Acho que não vale a pena desvalorizar a gravidade do que está a passar-se. Nada disto é muito novo, é certo. Mas está agora tudo muito visível. Há coisas que já não é possível disfarçar.
E, face a tudo o que se sabe e vê, é legítimo colocar tudo em perspectiva e ver o que é que, à luz do mundo de hoje e de tudo o que já não é passível de ocultação, ainda faz sentido.
1 - Há muitos pedófilos na Igreja Católica em Portugal. E não apenas há muitos pedófilos como há muitos encobridores de pedófilos; e tão criminoso é quem pratica como quem, encobrindo, permite que os crimes continuem a ser praticados. E, infelizmente, também há muitos crentes que, sabendo o que sabem, continuam a ser tolerantes para com os criminosos, deixando-lhes o campo aberto para que continuem a agredir crianças.
É verdade que não é apenas em Portugal mas agora estou a falar especificamente em nós.
2 -- Os crimes de pedofilia ou de encobrimento são agravados pelo facto de serem praticados por gente cobarde que, na chamada Casa de Deus, abusa da sua posição para violar de crianças. É gente sem princípios que, com as mesmas mãos emporcalhadas com que abusaram de crianças, dá a hóstia à boca dos que ainda se sujeitam a isso. Estes pedófilos são gente imunda que, depois de cometer os mais imperdoáveis pecados, vai ouvir em confissão os que ainda se sujeitam a isso. Estes padres ou diáconos ou bispos são gente hipócrita e sem moral que depois de cometerem ou encobrirem crimes contra crianças tem o descaramento de ir para o púlpito dizer aos outros o que devem fazer. Acresce que têm a falta de vergonha de dizerem que falam em nome de Deus.
3 - Começamos também a constatar o impensável: aqueles que ouvem em confissão e pregam a palavra de Deus, ensinando os ditos sagrados mandamentos, são também públicos mentirosos.
Não consigo dizer se são descarados mentirosos ou relaxados mentirosos. Ou seja, não sei se mentem porque são habitualmente mentirosos e acham que basta depois irem ter com um deles e pedir perdão e está tudo resolvido, ou se são simplesmente desmazelados que nem se dão ao trabalho de se informarem capazmente antes de falarem. Aquela de dizerem que não podem fazer nada (ie, não podem suspender os padres acusados de pedofilia) porque apenas tinham recebido uma lista de nomes é de bradar aos céus. De imediato foram desmentidos. E todos ficámos a saber que, ao mais alto nível da hierarquia da Igreja em Portugal, se pratica a mentira.
E tão grave quanto serem mentirosos é não terem vindo depois pedir-nos desculpa por nos terem querido enganar.
4 - Há depois a desculpa mais esfarrapada e infame de dizer que, antes, a legislação era outra e que a percepção social destes crimes era outra.
E isto é a opinião ao mais alto nível da hierarquia da igreja.
E eu gostava de saber se era porque esta era prática banal e sobre a qual se estendia um manto de silêncio que tantos destes homens iam para padres? Para saciarem a sua tara com crianças indefesas? Por saberem que poderiam agir impunemente?
E sentiam-se bem? Pediam perdão, rezavam três avé marias e ficava tudo bem... E, ainda hoje, ainda não percebem que ficava bem para eles mas não para as crianças, para sempre sofrendo a dor de terem sido vítimas de abuso sexual?
5 - Um outro veio dizer que acha que estamos todos a ser pouco católicos pois os pedófilos podem arrepender-se e ser perdoados e ficar tudo bem.
E, dizendo isto, revela não perceber a gravidade do crime, um crime sem perdão.
Mas mais do que isso, revela bem o uso que a Igreja Católica dá à confissão.
Se há coisa que me parece medieval, absurda e, até, perversa é a prática da confissão. Uma pessoa sente que fez mal e, em vez de resolver o assunto junto de quem foi vítima da sua maldade ou de resolver o tema dentro de si próprio de forma pedagógica, no sentido de interiorizar que não vai voltar a fazer isso pois já sabe que se sentirá arrependido, vai antes ter com um padre que lava a coisa com umas rezas e fica tudo bem. Suprema cobardia, suprema hipocrisia.
E mesmo agora, perante crimes desta gravidade, há padres e bispos que acham que, se os pedófilos disserem que se arrependeram e rezarem umas avé marias, ficará tudo bem, poderão continuar na sua santa vidinha.
Segundo eles é para isto que serve a confissão, para passar uma esponja por toda porcaria e crimes que se cometem.
E depois, já todos 'limpos', vão pôr na boca um pastilha que, num exercício de infantil fantasia, fazem de conta que é o corpo de Deus. Tudo posto na boca por uma mão que não se sabe por onde é que antes andou.
6 - E eu, à luz do que tem sido a prática da Igreja desde sempre (e vale a pena deixar aqui a palavra Inquisição para que não pensem que estou a exagerar?) e à luz, agora mais recentemente, do que se conhece destes hediondos crimes sexuais, pergunto:
Aos dias de hoje, em Portugal, qual o papel da Igreja Católica?
Para que serve? A quem serve?
E, efectivamente, o que procuram as pessoas que, depois disto tudo, ainda procuram a Igreja Católica?
E não são perguntas retóricas. Não. Tenho mesmo muita curiosidade sobre tudo isto.
_____________________________________________________________
Nota: O que é verdadeiramente importante num ser humano -- como fazer o bem, ser generoso, tolerante, inclusivo, não preconceituoso, autêntico, etc. -- são atitudes que se encontram mais facilmente junto de quem não é praticante católico do que de quem o é.
E a espiritualidade e a capacidade de encantamento perante o indecifrável, como é óbvio, não é exclusiva do catolicismo.
Por isso, em concreto, face a tudo o que se conhece da teoria e, sobretudo, da prática da religião católica e face ao que é o mundo de hoje, para que serve a Igreja Católica tal como a conhecemos?
E não vale a pena falar nas 'obras de caridade' pois o que não faltam são organizações laicas de solidariedade social.
Nem vale a pena falar nas peregrinações nem nos grandes ajuntamentos em Fátima ou nas Jornadas da Juventude ou em coisas assim. São momentos de mobilização, é verdade. Reconheço. Mas, em concreto, mobilização para quê? Servem para quê? Na verdade são, sim, momentos de suprema alienação que a Igreja Católica, se fosse pessoa de bem, deveria dissuadir.
--------------------------
A sociedade portuguesa mobiliza-se facilmente em torno de pequenos casos mas é avessa à reflexão ponderada sobre grandes causas: a religião nos dias de hoje, o papel da Igreja Católica na actualidade, a demografia, a Inteligência Artificial, as alterações climáticas, a importância da arte (etc.)
Há temas que merecem reflexão desapaixonada, racional, objectiva. Mas quando falo em reflexão falo em trazer para o debate e para análise gente que conheça bem o passado, gente que conheça a actualidade, gente que consiga perspectivar o futuro. Não falo dos papagaios do costume que poluem qualquer ambiente e infectam qualquer tema. Falo de gente que queira mesmo trazer valor acrescentado para as gerações futuras e não apenas um afago no seu mísero umbigo.