os esquilos debandaram. Aquela semana de máquinas a serrar ramos pelas árvores acima e de outras a desbastar mato devem tê-los assustado e muito. E, de facto, como não...? Eu tinha era esperança que, susto passado, regressassem. Mas, pelos vistos não.

O que fizemos tinha que ser feito e reconheço que há agora uma maior segurança (contra incêndios, por exemplo) e, apesar de tudo, não menos beleza. Mas afugentarmos os esquilos é daquelas que para sempre me ficará como uma grande pena. Voltei a deixar a banheira de quando os meninos eram bebés com água e à sombra. Mas não sei se, onde estão, os esquilos vão adivinhar que ali pus a água.

Tomara, tomara que sim. Vê-los, ou simplesmente sabê-los, nas árvores enchia-me de felicidade.

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Entretanto, de tarde, casa cheia. 

A alegria, o bom apetite de todos... e o que as crianças estão a crescer... Estão naquela idade em que espigam como feijões mágicos. 

O mais crescido já quase um homem, com a sua personalidade cada vez mais definida, já sem a mesma apetência pelas brincadeiras dos demais. Não tarda será ela. Também já mais esguia, coquette, meiga, toda ela decidida nos seus objectivos. Seguem-se os dois que estão ainda a espreitar de longe a adolescência, um com onze e outro com doze, brincalhões, amigos, com os mesmos interesses. E, depois, o mais novo, seis anos cheios de filosofia. Para um projecto na escola sugeriu como tema: 'Porque é que há seres humanos'. A professora chutou para canto, claro. Numa sala de 1º ano, como trabalhariam o tema durante todo um ano lectivo? Ele ficou decepcionado, bem entendido. Menino mais fofo (e mais terrivelzinho...)

Enfim, um encanto muito grande, um calorzinho bom no coração.

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Termino com um vídeo com uma pessoa de quem gosto bastante, Joan Baez. Não apenas fala da sua vida como faz uma revelação terrível. O que me espanta é como quem sofre abusos sexuais em criança consegue arrumar isso num canto da sua mente e fazer uma vida normal. Dir-se-ia que as vítimas ficariam com traumas tão avassaladores que não conseguiriam livrar-se dessa devastação. Mas conseguem. E, até por isso, temos que estar todos bem atentos a todos os mais ínfimos e subtis sinais pois, como se sabe, quer os abusadores quer as vítimas ocultam tudo bem ocultado.

Mas, para além disso, há a voz e a forma maviosa como Joan Baez interpreta o que canta.

Joan Baez, revealing secrets

In a new documentary, "Joan Baez I Am a Noise," which features the singer-activist's personal archive of home movies, letters and drawings, the Rock & Roll Hall of Famer opens up about her 60-year career and her life on the front lines of social change. Baez talks with correspondent Tracy Smith about the film and the surprising secrets she revealed; how Bob Dylan broke her heart; and how she expresses her less serious side.


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Desejo-vos uma semana feliz a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Amor. Paz.

segunda-feira, abril 05, 2021

Domingo de Páscoa.
Um post com culinária e sorrisos dentro

 


Quando acordei percebi logo que estava melhor. Portanto, foi só o tempo de me arranjar e de comer a minha fruta, kefir com cereais e beber um café -- longo, índice 8 e, obviamente, sem açúcar -- para dizer ao meu marido que tínhamos muito que fazer. Como é costume, estava a pé há séculos, já tinha feito o seu passeio matinal e estava a ler um livro gigante de história. Pôs-se logo en garde. Teme estes meus rompantes. Mas, antes de ir atirar-me ao que me ocorreu ao pôr o pé no chão, tive que ir atirar-me ao anho pascal.

Tinha ficado de véspera a descongelar. Antes de o ter congelado, tinha-o limpo de gorduras. Então, fiz assim (a atentem que, ao contrário do que era em tempos de grandes comezainas e lambanças, desta feita o repasto era apenas para dois):

Num tacho coloquei uma mini (cerveja, bem entendido), duas cebolas grandes aos bocados, duas folhas de louro, um generoso fio de azeite, os bocados lavados do anho e, por cima, uma boa quantidade de salsa, coentros e um pouco de sal. Ficou com o lume no máximo até ferver. Depois baixei. Tapadinho, lume mínimo, a carne mergulhada no caldo.

Comuniquei, então, que queria ir limpar aquela espécie de estufa que está no meio da horta. É uma coisa precária que precisa de ser arranjada e que, por ter chão de terra, estava cheia de erva até uma altura desmesurada. A natureza a desafiar a mão humana, quando deixada à sua sorte, rapidamente toma a dianteira. Pensei que quero limpá-la e usá-la.

O meu marido, alertou-me: 'Vais, outra vez, dar cabo do ombro'. E ofereceu-se para ser ele a fazer o que houvesse a fazer. Mas não, apetecia-me mesmo deitar mãos à obra. Disse-lhe que esforçaria o outro braço. Então ficou ele, com o sacho, a dar cabo de uma verdadeira moita de erva alta que circundava a dita estufa. E eu, lá dentro, a arrancar à mão, com a mão esquerda (para poupar o ombro direito). Puxei e puxei e puxei. Arranquei erva verde, erva seca, descobri vasos e pedras rústicas debaixo das ervas.

Os montes de erva que ambos arrancámos foram impressionantes. Depois transportámo-los para o monte de sobrantes que vai compostando. Não conseguimos foi dar conta da manta de urtigas que se formou ao fundo. O meu marido diz que só com roçadora. 

Andámos também a varrer as folhas secas da nespereira. Está carregadinha de nêsperas mas estão tão altas que não sei como vamos conseguir lá chegar. 

Pelo meio, de vez em quando ia a casa vigiar o cozinhado. Cheiroso. 

Com a colher fui virando a carne para que ficasse bem envolvida no caldo.

Depois, como a carne já estava a mostrar querer desprender do osso, sinal de que estava a ficar macia, desliguei. Ficou a maturar enquanto fomos fazer a nossa caminhada. Talvez por ser caminhada pascal, foi mais longa do que habitualmente. 

Quando regressámos, descasquei duas cenouras grandes, um belo molho de feijões verdes, umas batatas normais e uma batata doce grande (das cor-de-laranja). Depois de tudo descascado e lavado, tirei a carne para um prato, juntei um pouco de água (o caldo estava já um pouco reduzido). Coloquei a cenoura às rodelas no fundo, o feijão verde aos bocados largos, as batatas aos cubos e, por cima, a carne. Deixei que fervesse e, depois, coloquei de novo do mínimo.

Quando pensei que deveria estar quase, coloquei o forno no máximo. Quando admiti que o forno estivesse quente, coloquei o conteúdo do tacho num tabuleiro grande de forno. Ficou tudo bem espalhado e assim ingressou no calor. Nessa altura, aliviei e passei para cerca de 180º.

Antes de servir, ao ver que estava tudo a ficar com aspecto quase crepitoso e douradinho de dar gosto, coloquei por cima umas fatias grossas de pão rústico para ficar quentinho.

Quando o tabuleiro foi para a mesa, tirei as fatias de mão para um pratinho à parte pois estavam ali mesmo apenas para aquecerem e ficarem com o cheirinho do cozinhado. Servi.

Devo dizer: a clientela foi escassa mas devo dizer que aprovou. O pãozinho marchou todo, molhadinho no molho grossinho e saboroso do estufadinho do anho pascal. Sobrou ainda o suficiente para outra refeição, o que me agrada pois isto de estar a cozinhar todos os dias há um ano também cansa.

Depois fomos apanhar sol para o jardim.

A meio da tarde recebemos uma mensagem, se estávamos em casa, queriam vir deixar-nos folar. Claro que sim. Passado um bocado, chegou a trupe primaveril e animada. A menina com um vestidinho de cavas, cada vez mais bonita. Os meninos brincalhões, sorridentes, crescidos, bonitos.

Trouxeram o excelente folar feito pela excelente doceira, mãe dos meninos, um folar recheado com doce de abóbora, requeijão e nozes. Bom, bom, bom. Trouxeram ainda folar, também muito bom, creio que recheado com maçã, feito pela sua mãe, outra doceira de mão cheia. E trouxeram um bocado de cabrito do almoço, provavelmente feito pelo chef que, tal como a mãe, é mais dado a salgados que a doces. Prová-lo-emos amanhã.

Trouxeram também ovinhos de chocolate com os quais fizeram caça ao tesouro no jardim. Os meninos correram, brincaram, jogaram às escondidas, os pais estenderam-se e descansaram ao sol na relva. 

Andei sempre de máscara e eles também, excepto o mais pequenino, não resisti a abraçá-los. Meninos queridos.

Quando o sol de pôs, esfriou e foram para casa, eu com pena de não poder despedir-me, abraçando-os e dando montes de beijinhos como na era pre-covid. 

O meu jantar foi simples: uma maçã, um pouco de cheddar maturado e, adivinhem, uma fatia de cada folar. Por mais que queira fugir às tentações, nada a fazer, elas vêm ter comigo.

Resumindo: tive um dia de Páscoa bem melhor do que esperaria. E o dia esteve ensolarado, um sol amável, cheio de pássaros cantando, as rosas, as glicínias, o jasmim perfumando o ar, os sorrisos adoçando-me o coração. O mês de Abril é sempre um mês generoso.

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Há pouco, ao começar a escrever, lembrei-me de que, em tempos, por estas alturas, nos púnhamos a caminho. Uma vez fomos visitar Alhambra e a Mesquita-Catedral de Córdoba. Mas, quase tanto como visitar estes locais maravilhosos, eu gostava de andar pelas ruas das cidades, pelas ruelas floridas. E agora que escrevo penso também em Marbelha, as ruas e os restaurantezinhos bons, o El Balcon de la Virgen, por exemplo. Tem é que ser fora da época da confusão. Na primavera, por exemplo, é bom. Voltámos lá depois mas curiosamente é da primeira vez que mais me lembro. Foi um passeio tão bonito. Gostava de lá voltar, gostava de ver os pátios floridos. 

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As fotografias são de Katerina Plotnikova e são estas e não outras apenas porque as acho muito bonitas

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Uma boa semana.

terça-feira, dezembro 08, 2020

Mió ainda

 



Dia que pareceu suspenso no ar. Foi daqueles dias que é e não é. Precisava de fazer uma compra mas não sabia se podia circular, se o comércio estava aberto. Desatenta, certamente. Uns lugares saíram de muito elevado, não sabia bem quais. Fomos à hora de almoço, meia compra feita. De qualquer modo, dia de trabalho. 

Mas frio, muita humidade, escuro a meio da tarde. Esta terça-feira, dia feriado. Ainda há menos de um ano, dia de folga era dia de passeio ou de encontro. Agora é dia de recolhimento e ainda não aprendemos a viver assim. Sobra tempo mas não sabemos bem o que fazer com ele porque não podemos usá-lo como quereríamos. 

De tarde, lareira acesa. A trabalhar na mesa redonda junto ao calor. Acabou a faena já estava muito escuro e frio para ir passear no jardim. Fui buscar um livro e estive a ler ali mesmo. Uma estreia. Gosto de ler reclinada, não sentada numa cadeira. Mas, à lareira, estava-se bem. Podia ter ido para o lado de lá, sentar-me num cadeirão. Mas achei que não valia a pena. Fiz chá de erva-príncipe e gengibre, fui lendo e bebendo. Uma novidade, isto. Bem me soube.

Depois fui ver as notícias. Mas ando enjoada, niquenta: nada me interessa por aí além. Aquilo que sei que deveria dizer é de tal forma incómodo (sobretudo para mim própria) que ando a evitá-lo há meses. Tem a ver com a morte de Ihor Homenyuk no aeroporto de Lisboa. Não gosto de falar do que não sei. Mas fosse o que fosse que tivesse provocado tal sanha por parte dos inspectores e fosse o que fosse que os levou a todos a encobrir o caso, pelo menos com os contornos que parece ter tido, uma coisa parece inegável: é indesculpável que agentes da autoridade agridam alguém até à morte, deixando-o a agonizar, sem tratamento ou suporte de vida. Acho tudo o que se vai conhecendo de uma tal barbaridade que não compreendo como não houve uma investigação célere e exaustiva para que já houvesse acusados e para que já tivessem sido retiradas conclusões políticas. Seria bom que fosse público o que ali se passou naquele dia trágico para um homem que, ao que parece, vinha em busca de uma vida melhor; e seria bom que também se conhecesse quais os procedimentos habituais para averiguações do SEF no aeroporto e quais os mecanismos de controlo para que nunca mais haja lugar a situações de violência e encobrimento como as que envolveram o espancamento até à morte de Ihor. Também me parece que seria bom que tivéssemos todos conhecimento dos exames psicológicos a que os agentes de autoridade são geralmente sujeitos bem como qual o controlo de despiste de consumo de álcool ou drogas que lhes é feito.

A bem da transparência e da confiança da população nas autoridades, tudo isto deveria ser claramente exposto.

Mas, enfim, tema de tal gravidade não pode ser falado en passant e, por isso, prefiro nada dizer. 

Continuo, então, onde estava: no meu livro. Um livrinho pequenino. Manuscritos de Felipa. No outro dia, quando o folheei estava com aquela alta expectativa que sempre sinto em relação a Adélia Prado e, não tendo sido atingida por um raio de luz ao abri-lo, logo me assustei perante a perspectiva de que, desta vez, talvez fosse decepcionar-me.

Mas não: há na escrita de Adélia Prado uma irreverência, uma subversão, uma brincadeira, uma graça e, ao mesmo tempo, uma tal ida ao miolo que não consigo nunca ficar-lhe indiferente. Pelo contrário, espanto-me. Mas é um espanto agradado, uma vontade de perceber como se consegue cerzir de forma tão criativa palavras normalmente dadas a outras companhias.

Não é fácil transcrever excertos pois perde a graça se descontextualizado. Há ali uma dança em que cada passo faz parte da coreografia. Não dá para amputar o pas-de-deux, não dá para retirar o voo, a graciosidade do movimento, a amplitude do salto. Mas, ainda assim, arrisco. Um petit amuse-bouche.

Teodoro atende o telefone e pelo jeito a Angelina acabou de morrer. Me dá a notícia no tom em que toda a notícia assim deveria ser dada: olha, a Angelina terminou o serviço dela, tomou banho e voltou para casa dos pais, foi de primeira classe. (...)

Acordei ótima, sem estranhar o mundo, nos eixos. Eixo é uma palavra perfeita, não propriamente bonita, mas como palavra é sentido, esta tem apenas o que chamaríamos beleza interior, consolo dado a mulheres feias e bondosas, ideia e consolo enganosos, porque beleza radia e o que radia radia para fora, ou estou delirando? Vou acabar descobrindo que eixo é uma palavra bonita por dentro e por fora? Azeite. Vou pensar muito não, pra não gerar confusão. 

Estou no eixo, isto é, funcionando sem estranhezas para alegria ou tristeza, rima e solução; mais ou menos no 'tanto faz' daqueles santos meio estranhos, esquisitos e inteiros como o macaco da historinha que acharam felicíssimo em seu galho:

-- Macaco, sua mãe morreu.

-- Ah, é? Mió.

-- É mentira, macaco.

-- Mió ainda.

Se minha mãe morrer vou ter escrúpulos de falar: melhor, ou melhor ainda, porque não sou perfeita, não sei conversar sem adjectivos, ainda não sou essencial. (...)

E é isto. Um prazer. A vida pode ser uma coisa simples. Basta não complicar. Mas não é fácil. Descomplicar é como desajectivar. A gente quer, quer, mas, mal se distrai, já está a acrescentar adjectivo ou complicação. Ou as duas coisas ao mesmo tempo que é ainda pior.

Talvez por isso, quando passei para o YouTube, o meu amigo algoritmo, adivinhando que ando a complicar o que é simples, avançou com uns vídeos que me prenderam do princípio ao fim. Cada um com uns vinte e poucos minutos. Ou seja, ao todo, para mais de uma hora de coisa boa. Ainda por cima, uma hora falada em francês -- que é língua que me agrada por demais, civilizada, elegante, cheia de convite para viver bem -- e com música suave em fundo. Caso não saibam francês, não faz mal. São vídeos bonitos de ver. Três casos de saber viver bem. E se vocês já têm uma vida assim, simples e boa, mió ainda.

Sylvie Ramu, sculptrice et femme de cœur dans son petit paradis 


La folle vie d’un aventurier philosophe de 95 ans - Paul Du Marchie


Les merveilles d'une créatrice de papier, Viviane Fontaine

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Pinturas de Oscar Howe ao som de Farewll, Angelina segundo Joan Baez
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Até aqui, no post, não entrou a palavra Natal mas não faz mal: entrou agora e está bem assim. Se gostaram destes vídeos façam de conta que são três presentes que aqui vos ofereço

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quarta-feira, abril 15, 2020

Como e quando vai ser o day after?
[Reflexões enquanto curto a arte da quarentena]





Durante os primeiros tempos assisti, revoltada, preocupada, a uns tontos a não perceberem o que estava a acontecer. Gabavam-se que não tinham medo, gabavam-se de não fazer parte dos grupos de risco. Punham os outros em risco ao exibirem a sua marialvice que não era senão estupidez.

No espaço de dias foram ultrapassados pelos acontecimentos. Estão em casa, calados, sem saberem qual o seu espaço nestes tempos de confinamento, reduzidos à sua inutilidade. 

Entretanto, algumas pessoas conscientes, desde logo, assumiram várias linhas de conduta e aí animei-me: em primeiro lugar preservar a saúde das pessoas, em segundo lutar pelo rendimento que auferem, em terceiro -- ou ao mesmo tempo, sabe-se lá qual a real ordem dos factores quando a gente mergulha de cabeça na procura de uma solução -- aguentar a sustentabilidade das empresas, não interromper a cadeia de valor, não deixar de pagar a fornecedores. Meio mundo para casa em teletrabalho e, ao mesmo tempo, assumir mil cuidados para que quem tem que continuar a trabalhar o faça em segurança. Tem sido uma luta. Tudo se tem feito, tudo. E tem estado a correr menos mal.

Muita gente começa a adaptar-se. Outros continuam sem perceberem nada e sem conseguirem acompanhar o andamento das coisas. Mal nos lembramos deles. Hoje lembrei-me de um e lembrei-me para pensar que há que séculos que nada sabia dele, que há séculos que nem me lembrava dele, para constatar a pouca falta que faz.


Começa agora a pensar-se no retomar. E, uma vez mais, os que não perceberam antes, continuam a não perceber agora. Acham que se vai voltar para os mesmos lugares, nas mesmas condições. Não vai. Digo: não vai. Ficam calados. Se insisto, dizem: logo se vê. E eu percebo que é uma maneira de dizerem: não chateies. Mas não sou só eu, é meio mundo que diz o mesmo: não vai voltar a ser o mesmo.

E há que começar a pensar em como vai ser. É nisso que deveríamos estar concentrados. É que vai ser muito diferente. Nós vamos estar muito diferentes. Por isso, grandes mudanças devem ser encaradas.

Quem for inteligente, ajustar-se-á e saberá ficar bem, talvez melhor que antes. E este 'quem' não é apenas aplicado a pessoas, é também a empresas e organizações em geral. As empresas podem ser mais sustentáveis, melhores, melhores para os trabalhadores, melhores para o ambiente, para a economia em geral.

Pelo meio, perder-se-ão hábitos antigos. Mas ganhar-se-ão outros. O padrão de consumo vai mudar e pode ser que mude para melhor.
Contudo, vi uma fotografia da abertura da Hermès na China, depois do confinamento, e fiquei com dúvidas quanto à minha ideia: filas compactas na rua, muitas pessoas sem máscaras, uma loucura, tudo ávido de consumo, tudo a marimbar-se para o corona, tudo danado para matar saudade de écharpe, de gravata, de luxo. Olhei a fotografia e pensei: será que o bicho homem é burro mesmo, não aprende nem por mais uma? 

Mas sou crente. Não crente de dar beijo em cruz que alguém segure por mim mas crente de crer mesmo, no mais íntimo de mim, na capacidade de superação de que, por vezes, o bicho-homem é capaz. Desde que bem enquadrado, desde que com baias, sem ter muito por onde se espalhar, bem trabalhadinho, o bicho-homem é capaz de lutar pela sua sobrevivência e é capaz de criar belas obras de arte, belos feitos, belos actos de generosidade. Acredito nisso. E acredito na força da natureza. Cada vez mais, acredito na imensa sapiência da natureza. E acredito na omnisciência, omnipresença e omnipotência do tempo. O tempo e a natureza e uma carreiro apertado e bem vigiado na carneirada que é o bicho-homem e talvez a coisa vá.

Aqui no campo, com o tempo frio e chuva que deus a dá, só tenho os canais generalistas e o computador. Sou, pois, poupada a comentadores ou a notícias dadas e reprocessadas. São poucos os comentadores que vejo e, ainda assim, ou é gente de saber ou vai de asa. Por isso, apenas ao de leve me chegam ecos de gente ansiando pelo regresso. Não sei bem o que defendem nem me interessa. O que eu sei, mas sei por mim e sei pelo que vejo nos círculos em que me movo (agora, de forma virtual), é que, tirando os descerebrados do costume, o que há é muito cuidado. Em casa os que podem ficar em casa e, quase numa redoma e sob apertada monitorização, os que têm que sair para ir trabalhar no local de trabalho habitual. E muito agradecimento, muito, muito, muito, a todos os que se arriscam todos os dias. E que assim continue enquanto não existirem melhores informações ou tratamento ou vacina.

Claro que, no meio da desgraça que está a acontecer à economia, tenho a sorte de trabalhar num Grupo grande, que opera em áreas que, apesar de tudo, apresentam maior resiliência face a este embate. Mal, mal, está tudo o que tenha a ver com turismo, com restauração, com espectáculo, com pequenos estabelecimentos, com actividades individuais (por exemplo, como estará a aguentar-se o pequeno salão de cabeleireira de bairro, em que só há uma cabeleireira, a dona, onde vou quando o rei faz anos?; e como estarão a aguentar-se as empregadas de limpeza dos escritórios que estão fechados?; e será que todas as clientes de empregadas domésticas lhes pagam como se elas estivessem a trabalhar?; e será que faz sentido eu continuar a ter empregada doméstica se ficar em casa nos próximos meses, sei lá quantos? e os ATL? o que vai acontecer a todos os funcionários se, nos próximos tempos, os pais vão estar, na maior parte, em casa? etc. etc, etc). Muitas dúvidas, muitas armadilhas, muitas incógnitas.


Por isso, antes que se comecem a dizer coisas, deve é pôr-se os pés na terra e começar a imaginar o que vai ser o mundo daqui para a frente. E começar a encontrar soluções para os problemas que se forem identificando.

E as soluções devem passar por ter em consideração que novas necessidades vão nascendo -- e que vai haver um certo retorno ao interior, a outras formas de vida.

Mas lá está. Para que tudo isto se encarreire e se encarreire com o menor dolo possível é bom que haja baias, que o bicho-homem seja tocado para entrar nos caminhos certos.

E aqui entra a liderança necessária. Liderança política, antes de mais.

Até aqui António Costa tem estado bem: tem ouvido cientistas, tem ouvido economistas. Deve ouvir também sociológos, antropólogos, urbanistas. Deve criar grupos mistos de reflexão que contenham cientistas, artistas, economistas, engenheiros, arquitectos, agrónomos, consultores de estratégia com implantação internacional, etc. Mas deve pôr esta gente a pensar para produzir orientações estratégicas globais dentro de muito pouco tempo.

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Numa de #achatar a curva#, há quem transforme em arte a quarentena. As obras aqui expostas provêm de um lugar bem pensado. E a Joan Baez, interpretando Diamonds and Rust, faz sempre uma boa companhia.

E, para rematar, uma mescla de COW, Swan lake e Midsummer nights dream, obra do genial Ekman

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E uma boa quarta-feira.

Dantes, quarta-feira era o dia em que se dobrava a semana. Agora as semanas são um contínuo. 

Mas que seja um dia bom, seja como for.

segunda-feira, julho 08, 2019

Gracias a la vida:
os segredos dos que se esquecem de morrer, nas 'zonas azuis' do planeta




Acho bonito que chamem às zonas do mundo onde as pessoas vivem até mais tarde 'zonas azuis'. O azul é uma cor saudável, tranquila, a origem e o fim de tudo -- isto, claro, depois e antes do branco original e final, depois e antes do grande infinito. O azul, o vasto horizonte que se funde com o grande líquido azul que transporta e preserva a vida, dentro e fora de nós.

Não me lembro se já algma vez aqui falei disto: os locais da Terra onde há idosos a quem a idade não pesa, vivendo muitas vezes até para lá dos cem anos, mas vivendo com qualidade, felizes da vida.

A nova obra do Bordalo II - um big gato na Expo


É um fenómeno que tem atraído a atenção de jornalistas e de cientistas. E eu, que sempre convivi de perto com gente de avançada idade, interesso-me pelo assunto.

Ainda conheci uma bisavó. Eu era muito pequena e lembro-me de uma velhinha deitada num quarto da casa da minha avó. Dos outros bisas não faço ideia. Tenho uma fotografias de um casal de bisavós e julgo que eram os pais da minha avó paterna mas não garanto. Nada sei deles, não me lembro de alguma vez ter ouvido falar deles. Daquele que fugiu às dívidas de jogo e mulheres ninguém sabia nada. Durante muito tempo, se se falava nele, alguém dizia: 'Se calhar ainda está vivo' mas, que eu saiba, nunca ninguém mexeu uma palha para saber do seu paradeiro. Sabia-se que tinha ido lá para as américas do sul e pouco ou nada mais. E creio que o recíproco também foi verdadeiro. Digo creio porque é isso: mão juro que assim tenha sido.


Quanto aos meus avós, tirando um que morreu novo num acidente horrível, os outros viveram até bem tarde. E o tempo vai passando e agora já são os meus netos que vèem um velhinho na cama e o velhinho agora é o meu pai. E ainda me custa chamar velhinho ao meu pai porque o meu pai sempre foi um homem tão desportista, tão autónomo, tão 'bem conservado' e parece que ainda acho que aquele AVC foi, de facto, uma coisa acidental, que não devia mesmo ter acontecido, daquelas rasteiras que veio mudar o rumo normal das coisas, interromper o que tinha tudo para ser uma vida tranquila para ele e para a minha mãe. Tentamos todos que viva o melhor possível mas o grau de consciência dele já é uma coisa que, para nós, é cada vez mais enigmática.

Mas a minha mãe, essa, sim, poderia muito bem figurar numa destas reportagens das blue zones. Tem uma vitalidade, uma jovialidade e um aspecto que parece de mulher muito mais nova. O que ela faz, o que ele pensa, o que ela ri, transforma-a num exemplo para quem lida de perto com ela. Os netos e bisnetos adoram estar lá em casa. E não é só pelo banquete que ela sempre prepara, é mesmo pela boa onda, pela compreensão e leveza com que encara a vida (apesar da tristeza -- e prisão -- que é partilhar a vida com alguém que se vê a definhar progressivamente, sem esperança que um dia melhore).


Mas, voltando às zonas azuis, o que parece ser comum entre os muito idosos que vivem até tarde conservando a qualidade de vida é:
  • a convivência -- porque a solidão é um mal terrível, uma coisa que corrói a alma e esgota a seiva que alimenta a vida, 
  • a alimentação natural -- muitos legumes e frutos, de preferência de época, locais, e ervas aromáticas, nomeadamente o alecrim, e carne não muitas vezes por semana, para aí umas duas ou três vezes; não são vegans, são apenas minimalistas no consumo de carne. 
  • o exercício, actividade física -- porque a inactividade faz perder massa muscular, faz perter o tónus, faz amolecer a alma e a vontade de festejar a vida; vários idosos têm a sua horta que cuidam e da qual provêm alguns dos seus alimentos

Fiquei contente por saber. Agrada-me a forma simples de viver e sempre que ouço que isso faz bem ao corpo e à mente fico descansada. Saber aquilo do alecrim, então, para mim foi uma alegria. Gosto imenso de usá-lo e os meus filhos estão sempre a aborrecer-se comigo, dizem que uso e abuso, e o meu marido faz coro, arma-se em vítima como se fosse obrigado a ingerir comida envolta em arbustos do campo. Nada disso. Uso de forma moderada e quando me parece que vem a propósito.

Por exemplo, hoje para o jantar (e a contar que sobrasse para a semana) fiz um guisadinho e, ao temperar, hesitei mas resolvi não usar alecrim. Conto como fiz e parece que ficou bom e digo que 'parece' porque  apenas o meu marido o provou.
(Eu hoje, ao jantar, fiquei-me pela sopa de legumes que tinha feito pouco antes, queijo e fruta, acompanhados por dois ou três goles de Trinca-Bolotas, e que rematei, à laia de sobremesa, com um quadrado de chocolate negro comido ao mesmo tempo que dois cubos de gengibre cristalizado). 

Mas, então, a receita do meu guisadinho. Tinha comprado vitela, em bocadinhos para fazer a kind of jardineira. Num tacho coloquei azeite, uma cebolona gigante cortada aos bocados, um tomate também bigalhão igualmente aos bocados, salsa, duas folhas de louro, uma meia dúzia de dentes de alho. Pus a frigir ligeiramente para que os sabores se misturassem. A seguir, juntei os bocados de carne, um pouco de sal, pouco, e, quando hesitei a propósito do alecrim, acabei por optar por um pouco de orégãos. Estava o calor no máximo e, quando levantou fervura, baixei. Gosto de cozinhar a baixas temperaturas. pelo que os meus cozinhados nunca ficam 'repuxados'. Coloquei uma pinguinha de água, apenas para poder estar a cozinhar durante mais de uma hora sem risco de acidentes. Quando voltei à cena já a carne estava macia. Nessa altura preparei cenouras, batatas doces, mais cebola, mais tomate, mais salsa, coentros e uma novidade dos meus cozinhados: quiabos. Juntei tudo e envolvi com uma colher, levantando a temperatura até que voltasse a ferver. Depois baixei, temperatura 3 numa escala de 1 a 9. Ficou ali a cozinhar por mais uns quinze minutos. Quando desliguei, continuou sobre a placa para que apurasse um pouco mais. Estava um cheirinho mesmo bom. 

Não sei onde iam estes seres irreais
que avistei hoje quando estava a caminhar à beira rio, desta vez do lado de cá

E, por ora, é isto. Deixo-vos com um vídeo de apresentação de uma série que vai passar em França e onde Angèle Ferreux-Maeght, chef de cuisine e naturopata e Vincent Valinducq, médico e investigador, investigam o que se passa nas zonas azuis junto de gente que anda por volta dos cem no Jaão, Sardenha, Grécia e Costa Rica.

Mais informação pode ser vista em À la découverte des "zones bleues", ces villages reculés où les centenaires vivent heureux, no site de Madame le Figaro.




Já agora, a quem possa interessar, mais alguma informação sobre os Segredos de uma vida longa, agora falado ou legendado em português.


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Todas as fotografias foram feitas este domingo.

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E a todos vós desejo uma bela semana a começar já por esta segunda-feira.

Paz, saúde e amor.

domingo, junho 16, 2019

Uma pseudo-realizadora lê sobre escândalos e antecipa outros encantamentos aqui, in heaven





Hoje de manhã, o meu tio mal me via, estava a regar o jardim. Está mais encurvado e reparo nas rugas; mas o sorriso é sempre o mesmo. Fica contente por me ver, pousa a mangueira e vem logo ter comigo, sorridente. Sempre foi uma pessoa serena. Nunca se ouviu que levantasse a voz, nunca se soube que se tivesse zangado. Muito diferente do irmão, sempre apressado e stressado, este meu tio é a calma em pessoa. O meu pai sai à mãe que sempre conheci em estado de alerta, sempre ansiosa com alguma coisa. O irmão sai ao pai, o meu avô tranquilo. Tenho cá o cadeirão onde o meu avô se sentava a ouvir rádio ou a ouvir televisão ou a ler o jornal. E tenho o pequeno móvel onde estava o rádio que também ali tenho. A minha avó sempre com coisas, que ele não limpava bem os pés à entrada e trazia terra para dentro de casa ou que ia à pesca quando estava mau tempo ou coisas assim e ele sempre sorridente, como se nenhuma daquelas reprimendas o afectasse. Recostava-se no seu cadeirão e ela que reclamasse à vontade.


Perguntei ao meu tio pela minha tia. Esmoreceu-se-lhe o sorriso, que não está nada bem, as dores nas pernas, a pouca vontade de se levantar, parte do dia na cama. Nada lhe disse, encolhi apenas os ombros: sempre assim foi, pouco dada à acção, sempre com receio de estar doente.
Lembrando-me dela, digo muitas vezes que ter medo de estar doente é, em si, uma doença. Foi disso que, desde que me conheço, ela sempre sofreu. E sofreu mesmo, como se estivesse doente de verdade. 
A minha prima habituou-se aos sintomas de tudo que a mãe tem. Sendo médica, sabe bem o que valorizar  e aquilo de que mais vale é distrair a atenção. Perguntei por ela, pela minha prima. O meu tio sorriu de novo, diz que está para a Dinamarca, a passeio. Faz ela bem. Penso que quem me dera.


E depois penso no meu pai, cada vez mais ausente, preso à cama, tendo que ser virado de tanto em tanto tempo para não ficar com escaras, alimentado através de uma sonda, já sem conseguir falar de forma que se perceba, pouco ouvindo, nada vendo. Por isso, faz-me muita impressão ir para longe por muitos dias. E tanto que sempre gostei de passear, e tanta a falta que me faz ir por aí, à descoberta. É certo que dele, não fora o AVC, se poderia dizer que tem uma saúde de ferro. Não sei quantas pneumonias já teve, quantas bactérias hospitalares já apanhou, quantas vezes pensámos que estava por um fio e, afinal, a verdade é que continua vivo e, tirando o declínio que a falta de massa muscular acarreta, tudo o resto vai funcionando bem. Quando me lembro que, quando teve o AVC, toda a gente ficou consternada, como se fosse impossível um homem daqueles ter uma coisa destas, e, afinal, tantos desses, saudáveis na altura (ou que assim se julgava), afinal, já cá não estão. Tanto que, por exemplo, me lembro dos meus outros tios, que tanto ajudaram, tão cheios de saúde e de alegria, e que um após o outro já lá se foram. Por isso, digo para comigo que o meu pai está há tantos anos assim e sempre ultrapassando os problemas e sobrevivendo, que não tem grande lógica eu estar sempre com medo de me afastar por uns dias. Mas nestas coisas dos medos não há grande lógica, há apenas medos.


Estamos in heaven, descansadamente, sem nada que fazer. De tarde, dormi durante um bocado. Soube-me tão bem. Durante a semana o meu corpo aguarda por estes pequenos momentos de repouso.

O campo está de uma suavidade que dá gosto mas há festa na aldeia e tudo o que cantam ou anunciam ouve-se como se estivessem quase aqui à porta. Não posso dizer que não me incomoda um pouco. Não que esperasse ouvir a Callas. Isso não que o meu bebé não está de DJ à festa. Também já nem esperava genuína música portuguesa. Isso já nem se sabe bem o que seja, creio eu. Mas ouvir uma misturada de covers, barulheira pegada, anúncios de sorteios misturados com uma chinfrineira excessiva, isso é poluição sonora que fere a minha sensibilidade. De qualquer maneira, à tardinha fez-se silêncio e os pássaros saíram das árvores a cantar, esvoaçando baixo, pousando por perto.

Infelizmente, o ruído recomeçou mal anoiteceu e durou até há pouco.


Ao fim de tantos anos, estreei-me hoje num lugar bom para se estar ao fim do dia. Do lado da sala da televisão, a luz do ocaso dilui-se em ouro sobre as árvores, luminosidade que me encanta muito, e eu limitava-me a abrir as portadas de vidro para o ar e o sol entrarem pela casa ou, então, ia lá para fora, para o banco de madeira que está encostado à parede da rua, mas que não é especialmente confortável para se estar a ler. É que gosto de ler reclinada. 

Disse ao meu marido que havia era de ter uma daquelas cadeirinhas baixas, inclinadas, que se põem na areia. Ele disse que o que não faltam são cadeiras, na despensa. Lembrei-me que, de facto, ao fundo da despensa (que aqui é uma divisão razoavelmente grande, em especial comprida) há cadeiras mas não tinha nada ideia de haver muitas e, muito menos, dessas. Fui logo ver. Só duas cadeiras e um banquinho pequeno. As cadeiras são iguais, de tipo realizador. Peguei numa e pu-la junto à pedra grande.


Portanto, pude estar reclinada na cadeira de realizadora mas mais na base da pseudo: esticada, cabeça encostada atrás, pés em cima da pedra. Muito bem instalada, sob a copa de uma robinia também pseudo, pseudoacácia. Ouvindo os passarinhos, olhando a luz dourada, respirando o ar limpo e perfumado. E fotografando, fotografando tudo.


Tenho estado a ler o Escândalo do Século do Gabriel Garcia Márquez. Tenho também aqui o Wagneriano Perfeito que continuarei a ler amanhã e já antecipo a minha admiração pasmada pela inteligência e elegância da escrita. Estranhamente, quando me deixo encantar desta forma, acontece-me parecer nem prestar atenção à informação contida no texto, fico totalmente entregue à fruição da beleza que se desprende da inteligência das palavras. Gostava de um dia poder dizer que sou discípula de Shaw tal como Estela Canto mas não tenho disciplina para ser discípula de alguém. Pessoas como eu são puras diletantes, cultivadoras de indisciplinas e desconhecimentos. Além disso, não sei se seria prudente: as discípulas de Shaw produzem perigosos efeitos em quem também o admira. Ah, sim, como é poderosamente afrodisíaca a inteligência. Borges que o diga, não é...?


E, por agora, é isto.

Estou com vontade de pegar na máquina fotográfia e ir fotografar chávenas antigas ou copinhos de vidro que têm bem mais que a minha idade e que vieram de casas de quem há muito partiu. Se verá se o faço e depois se as fotografias ficam boas para vos mostrar. Conservo peças antigas que guardam memórias e que outra utilidade não têm senão essa. Felizmente aqui tenho espaço para isso mas lá chegará o dia em que alguém delas se desfará por não ter qualquer vínculo emocional que justifique o espaço que ocupam. Por isso, se puser aqui a sua imagem, talvez seja uma forma de se manterem junto à minha memória para todo o sempre. Se é que isso importa para alguma coisa.



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E um bom dia de domingo a todos

segunda-feira, outubro 17, 2016

Pela ASurf até à Ericeira


Depois de, ali em baixo, ter feito o gosto ao dedo e falado dos fantasmas pafianos que por aí andam, perdidos, moralmente ausentes do país, corpos com cabeças descerebradas, chihuahuas e galinhas, um espectáculo deprimente a que a comunicação social tenta obrigar-nos a assistir, e de ter partilhado dois vídeos do Luís Vargas que mostram a indigência do Láparo e apaniguados, volto-me para o mar e conto por onde andei este domingo.

Gosto de dias assim, outonais, a pedir aconchego. Mas gosto de procurar o aconchego depois de sentir o frio, de me expor ao frescor que sobe das águas em dias de mar grande e maresia húmida a colar-se à pele.

Ericeira


Quando no carro, ouvimos no rádio que a A8 iria chamar-se ASurf. Não sei se sim, se não (aliás, já li que não). Mas parecer-me-ia uma excelente ideia. Esta linha de costa tem um mar formidável e, a nível turístico, termos associada a nós, de forma expressiva, esta associação ao surf parece-me ideia a fomentar em força com intensas campanhas de marketing.

[Entretanto, já há quem parodie a coisa, e parodie com graça, mas é por sermos assim, tendencialmente conservadores, que nunca ousamos louvar o que de bom temos a bem de melhor vendermos aquilo que tanto nos pode ajudar a compor a economia]
Mas adiante. Faço-me à estrada até lá, até à Ericeira.

Repare-se como a nossa importância se torna relativa quando vistos de longe,
insignificantes face à imensidão do mar

Em dia cinzento como o de hoje, todo ele chuvinha miúda, pelas ruas junto ao mar apenas passeiam os mais excêntricos e os que se vê que andam em demanda da melhor onda e, nos miradouros ou encavalitados nos rochedos, apenas os solitários ou os que gostam de olhar de frente as lonjuras. 

Levei jeans e uma blusa de mangas compridas mas fininha. Mas, depois, a chuva ficou a sério e a temperatura baixou. Tive que vestir um casaquinho. Por acaso, era também de algodão fininho e todo aos buraquinhos mas, parecendo que não, sempre agasalhou um pouco. Claro que nestas alturas sou admoestada -- que aquele casaco é uma anedota, que, em dia de frio e de chuva, só eu é que me lembrava de me prevenir contra as intempéries com um agasalho virtual. Pois. Mas não apenas sou encalorada como me custa render-me à roupa de inverno e deixar para trás as minhas blusas e casaquinhos levezinhos. De qualquer forma, tinha no carro uma solução de recurso: um poncho de renda aberta, em cru, bem lindo, feito pela minha prendada mãe. Mas não careceu. Também não tínhamos chapéus de chuva; mas não foi grave para quem levava blusões impermeáveis e para mim ainda menos porque gosto de andar à chuva.

A pensar na vida ou a estudar os movimentos do mar

E foi, portanto, encantada, sentindo a pele fresca e molhada, que andei rente ao bater das ondas, vendo as cores bravas das águas, olhando aqueles horizontes feitos de ocidente e mar. 

O almoço foi um sargo a saber a oceano e foi sobre o oceano que o saboreámos. 

Depois passeámos pela vila, pelas suas ruazinhas empedradas, vendo as casas arranjadas, pintadinhas, vasinhos junto às janelas, flores de papel a enfeitá-las, imagens de Nossa Senhora da Nazaré um pouco por todo o lado.

Sendo zona de veraneio, é, no entanto, com o tempo assim, quando não há muita gente e com um mar rijo e muito belo, que eu prefiro as vilas costeiras como a Ericeira.

Que liberdade a das gaivotas que podem sobrevoar e dançar sobre este mar bravo e limpo 


Partilho convosco algumas das fotografias que fiz. Espero que gostem. E, se estiverem de acordo, vamos com Bob Dylan e com Joan Baez. O som pode não ser o melhor mas, ainda assim, apetece-me ouvi-los.

Yes, and how many years can a mountain exist
Before it's washed to the sea?
Yes, and how many years can some people exist
Before they're allowed to be free?
Yes, and how many times can a man turn his head
And pretend that he just doesn't see?



No meio do mar andam surfistas e body boarders mas, avistados de longe,
são pouco mais que escuras gotas num mar azul, verde, branco

Poderia ficar durante horas a ver a dança das águas sobre as águas, sobre as rochas, sobre a espuma

Junto às Furnas da Ericeira o mar sobe sem pejo.
Um festim de brilhos, um fogo de artifício em estado líquido 

A beleza extrema do mar

As lojinhas do comércio tradicional no centro da vila

Tão bons estes lugares. Quem desenhou, construiu, emoldurou uma capela assim, tão bonita?
E que bem se deve estar assim como esta mulher estava,
sozinha com os seus sentimentos, com as suas crenças

As casas da Ericeira estão enfeitadas com estas flores de papel em branco e em azul.
E a Nossa Senhora da Nazaré protege as casas, quem lá vive dentro e quem passa na rua
(e talvez quem por aqui passe, pelo Um Jeito Manso)


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E depois do turismo, caso vos apeteça, mais abaixo a baixa política. Vou de braço dado com Luís Vargas na denúncia do Pedro Cambalhotas Coelho e, de caminho, dou umas bicadas no que resta da esfrangalhada trupe pafiana 

(e espero que ele não se importe -- ele, o Luís Vargas, claro, que para a opinião do Láparo estou a marimbar-me, como é óbvio)

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segunda-feira, abril 13, 2015

Lisboa, a Bela - Jardim Botânico, doces recordações em verde [2º de 4 posts]


Na minha vida os jardins ocupam um lugar especial. Estão ligados às minhas melhores memórias e a esses jardins sempre gosto de regressar. Já muitas vezes falei dos Jardins da Gulbenkian mas há um outro que recordo também com muita ternura. Passei no Jardim Botânico momentos significativos da minha vida. Hoje, ao passearmos por lá, voltámos a percorrer os mesmos caminhos e admirámo-nos com os anos que passaram desde os gloriosos tempos em que aprendemos a conhecer-nos. O Jardim está quase igual e, por dentro, talvez nós também estejamos. Existem agora uns cogumelos de pedra que antes não existiam e foi com desgosto que vimos que o pequeno lago perto do qual sempre nos sentávamos está agora sem água - mas, de resto, a magia está toda lá, pudémos testemunhá-lo uma vez mais.




Um coração envolto em verde


Cogumelos de pedra

Um aconchego de chuva verde


A beleza trágica de uma árvore morta


Uma árvore que parece uma casa muito bela, com tecto trabalhado, cortinas de renda


terça-feira, março 03, 2015

O que é a arte? O que é a beleza? - que questões difíceis me coloca, Rosa Pinto. A verdade é que não lhe sei dizer, posso apenas falar de algumas coisas de que gosto.


Eu não sei o que é arte nem sei o que é belo. Sei apenas o que me toca e, então, eu não sei explicar porquê. O que a mim me parece belo muitas vezes não o é aos olhos de outras pessoas. Não sei o que é mas sei o que não pode ser: não pode ser perfeito. Não gosto do excesso de perfeição. A perfeição absoluta atinge-se com muito esforço, com depuração, com a perda da espontaneidade, e esse esforço, essa depuração, a mim parece-me quase um ornamento e eu não gosto muito de ornamentos. 

Quando eu fazia tapetes de Arraiolos, aquelas complicadas réplicas de tapetes do século XVII que aqui tenho em casa, eu bordava com todo o preceito. Os mais exigentes, ao verem os tapetes, viravam-nos logo porque pelo avesso é que se vê se é um verdadeiro Arraiolos e nunca encontraram defeito nos meus, eram perfeitos. Milhares de pontos e nem um ponto em falso. E, no entanto, não há um único tapete em que eu não tenha deliberadamente trocado um ponto. Tinha que ter um pequeno toque de imperfeição senão não seria meu.

Às pessoas de feições muito perfeitas eu acho monótonas. Às pessoas muito bem comportadas eu acho umas chatas.

Da mesma forma, aquilo que eu acho belo ou que me toca como sendo arte tem que conter assimetria, desconcerto, desequilíbrio, tem que haver algures o chamamento para o abismo.




Emocionei-me uma vez perante uma grande tela de Caravaggio e talvez o que mais me tenha impressionado tenha sido a sujidade das mãos, das unhas. Ou o ar de deboche e de noites mal dormidas dos rapazes que ele pintava.




Ou o excesso de injustificação que existe nas telas de Rothko. A vontade de me misturar nas cores sem motivo, de me perder no azul, de me incendiar com os encarnados cheios de luz. Ou os encarnados densos, sombrios, contendo a perdição da noite mais profunda. Ou o nada banhado de cor, a oração mais sentida.







Ou cavalos azuis. Gosto de cavalos azuis cruzando os espaços que habito, sonho que atravessam a noite transportando sonhos, ouço-os passar sedosos, silenciosos, apenas a sua corrida deixando um rasto de corpos suados no ar. De manhã encontro-os em repouso, passeando tranquilos entre caminhos onde o alecrim floresce.




Ou corpos nus que dançam em roda, e a música une o sangue que neles corre e o coração une-se para que a dança em roda se feche como um anel o desejo que os percorre. E junto-me a eles e festejo os perfumes suaves e o som dos pássaros e o prazer que o meu corpo sente quando dança ou quando vê outros corpos livres, elevando-se em desequilíbrio até onde os deuses permitem.







Na escultura também procuro o imprevisto, a imperfeição dos corpos. Ou a ausência de explicação, o desenho da luz, as sombras, os corpos abandonados, os corpos sem forma, ou a erosão do tempo.

Na música eu gosto do que me transporta nem sei para onde, para o desconhecido, porque o que me atrai é o que não conheço. Ou melodias que me embalem. Ou que me tirem para dançar, ou que me levem até às portas de jardins cheios de perigo.

E na escrita eu gosto que as palavras tenham vida própria e criem histórias impossíveis, teias imprevisíveis onde os corpos não escondam a carne, onde os olhos não escondam as lágrimas, onde os corpos não escondam o riso e o voo, onde os sexos não tenham pudor nem limites. E gosto de cartas e de diários e gosto de sentir que está ali a essência de quem os escreveu, sem véus, sem rodeios. Ou subtilezas que mal se percebam. Ou confissões pagãs, ou segredos sagrados ou a semente da loucura.

E gosto da leveza da poesia. Ou do peso esmagador da poesia. Ou da música da poesia. Ou do sangue quente da poesia. Ou do brilho ardente que se esvai do coração dos apaixonados e se transforma em poesia. Ou das cinzas e sombras que se ocultam na poesia. Ou da terra fértil e húmida que cheira a poesia.




E nas flores eu gosto que elas nasçam e vivam por si, selvagens, livres, delicadas, efémeras. Perfeitas e imperfeitas como o amor, como as palavras não ditas, como o desassossego que se adivinha.




E nas árvores eu gosto de tudo. Do tronco que fica mais largo como o corpo de uma mulher que amadurece, da pele que se solta como memórias perdidas, de como se enlaça em flores e alegrias, dos cheiros que se misturam como seivas, espermas, salivas, beijos.




E na fotografia eu gosto do que não é óbvio, do que se adivinha por detrás do olhar de quem fotografou e gosto de sentir a aragem que fazia flutuar a flor ou o silêncio que envolvia uma orquídea na escuridão, ou um rasgo numa parede ou na pele de um homem.

E...

E podia continuar e estaria de gosto. Ainda não falei de arquitectura, por exemplo. Ainda não falei da representação. Mas a noite já envolve as minhas palavras e eu tenho que me ficar por aqui.




Vou sonhar que sou uma mulher feliz, mergulhada em espantos azuis e vou ouvir o canto dos pássaros e a música do vento nas ramagens e vou esperar que passem os cavalos azuis para eu me misturar com eles e partir à descoberta dos mistérios da noite.

Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredores magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.

[Herberto Helder]

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Permitam que vos convide a visitar o meu Ginjal e Lisboa. Hoje tentei redimir-me da minha ausência por lá: 

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Por aqui tenho tanto sono que já nem consigo colocar legendas nas imagens. As minhas desculpas.

E permitam ainda que vos convide também a descer até ao post seguinte onde dedico uma música ao láparo: A mula da cooperativa. Ai és tão linda.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.