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terça-feira, julho 26, 2022

Obra de arte comestível, coisa para verdadeiro connaisseur

 



Gosto de cozinhar, já o disse. Mas não gosto de fazer doces. A questão é que sou indisciplinada para além da conta e, por isso, tenho dificuldade em seguir receitas e, na doçaria, ou já se é um doceiro experiente ou não dá para arriscar. O processo em si é daquelas coisas que ou se deesenrola como é suposto ou azarinho, não se consegue rectificar a meio. Ou sai bem ou sai mal. 

Dantes eu arriscava. Mas houve umas duas ou três vezes em que a coisa correu mal e desmotivei-me. Até hoje sou alvo de chacota. Coisa traumatizante demais.

Numa das vezes, não me lembro que doce era, quando se estava a servir, detectou-se que uma colherzinha usada no processo lá tinha ficado dentro. Ao servir e dar com a colher foi o fim da picada. Risota geral que perdurará até ao fim dos tempos.

Outra que não cai no esquecimento foi um arroz doce que, no fim, em vez de estar em estado quase sólido, empapadinho e gostoso, bom para ser delicadamente polvilhado com canela, se apresentou líquido, um ofensivo leite com grãos de arroz a boiar.  Um tacho com um caldo humilhante. Gargalhada geral. 

Mais tarde, uma amiga, engenheira química de formação e estudiosa da química aplicada à culinária, explicou-me: como sempre, não segui a receita, ou seja não juntei o açúcar na devida altura, juntei-o antes de tempo fazendo com que o arroz ganhasse uma crosta impermeável, impedindo a absorção do leite. Mas só soube isto anos depois pelo que, na altura, o fenómeno pareceu injustificável, aselhice de alto calibre. Foi tão traumatizante que não ousei reincidir. 

Outra vez fiz um doce que ainda hoje recordo com saudade. Estava mesmo bom. Fundi chocolate, juntei uma raspinha de casca de laranja e misturei com frutos secos (alperce, ameixa, passas, cajus) e cristalizados (cascas de laranja, ananás, pera). Não me lembro se levava mais alguma coisa. Coloquei num tabuleiro e levei ao frigorífico para solidificar. Depois cortei em cubos. Como gosto de chocolate com um saborzinho a laranja e de frutos secos e cristalizados, achei delicioso. Mas só eu achei. O meu marido, na altura, mal tocava em doces. Agora, com o passar dos anos, está a ficar guloso. Mas na altura não lhes tocava. Os meus filhos, por seu lado, odiavam frutos secos e cristalizados. Nem quiseram provar. Só de olhar, já sentiam repulsa. Acabei a comer sozinha um doce que era uma delícia. Mas delícia que não é partilhada não é alegria, é frustração.

Entretanto, ganhei aquela consciência de que é melhor cortar nos açúcares e, portanto, para me poupar a potenciais novos desaires e para não contribuir com açúcares escusados, no que se refere a fazer bolos ou outras sobremesas, estou fora. Aviso logo: ou compro bolos e/ou gelados ou façam o favor de trazer.

Mas, dito isto, reconhecendo as minhas lacunas técnicas e a minha dificuldade em ser seguidista em relação a receitas, se não pratico a verdade é que frequento vídeos com receitas simples, doces que se fazem na frigideira, no fogão, tal como me delicio a ver vídeos com doçaria artística. Vejo e fico com vontade de superar a inibição castradora. Mas sei que, mal me pusesse em acção, haveria de inverter a ordem dos factores ou arriscaria em ingredientes não previstos e, portanto, as probabilidades de, uma vez mais, me sujeitar à troça colectiva seriam mais que muitas.

Mas quem sabe um dia não me supero e não arrisco um doce com pouco açúcar e que seja uma coisa fantástica de bom sabor, uma mistura improvável, uma coisa arrojada, incapaz de a gente parar de comer. Ou de olhar. Bolo que parece peça de bordado, peça de olaria, obra de arte.

Os bolos que usei para ilustrar as palavras gulosas são da autoria de Leslie Vigil. Parecem bordados nossos, daqueles dos lencinhos de namorados (creio que de Ponte de Lima), coisa de uma perfeição e graça que dá gosto olhar. Pena deve ser cortar e comer.

E vejam, por favor, este vídeo: doces artísticos, lindos, uma loucura de criatividade. Vários doceiros, vários artistas. 

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Desejo-vos um bom dia

Saúde. Doçura. Paz.