quinta-feira, dezembro 31, 2020

Na rua

 

Nada pode ser tomado como garantido. Nada, nada, nada.

Amores eternos soçobram ao fim de algum tempo. Paixões que se julga fortificadas por unirem almas que quase parecem gémeas esbatem-se e acabam reduzidas a nada. Empregos maravilhosos acabam sem que as pessoas tenham nisso qualquer responsabilidade. Pessoas saudáveis descobrem que afinal, sem o saberem, estão doentes. Gente que se acha o máximo, tratando os outros com mal disfarçada sobranceria, acaba, de um dia para o outro, por ser alvo de desprezo ou chacota. Qualquer de nós já testemunhou ou viveu situações destas. Por isso, quem se sinta titular perpétuo de privilégios, sejam de que natureza forem, está apenas a candidatar-se a um balde de água fria que o deixe desolado até à quinta casa. Mais vale a gente sentir-se agradecida pelo que tem e, a cada momento, estar mentalizado para a probabilidade de, um dia, ter que voltar à casa de partida e, passo a passo, voltar a conquistar tudo (a casa, o trabalho, o amor, a saúde, o respeito alheio, a dignidade)

Muitas quedas, doenças e desgostos podem quase anular uma pessoa e imagino o brutal esforço que é necessário para que se reergam, refaçam, reinventem. Imagino também que, se isso acontecer sem apoio ou companhia, seja muito mais difícil. Por isso, é importante que estejamos despertos para perceber quem, junto a nós, precisa de ajuda. Contudo sei também que muitas vezes quem o precisa não o pede: para não preocupar os outros, para não assumir a sua própria vulnerabilidade, com receio de inspirar pena ou repulsa. Reconhecer que se tem um problema e que se precisa de ajuda é fundamental e requer, muitas vezes, uma grande coragem.

O vídeo que abaixo partilho mostra-nos Paul, um jornalista desempregado, sem casa. A sua bonomia e a esperança que o anima são comoventes. 

Paul is a journalist.  Since losing his job, he has hitchhiked over 36 000km in 15 months across South Africa, looking for work. In a country described as one of the most dangerous in peacetime and with unemployment of well over 30%, his efforts have been in vain. But his journey has taught him many lessons about the kindness of ordinary people.

"We all have problems, we all have challenges.  But we all have the ability to do some good." - Paul 

Talvez o título 'On the road' devesse ser traduzido não por 'Na rua' mas, talvez, simplesmente, por 'Na estrada' ou 'A caminho', em especial pelo seu incansável caminhar, não menos do que uma média de cerca de oitenta quilómetros por dia ao longo de quinze meses. Comecei por intitular o post por 'sem nada' mas também não é verdade que Paul não tenha nada. Tem. Tem um sorriso cativante, tem força anímica para continuar a tentar ter uma vida mais segura, tem ainda o gosto pela leitura e pelos outros, tem esperança. Por isso, talvez tenha o que é necessário para continuar a procurar uma vida melhor. Fica, pois, simplesmente, 'na rua' 


E entrei naquela fase de despedidas do ano que me leva a expressar desejos para o ano que vem.

Por exemplo, gostava de dizer que penso que deveremos sentir compaixão pelos que, sem que alguma vez lhes tenhamos feito algum mal, nos insultam, nos tratam desrespeitosamente. Mas só até ao ponto em que o que nos fazem de mal não nos afecte. A partir daí, há que ter a coragem de lhes dar um claro 'chega para lá', em especial quando o mal já roça a violência, mesmo que apenas psicológica. Em contrapartida, é bom que demonstremos a nossa estima pelos que nos querem bem. O afecto é um dos motores da estabilidade emocional e a sua demonstração, mesmo que não efusiva, é a base na qual assenta a harmonia entre as pessoas. Claro que há muitas pessoas que vivem sozinhas, sem contacto com família ou com amigos, e estão bem assim. Talvez alguns deles tenham amigos virtuais e, de vez em quando, descarreguem as suas frustrações insultando 'conhecidos' por quem alimentam ódios de estimação. Para esses também deveremos, creio eu, reservar alguma compreensão. A vida é curta. Saborearemos melhor o privilégio que nos é dado por vivermos se o fizermos em paz, connosco e com os outros.


As fotografias são da autoria de Steve McCurry
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Que de 2020, ainda assim, vos fiquem bons momentos.
Que o 2021 venha por bem.

quarta-feira, dezembro 30, 2020

Para que serve a poesia?

 


Não tem havido poesia nos meus últimos dias. Não que tenham sido desagradáveis. Muito pelo contrário. As reuniões acabam com o ecrã repleto de rostos sorridentes. Alguns, em separado, em reuniões distintas, formulam votos dizendo 'que daqui por um ano estejamos aqui a festejar o sucesso que tivemos'. Outros dizem: 'ninguém esperava tamanha revolução' e eu, por dentro, sinto aquele arrepio que tão bem conheço, o mesmo que sentia quando, em pânico numa montanha russa, pensava 'mas porque é que me meti nisto?', sabendo que já ser tarde demais para voltar atrás. Um disse: ''uma revolução preparada cientificamente, as pessoas não esperavam uma coisa assim, estão surpreendidas e agradadas'. E eu sinto, de novo, aquele arrepio. Um mortal encarpado -- e temos que cair de pé, continuar a andar, a saltar, a ir em frente. Mas como, se não houve treino?

Olho para trás e vejo que, sem antes saberem ao que iam, os passos que davam agora lhes parecem estranhamente coerentes, como se tudo milimetricamente planeado. Um disse: 'tiro-lhe o chapéu, na altura não sabíamos porque nos tinha escolhido, agora está tudo claro, agora tudo faz sentido' e eu e aquele arrepio. É verdade. Agora tudo faz sentido. 

Por isso não penso, não planeio, nunca penso, nunca planeio. As coisas, sem eu saber como, parece que batem certo. A posteriori parece que estava a dar passos de um plano bem pensado. Mas sei que, ao dá-los e ao levar outros comigo, eu não sabia para onde estava a conduzi-los. 

E, ao contrário dos que me dão os parabéns, eu sei que só saberei se esta aventura bateu certo daqui por um ano. E o que penso é que, se me perguntarem o que vou fazer durante este ano, não saberei dizer. Mas confio que não devo pensar, deve é deixar-me ir. É um bocado assustador, sobretudo para mim.

O meu marido que assiste a esta minha caminhada, a trabalhar de manhã à noite, diz que não precisava de ser assim, tão intenso, ninguém pede, ninguém espera, que eu é que sou assim, excessiva. Mas só ele sabe que é excessivo porque os outros -- como cada um só vê uma parte, a parte em que cada um intervém -- creio que nem avaliam as horas que levo a construir com eles as peças deste puzzle que é construído sem guião e que, no fim, parece perfeito. 

É um processo. Convencer uns, conduzir outros, refrear outros, entusiasmar outros. No fim dizem: 'e quando podemos começar?'. Sorriem. Estão entusiasmados, por vontade deles começavam de imediato nesta nova vida. 

Um disse: 'Só tem que me dizer o que quer que eu faça' e eu, 'não faço ideia, não me pergunte, isso tem que você a descobrir' e ele, apanhado de surpresa, a rir: 'Ai é...?! Então, está bem'. 

Ouço-me e penso: 'É impossível que não percebam que não sou boa da cabeça'. Mas, se o pensam, não o demonstram. As ideias aparecem-me não sei como e eu só desejo é que não me faltem e que vão batendo certo. Enquanto os outros vêem estudo, preparação aturada, análise exaustiva de hipóteses, eu tenho sempre aquela sensação que é tudo aleatório, espontâneo, ao calhas. E que, assim sendo, pode esgotar-se ou pode começar tudo a sair tudo trocado. É a mesma sensação de, quando era chamada ao quadro e testada com matérias difíceis e as respostas me saíam automática e imediatamente, todas certas, e toda a gente me achava o máximo, eu me sentir incrédula com o que tinha acontecido pois não fazia ideia de como tinha respondido aquilo e acertado sempre. Achava que poderia acontecer que um dia ali chegasse e só dissesse disparates, coisas igualmente saídas da boca para fora.

Por isso, têm sido dias de alguma adrenalina e, por vezes, quase exaustão. Não de poesia. Estou na mesinha encostada à janela, de frente para as flores, mas nem tenho tempo de olhar para elas.

Ao fim do dia, noite já, fomos comprar sacos-cama. Agora já podem dormir cá, à vontade, sem que isso implique vários pares de lençóis para lavar, secar, dobrar, arrumar. Não é solução que me fosse simpática. O meu filho dizia sempre: nós levamos sacos-cama. Nunca achei isso uma boa ideia. Achava que, a dormirem em nossa casa, deveria ser em camas a preceito, lençóis lavados, edredons e mantinhas quentinhas. Mas, de facto, não é prático, por uma noite, haver tanto lençol para lavar. Rendi-me. A seguir, para me dar tréguas, fomos comprar um frango assado, na grelha de carvão. E, claro está, nada disto tem pingo de poesia. Prosa, prosa, prosa.

Agora, já bem tarde, circulei pelos jornais. Nada despertou o meu interesse. Penso que há já alguns dias que não pego num livro. Hoje também não apanhei nenhuma laranja da árvore para comer logo ali. O que valeu a pena foi o episódio do Master Chef Australia, Que arte, que técnica, que perícia. E isso, sim, talvez tenha alguma poesia. 

E estou a ser injusta: alguns posts que li também têm alguma poesia. Anjos, abrigo, efeitos colaterais. São pequenos apontamentos que trazem um pouco de luz a quem lhes passa por perto e isso, para mim, é oxigénio, é espaço largo, é doce toada.

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Angélica Argüelles Kubli, Min Jeong-gi, Jason Pawley, Olaf Hajek pintaram as paredes

 ao som de Never Goodbye, Max Richter

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E, porque preciso mesmo de terminar o dia com poesia, com vossa licença,

The Tyger – William Blake (lido por Tom O'Bedlam)


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Uma quarta-feira feliz

terça-feira, dezembro 29, 2020

Rubro

 




Durante anos, quando pensava numa cor era apenas no encarnado que pensava. Encarnado rubro carmim vermelho carne sangue fogo alma loucura flama paixão.

Com o tempo fui tentando conter-me.

No entanto, se me vejo perante uma tela em branco é para as tintas incandescentes que a minha mão espontaneamente se dirige. Posso tentar moderar-me. Mas não consigo. É a fogosa exaltação que se derrama sobre a tela. Sou feita de extremos e o extremo para que sempre me inclino é o da paixão. 


Mas tento a contenção. Abro a mente e o coração aos mil aromas de verde: o verde musgo, o verde oliveira, o verde pinheiro, o verde cedro, o vedro eucalipto, o verde bosque, o verde fundo do mar. Deixo-me envolver pelos verdes e sinto que estou em casa. Mas a vibração de uma alma tingida de paixão continua presente. Tento também a claridade do azul céu, a profundidade do azul veludo, a insolência do azul klein, a inocência do azul alfazema. Gosto do azul. Mas há no azul uma elegância conservadora ou uma pureza, não sei bem, que não me acolhe. E há o branco. Os mil tons de branco. A luz. A ilusão da luz. Não me identifico totalmente. Prefiro os reflexos, as sombras; a luz, sim, mas quando matizada de pecado, de dúvida, de excesso. Claro que poderia ser o preto, o negro, o breu, o infinito, o eterno labirinto. Mas há no negrume a maldição das trevas e eu não gosto de antecipar o funesto destino de tudo o que um dia viu a luz. O amarelo, sim, claro, poderia ser. É alegre, festivo, irradia mel e ouro, sol sobre a pele, calor, afago, doçura. Gosto do amarelo. Mas o amarelo é superficial, fica na pele, não desce onde a carne se verga ao sobressalto da paixão.

Encarnado, sim, não há como fugir-lhe. Encarnado rubro carmim escarlate fogo vermelho chama. Chamamento.


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Pinturas de  Zhu Wei, Hyung Ju Park, Igor Tishin e Ligyung na companhia de The Paper Kites em For All You Give 

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Desejo-vos um bom dia

segunda-feira, dezembro 28, 2020

2020, o ano que marca a viragem da nova era AC para a futura nova era DC

 


De vez em quando sou tomada por uma onda de optimismo. Nessas alturas esqueço-me da gente que só atrapalha e que, estranhamente, existe aos molhos. Parece que quando se vê um caminho desenhado para se poder andar por ele de forma feliz logo aparece um bando de gente disposta a lançar poeira, a atirar areia para tudo o que é engrenagem, a poluir, a fazer com que a oportunidade se esvaia. Racionalmente sei que é pouco inteligente ser optimista pois sei bem que, por cada optimista que apareça, logo aparecem cem pessimistas a atravancar o caminho e mil cépticos a fazer perder a vontade de avançar e dez mil burros que, não sabendo a quantas andam, perturbam ainda mais que todos os outros.

De vez em quando o meu optimismo leva-me a ver caminho aberto onde os outros vêem escolhos, tempestades, má sorte à espreita. Mas, ainda assim, o meu optimismo não soçobra. Penso que são os outros que não querem ir à procura do caminho aberto. Perante um caminho que vai dar a uma parede cega, dir-se-ia que qualquer um perceberia que o melhor seria escolher outro caminho onde haja continuidade ou paredes com portas. No entanto, há quem, perante uma parede cega, se entretenha a discutir a parede, a discutir com a parede ou a tecer loas sobre a parede, invocando todas as histórias que, desde os clássicos, incluíram uma parede. E há quem vá de encontro a ela, caia, e volte atrás para, de seguida, reinicie o mesmo percurso e vá, de novo, lá bater com a cabeça e isso vezes consecutivas, sempre acusando a parede ou a má sorte de a parede lá estar. E há quem, pura e simplesmente, baixe os braços e fique parado a carpir por ter uma parede cega no seu caminho. Por isso, reconheço que as razões para o meu optimismo são diminutas e, se o sinto, talvez seja porque sou uma pessoa de fé (e sou) ou porque não tenho os cinco alqueires bem medidos (e não digo que os tenha) ou porque tenho a mente toldada pela imaginação (e também não juro a pés juntos que não).

Mas, seja como for, é isso: de vez em quando sinto uma onda de optimismo a invadir-me. Por exemplo, acho que a clivagem deste ano pode iniciar uma nova era. A minha filha há bocado dizia que 2020 é o ano que estabelece um novo AC/DC, antes do covid, depois do covid. Achei a ideia fantástica e tanto mais quanto estava, justamente, numa de achar que esta bofetada sem luva branca que o corona dos totós deu à besta humana poderia muito bem ser o abanão que era preciso para que a besta humana atinasse.

Olho para o 2020, ano tão cruel, e consigo ver nele as sementes de um mundo melhor. Por exemplo:

  • consigo ver um maior respeito pelo planeta e pelo equilíbrio geral entre os seus elementos, 
  • consigo ver um apelo mais forte por uma vida mais simples, mais saudável, mais ligada à natureza e ao que verdadeiramente importa, 
  • consigo ver um maior respeito pela investigação e pela ciência, 
  • um maior respeito pelas profissões menos qualificadas e que, afinal, são tão essenciais à sobrevivência de todos, 
  • consigo ver um maior respeito pelos serviços nacionais de saúde que assentam na generosidade dos que mais podem para assistir os que menos podem, 
  • consigo ver o princípio da queda do populismo mais básico que provou levar a situações tão desastrosas, 
  • consigo ver que, se quisermos e conseguirmos, por uma vez, pôr de lado a mesquinhez e sermos inteligentes, poderemos iniciar uma nova era em que a esperança terá razões para se manter viva.

Li no Guardian um artigo interessante que vai precisamente neste mesmo sentido Reasons to be hopeful in 2021. E enuncia algumas:

  • A vaccine for HIV: ‘This is an incredibly exciting result’
  • Bristol: the people behind Britain’s greenest big city
  • Vodka made out of thin air: toasting the planet’s good health
  • Cleaning up the ocean: ‘Things that seem insoluble can be solved’
  • Saved from extinction: the rare species back from the brink
  • Regenerative farming: a return to nature-friendly agriculture
  • Bringing sight to the blind: developing a new artificial eye
  • Celebrity philanthropy: when the great are also really good
  • Anti-ageing: the worms that may help us live longer, healthier lives

E cada um que se sinta optimista e que goste de assim se sentir será capaz de enunciar uma mão cheia de razões que o justifiquem. Razões pessoais, razões gerais. 

Podemos ter razões para preocupação pessoal, podemos sentir tristeza porque os nossos sonhos se têm revelado uma ficção e uma frustração, podemos sentir desgosto porque nos sentimos desrespeitados ou injustamente tratados por aqueles por quem sentíamos genuíno afecto, podemos sentir medo perante a imponderabilidade do futuro, podemos sentir falta de muita coisa e até de meios para sobreviver condignamente, podemos sentir profundas saudades de quem está ausente, podemos ter mil razões para duvidar que melhores dias virão. Podemos, claro que podemos. Todos nós temos razões para nos sentirmos reticentes, mesmo descrentes.

Mas, no meio de tudo isso, podemos também acreditar que há milagres, podemos pensar que, no meio de um céu cinzento e pesado, aparece por vezes uma mancha de luz e que, da mancha de luz, nasce um arco-íris transportando todas as cores do universo. E, quando menos se esperar, chegarão as palavras daqueles que amamos, chegará a notícia que desejávamos, chegará o abraço pelo qual esperávamos, concretizar-se-á o sonho que teimava em manter-se vivo, chegará o inesperado e tão almejado reinício. Acredito nisso. E, se todos acreditarmos também, as coisas acontecerão. 

Claro que isto, aos ouvidos dos incréus, pode ser apenas música celestial. Não digo que não seja. Digo é que, mesmo os descrentes, no mais fundo de si, gostariam de ser tocados pela graça de uma boa surpresa mas terão que perceber que, para que ela aconteça, terão que ter a humildade de dar passos nesse sentido e terão que estar disponíveis para, depois, a receber. 


A vida na nova era DC pode ser uma vida bem melhor. Acredito mesmo nisso.

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As fotografias são da autoria de Jan von Holleben

Fiz-me acompanhar, enquanto escrevia e escolhia as fotografias, pelos The Paper Kites que, aqui, interpretam By my side, tema que, se calhar, não tem muito a ver com o que escrevi mas que me soa muito bem.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira. 
Dias felizes.

domingo, dezembro 27, 2020

Tino de Rans e Marcelo e os que acham que é um debate que faz muita falta.
Passos Coelho e os que acham que ele faz cá muita falta.
Gente que, numa era de vacinas-vacinas-vacinas, me fazem dizer como o outro:
contra a estupidez e a burrice, tomo até injeção na testa
.

 

Sobre o estado da política em Portugal pouco tenho a dizer a não ser que me faz alguma espécie que qualquer um possa candidatar-se a Presidente da República. Quem imaginou a democracia (gente dada a dramas e tragédias, teatros, filosofias e exercício de dotes de oratória e, portanto, com certeza com pouco sentido prático), não sonhou que, com o tempo, a coisa se fosse avacalhando (pardon my french). E é por todo o lado. Em vez de se apresentarem a votos os melhores de entre os melhores, não senhor, tudo o que é cão, gato, pato, sapo ou porco pode pôr-se em bicos de pés e dizer que quer ser Presidente da República. E, em vez de haver uns testes psicotécnicos ou, até, umas vulgares provas de aferição ao nível para aí do 9º ano de escolaridade para que grande parte se ficasse logo por aí, não senhor, vai tudo adiante. E não falo especificamente de Portugal, falo em geral. Veja-se o Trump, veja-se o Bolsonaro. E tal a brincadeira, sancionada pela letra da lei, que depois temos que gramar com eles armados em candidatos a sério. Por cá, entrámos já no período das entrevistas (não vi uma única) e daqui a nada vamos para os debates (não sei se verei algum, duvido). Parece que algumas televisões não querem Vitorino Silva, aka Tino de Rans, nos debates e já por aí há quem se insurja, como se houvesse pitada de ponta de hipótese do simpático Tino ser levado a sério como presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa com Tino de Rans. Dir-se-ia que é daquelas brincadeiras que seria desmascarada como a anedota que é. Mas, não senhor, capaz de haver debates destes em algumas televisões e quem já se prepare para armar um pé de vento se não houver carnaval em todos os canais. E haveremos de ter o putativo coveiro, o Ventura, também a usar o palco que a democracia que lhe dá, para tentar minar os seus alicerces. E a malta aceita estas coisas sem reflectir no disparate que é tudo isto. Pior, há malta -- certamente com algumas questões que Freud explicaria (e talvez nos explicasse que é malta ainda na fase anal) -- que não apenas gosta de assistir, e quanto mais desconforme melhor, e que até vibra com os entrevistadores a quererem sangue e tanto palco como os entrevistados como, na hora de escolher, até vai e vota é nos mais impreparados, nos mais coveiros, nos mais anti-democratas. 

E, se a campanha é para ser assim, na base de obter share, mais valia entremear os debates supostamente a sério com outros a fingir só para aumentar o frisson (e, já agora era bom ir fazendo sondagens a ver se a malta estava com atenção): por exemplo, depois do Tino com o Marcelo, um da Marisa com o Emplastro, depois um da Ana Gomes com o Manuel João Vieira, outro do Tino com a Teresa Guilherme, um do Ventura com o não-sei-quantos da coisa liberal, outro do Manuel João Vieira com o Emplastro. Na volta, a malta papava tudo como candidato de lei e ainda dava a vitória ao Emplastro. Sorte macaca.

Faz-me ainda alguma espécie que, depois dos anos de láparo-burrices de alto calibre a que assistimos -- com o país a ser vendido ao desbarato, a ser deliberadamente empobrecido e os portugueses tratados como se fossem asnos, querendo a criatura ser o bom aluno mas não passando de um daqueles marrões broncos que estão sempre dedo no ar, trabalhando que se esfalfam sem fazerem a mínima do que aqui se fala -- ainda haja gente que deseje o seu regresso. Parece que há um clamor que vem do vespeiro, do ninho de baratas, da tumba de onde até a múmia cavaquítica se levantou, parece que chamam pelo láparo. Dirão os mais distraídos: não se pode generalizar, nada de confusões, quem o quer de volta são as laranjas podres, só essas. Pois não sei. O que digo é que, podres ou não, devem ser outras laranjas que tais, outras sobre quem Freud também deveria ter algo a dizer, quiçá que se trata de malta FAS, ou seja, também ainda na fase anal, forever anal stage. Só falta mesmo a Albuquerque dos Swaps, o Vai-Estudar-ó-Relvas, o Gaspar-primo-do-Louçã e outros artistas que tais (e que o We Have Kaos in the Garden, de quem sinto tanta falta, sempre tão bem ilustrou) também saírem à cena a dizerem que querem o láparo de volta para nos presentear com mais proezas como as que fizeram nos desépicos tempos em que enterraram o país sem dó nem piedade.

Tirando a política, penso que também não há muito a dizer a não ser que a palavra de ordem do ano da graça de 2021 já começou a invadir o 2020: "vacina", essa pomada a que muita malta gosta de chamar väcina, com um a tão aberto que a palavra quase vira esdrúxula. Quem toma, quem tomou, onde tomou (e, por falar em anal, ao ler este 'onde tomou', nada de relacionar com aquela erudita expressão usada pelo saudoso Viegas, na altura Secretário de Estado justamente da Cultura), quando posso eu tomar, quem tomou ficou com brotoeja? ou, como diz o bolsoburro, 'virou jacaré'? e o Marcelo tirou tudo ou só a camisa?

Vacina, vacina, vacina, vacina -- vai ser a nossa triste sina. 

Li no outro dia um artigo que tinha um título que acho que deveria ser emoldurado: Contra a estupidez e a burrice, tomo até injeção na testa. Assim eu. Tanto cientista junto, remando no mesmo sentido e com a cenoura de lucros faraónicos na mente das farmacêuticas, conseguiram arranjar vacina contra o corona. Mas contra a burrice e a estupidez está quieto. Essa eu até referendava para tornar o acto obrigatório. E não era só por cá, era por todo o mundo. Onde houvesse um exemplar da besta humana, toma, já levaste, uma injecção bem no meio da testa.

E é isto. Nada de jeito a acontecer. Uma seca. 

O que me vale é que, nisto de Natal ser quando a gente quer, hoje fomos com a família caminhar ao longo do mar e depois viemos cá para casa e demos cabo do que tinha sobrado da véspera. Tive que fazer mais umas massas recheadas, o meu marido fritou umas alheiras de caça e mexeu uns ovos. De resto, com o que havia de batatas no forno, outras massas recheadas, salmão selvagem, entrecosto, salada de tomate, carnes frias, queijos, tostas e etc, a coisa fez-se. Doces era o que não faltava pelo que foi outro brunch natalício, esse clássico, à maneira -- com a vantagem de que foi ao ar livre. Estava sol e, com a mesa grande toda aberta e uma outra mais pequena, assegurámos o distanciamento.

E brincaram que foi uma alegria. Da parte que me toca, o que posso dizer é que gosto do arco e flecha e não sou totalmente desprovida de pontaria. Numa das vezes, para que saibam, até saiu uma potente flechada directinha à mouche. Ao passar as fotografias para o computador, vi também vídeos feitos ontem e antes de ontem, uns feitos por mim, outros pelos meninos. Até estou a chorar de tanto rir. Gandas malucos. Contudo, para parecer que é tudo gente muito compenetrada, a começar por mim, escolho a fotografia de uma das novas yellow roses, fenómeno que me traz encantada (e intrigada).

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E, vá, como ainda estamos no período natalício, encerro o expediente com um medley de músicas de Natal, apenas protestando pelo facto de os músicos estarem a usar boxers -- para um melhor desempenho, todos os instrumentos se querem a descoberto, sempre ouvi dizer.

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Desejo-vos um belo dia de domingo.

😇😎😇

sábado, dezembro 26, 2020

In dulci jubilo

 


Parte da família veio na véspera e jantámos juntos, nós numa mesa, eles numa outra. Bacalhau com todos, claro, e porque os meninos não apreciam bacalhau, fiz um empadão com carnes diversas que cozinhei na hora e um puré feito com batata normal, batata doce e cenoura. Estava dourado com gema de ovo por cima e todos gostaram muito. Não fiz sobremesa, claro. Mas veio uma tarte de pera deliciosa e rabanadas e eu tinha um bolo de massapão e bombons. Estão sempre bem dispostos e são carinhosos e sinto-me muito feliz. A lareira acesa, as janelas abertas. A casa iluminada, acolhedora. Um dos meninos, o que é mais zen (o mais zen às vezes mas, também, o mais aguerrido noutras) gosta muito das minhas massagens e, portanto, pediu uma. Sugeri que se sentasse num puff junto à lareira e eu num puff atrás dele, ambos de máscara. Hoje recebi uma fotografia do momento. Durante uma meia hora ele nem se mexeu, o corpo tranquilo, a mente tranquila. Enfio as mãos sob a camisola e massajo-lhe as costas, o pescoço, os ombros. Depois massajo-lhe o couro cabeludo. Fica em transe, em silêncio. O calor da lareira é um bons calorzinhos desta vida, tão acolhedor. E fomos conversando até serem horas de se abrirem os presentes. E foi uma alegria. Receberam presentes que desejavam muito, ficaram felizes. E foi tão bom estarmos assim, em família, luzinhas a piscar, madeira a crepitar.

De manhã veio a minha mãe e veio o resto da família. Refiro-me, claro, ao núcleo mais restrito. Desta vez foi assim, apenas o inner-inner circle. 

De véspera a minha mãe tinha recebido a visita do meu tio e da minha prima. Perguntei logo: e estavam de máscara? Que sim e que ela também foi logo pôr. Menos mal. Tinha-lhe andado a pedir encarecidamente que não visitasse amigas nem recebesse visitas. Nunca sei bem se vai nas minhas conversas pois, volta e meia, a posteriori, relata-me situações que nem aprofundo para não me preocupar desnecessariamente.

O meu tio ofereceu à minha mãe um quadro que pintou para lhe oferecer. 

A casa, com a maltinha toda, entra logo num outro registo. Os meninos, quando estão juntos, ficam numa alegria que é digna de ser observada. Adoram-se. Houve nova troca de presentes, a sala pejada de sacos, embrulhos, uma animação. 

Entretanto, estive toda a manhã a preparar as iguarias. Contudo, tive a vida bem facilitada pois não apenas veio comida já feita como encaminhada. Brunch. Duas quiches, uma de espinafres e cogumelos e outra de frango e alho francês, piano no forno, salmão frio, batatas no forno, umas com bacon e ovos, outras com alheira e ovos. Raviolis e tortelinis recheados uns com salmão, outros com ricota e espinafres, tiropitas de ricota, maçã e salmão. Salada de tomate cereja com mozarela. Tábua de queijos, prato de carnes frias. Paté de frango. Batatas fritas. O resto do empadão. 

De sobremesa, nada feito por mim, salame de avelã, folar de maçã, bolo de agrião, bolo de laranja coberto de chocolate, arroz doce, coscorões e sonhos. E bombons que também não fiz mas que, pelo menos, escolhi. 

A minha mãe ficou à cabeceira da mesa grande e eu e o meu marido na outra ponta da mesa, a minha filha e família numa mesa a meio caminho e o meu filho e família na mesa mais ao fundo. Lareira acesa, janelas abertas. E esta parte, confesso, foi a mais estranha de tudo. Natal é estarmos perto uns dos outros, conversarmos ao lado ou de frente, não a metros de distância uns dos outros. Não dá jeito. E fizemos assim: em cada mesa havia talheres de servir e levavam-nos para não haver muita gente a mexer nos mesmos talheres. A comida estava nas bancadas da cozinha mas íamos à vez. Por isso também houve algum desfasamento na hora de início e de fim. Espero que para o próximo Natal eu já possa ter as mesas ao pé umas das outras, todos perto uns dos outros. Nos outros anos até tínhamos que nos apertar tentando caber o mais possível à volta da mesma mesa. Era uma barafunda de conversas cruzadas e animação. Agora também foi mas o facto das mesas estarem afastadas umas das outras esbateu um bocado aquela sensação de proximidade que é uma das coisas boas que o Natal tem.

Felizmente estava um pouco de sol e a temperatura, embora baixa, estava suportável. E, sobretudo, felizmente que não choveu. Estivemos, pois, no jardim. Jogaram badminton, praticaram arco e flecha, jogaram à bola, andaram às lutas mas, claro daquelas lutas que são brincadeira, descarga de energia e proximidade, houve quem tentasse andar de patins, houve salto à corda.

Depois fez-se frio e voltámos para dentro. Lareira acesa, janelas abertas, sempre de máscara excepto quando se comeu e, nessa altura, longe uns dos outros. Lanchou-se. Brincaram, conversámos. 

E. quando a noite caiu, houve preparação de marmitas e cada um foi à sua. 

Fomos levar a minha mãe a casa. Vi o quadro que o meu tio lhe ofereceu e fiquei surpreendida. Muito bonito. Tem a idade da minha mãe. É o irmão mais novo do meu pai. É uma pessoa boa a quem nunca vi outra coisa que não um sorriso, mesmo quando é um sorriso triste. Estivemos a ver onde é que o quadro deveria ficar. Ficará valorizado com uma bonita moldura. Vim admirada e até comovida com o belo quadro que ali está.

Também recebi presentes de que gostei muito e, sobretudo, vivi o Natal em família, no aconchego da casa, rodeada pelas pessoas que trago sempre no meu coração e de que gosto -- e preciso -- de me sentir próxima.

Claro que, várias vezes durante estes dias, senti-me agradecida por poder concretizar aquilo de que gosto. Muitas pessoas também gostam e não podem porque têm casas pequenas demais, porque não têm rendimentos nem vontade de festejar, porque estão doentes, porque não têm família, porque estão noutro país. Sinto-me, pois, uma pessoa com sorte e agradecida por essa sorte. Sendo pessoa que gosta de ter a família por perto tenho tido a sorte de a ter.

Claro que nestes momentos, apesar da animação, de vez em quando bate, por dentro, às escondidas,  uma ponta de nostalgia. Este ano tem sido dureza. E um ano de perdas. Mas logo respiro fundo e deixo para lá. Não adianta. Portanto, agarro-me à alegria de estar perto daqueles que amo e que sinto que também me querem bem. Nada é tão bom como isso.

Caminhamos para o fim deste ano. Lembro-me da esperança que senti ao entrar em 2020. Parecia-me um ano tão promissor. Vinte vinte. Pensava que um ano com um nome tão promissor, vinte vinte, tinha que ser um bom ano. Afinal, veja-se. Ano mais triste não deve ter havido muitos. E sei que, quem saiba de história, pensará que, sim, claro que houve muitos mais: tremores de terra que destruíram cidades, guerras, mortandades, devastações, pragas e pestes. Bem sei. Mas reporto-me aos tempos presentes, o mundo inteiro, um mundo em grande parte desenvolvido e rico, a sofrer o mesmo mal: uma ceifa geral, uma súbita mudança de hábitos, o medo do invisível. Neste preciso momento, em menos de um ano, identificado como óbito por covid, a estatística já vai em 1 736 752. Uma coisa impensável. Uma doença surgida do nada. Não fui, pois, a única pessoa a sofrer a perda de um familiar pelo que também acho que não devo falar nisso. No outro dia, um conhecido perdeu a mãe depois de dois meses antes ter perdido o pai. Há sempre quem esteja pior que nós, quem esteja verdadeiramente mal, amputado de familiares ou entes queridos cuja perda era imprevisível e se tornou insuportavelmente dolorosa, quem deva ser respeitado pela indescritível dimensão da sua dor.

Mas não são essas as únicas perdas. E os que sofrem maus tratos ou desrespeitos, tanto mais dolorosos se forem às mãos daqueles que se julgava serem pessoas de bem? Que tristeza se deve sentir. E as saudades e o desânimo? Quantas saudades se deve sentir quando se perde a esperança em dias melhores?

Penso nos que sofrem. Escrevo a pensar nas pessoas que não sentem vontade de festejar, que tiveram perdas irreparáveis, que não têm a que se agarrar para poderem atenuar a tristeza que sentem. E é para essas pessoas que vai, de novo, o meu abraço.


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Desejo-vos um sábado feliz

quinta-feira, dezembro 24, 2020

E, apesar de tudo, que tenhamos um bom Natal...

 

Aqui em casa já cheira a Natal. Temos enfeites e iluminações, árvore da Natal, pai Natal, coroa de Natal no portão, tenho comida no forno, já tomei o banho que sempre gosto de tomar antes de me vestir para o jantar (e vim aqui num instante enquanto penso no que hei-de vestir) e o meu marido está a ocupar-se da lareira.

Hoje, covid oblige, seremos apenas cinco. Amanhã, uma vez que não está de chuva e podemos andar fora e dentro e ter janelas abertas, ultrapassaremos ao de leve o dobro da lotação. Esperemos que tudo corra bem.

E convosco espero que também tudo corra pelo melhor. Saúde, cautela, harmonia, afecto -- e o resto virá por acréscimo. 

Daqui vos envio mais um abraço. 

E agora, ainda antes de ir arranjar-me a preceito ainda vou pôr o bacalhau ao lume.


Be happy.

A arte de usar uma máscara (e não só)

 



Muita coisa, mil pormenores, mil aspectos a ter em atenção, volta e meia alguma coisa a sair do trilho, e eu, que gosto de acautelar cada pormenor e preparar previamente para que dê certo, a ficar levemente incomodada e, com mil cuidados e tentando toda a diplomacia, esforçando-me para ir levando a coisa ao sítio -- e quando o que se espera é que quem não tem que fazer nada se mantenha quieto para não causar entropia, aparece sempre quem esteja nos interstícios a minar, a chatear. E, portanto, no meio de mil coisas certinhas e programadas, recebo chamadas e mais chamadas de gente inquieta porque alguém lhes disse isto ou aquilo e são sempre coisas desestabilizadoras. E, de manhã à noite, entre reuniões consecutivas, recebo sms e chamadas ou a alertar-me para isto, aquilo ou o outro ou a pedir se posso esclarecer alguma situação que os traz preocupados e, sempre, sempre, sempre, tem a ver com boatos, intrigas, trapalhadas que algum ressabiado ou desocupado anda a lançar.


Não há muito eu tinha pensado que por estes dias estaria de férias. Impossível. Com compras para fazer, decorações de natal para montar e telefonemas pessoais para fazer e estou nisto, a tentar levar o barco a bom porto e a tentar que os macaquinhos parem sossegados.

Em dias assim, toda eu, da cabeça ao corpo, me peço descanso, tempo para mim, para as minhas coisas, mentalmente quase imploro a todos os santinhos que ninguém pegue no meu pé, me puxe pela mão, me chame, me mace, me serrazine. E, no fim, isto. 

Salta, macaquinho.

Era nove e tal da noite, tinha o jantar ao lume, estava a falar com a minha mãe e só me apetecia chegar ao quarto, tirar os brincos, tirar o soutien. Disse isso à minha mãe. Ela disse que, quando era mais velha, a minha avó deixou-se de soutien, dizia que o soutien lhe fazia mal ao coração e que ela própria, agora, também já só usa soutien quando tem mais que ser, que parece que também lhe causa aperto no peito e que, inclusivamente, já tinha pensado, olha agora esta, querem lá ver que isto de não usar soutien é coisa de velha...? E eu a ouvir e a pensar: caraças, será? Dantes chegava a casa e tirava sapatos, sempre bem altos, depois tirava brincos, colares, soutien. O alívio que sentia fazia-me logo sentir mais descansada. Depois lavava-me, desmaquilhava-me, penteava-me e apanhava o cabelo, vestia uma roupa confortável. Agora não tenho sapatos altos para tirar mas só quando tiro o soutien sinto que entro no meu próprio tempo.


Agora, enquanto escrevo, ouço o médico Roberto Roncon, médico intensivista, falar dos doentes que acompanha, doentes covid que têm a circulação sanguínea feita fora do corpo. O que ele diz é extraordinário. O mundo vergou aos pés do corona. Claro que também fiquei a achar que ele fica melhor de máscara. Costumo vê-lo no hospital, cara tapada e agora está à civil. Raio de mundo este em que a gente até já gosta mais de ver uma pessoa de máscara, pessoa essa que há meses anda a falar-nos dos vivos meio-mortos a quem a covid retira o sangue das veias e o põe a circular fora do dono. Tudo estranho. 


Agora está a Professora Carmo Machado que o melhor que teve para levar vestido a um programa na televisão foi uma camisa que não fecha no peito e que, por isso, está aberta até abaixo das mamas. Claro que não as tem à vista pois tem um top por baixo. Mas a camisa é para ela antes de estar do tamanho e largura que está. Penso que uma pessoa que opta por esta vestimenta para se apresentar na televisão diz muito de si própria. Nem para ir passear o cão à rua faria sentido ir naqueles propósitos. Mas, na verdade, o que é que isso interessa? O tema é grave e eu prendo-me a ninharias. Mas a que poderia prender-me quando acabo de ouvir a professora a dizer com sorrisinho lerdo que aposta na palavra zaragatoa para palavra do ano? Se aqui estivesse o meu marido seria bem capaz de dizer: é o que eu digo, as mulheres chegam a esta idade e ficam malucas. E escuso de especificar qual o sentido de maluquice a que se referiria.


E agora está Sérgio Ferraz, primeiro doente covid entubado no São João, e está de sobretudo e cachecol e óculos escurecidos, e tudo faz pendant com uma cabeça absolutamente calva, um ganda cenário. Mas eu, vendo-o assim encasacado, em vez de prestar atenção ao que diz ponho-me é a reparar que não sei se ele tem uma casa muito fria ou se ficou assim depois da covid. Até pode estar num estúdio e ter-se avariado o ar condicionado. E, lá está, nada disto interessa. Perdeu catorze quilos em duas semanas e isso, sim, interessa. É estranho, este mundo do caraças.

E agora o médico diz que, ao fim destes meses, ainda não sabe em que momento se deve entubar um doente. Entubar causa lesões, não entubar pode provocar morte. Se uma pessoa morre têm que analisar os seus actos médicos: deveriam ter posto o sangue a circular fora do corpo e não o fizeram? Entubaram tarde de mais?

A vida não na mão do próprio nem de um qualquer deus mas na mão de médicos humanos e que estão ainda em aprendizagem do que é esta doença. É da gente fugir disto tudo.


E vou mas é dormir porque estou para aqui a escrever por puro descaso. Se isto fosse um diário talvez eu escrevesse outras coisas, cá muito minhas. Assim, falo nem sei de quê, só mesmo por escrever.

Intercalo o texto com a arte de máscara, intervenção artística de Volker Hermes. Gosto. Quando eu saía de manhã, salto alto, tudo a condizer ou a contrastar, vestimenta e joalharia em harmonia com a disposição, lingerie obviamente a condizer, perfume a condimentar, não me ocorria que viria o dia em que esses rituais cairiam em desuso. Hoje produzi-me toda mas da cintura para cima, não usei saltos altos. Nem perfume. E, ao início da manhã, tocaram à campainha, o meu marido estava numa reunião, fui eu a correr ver quem era. Era o senhor que cá esteve a fazer uns arranjos que vinha tirar uma dúvida, ver se tinha acabado uma coisa. Fui à pressa pôr uma máscara. Nem um minuto esteve. Mal saiu, voltei à pressa para o meu poiso e, mal pousei, pensei que aquela máscara azul desmaiado não fazia pendant com a minha blusa preta sobre a qual tinha colocado um aparatoso colar encarnado, verde, turquesa e preto. Depois, pensei que, felizmente, em casa não tinha que usar máscara; senão em vez de conjugar a lingerie teria que passar a conjugar as máscaras.

Pronto, já chega. 


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E, se gosta do Bono, é para si, muito em especial, que vai esta canção de Natal

Baby, please come home


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E tenham, meus amigos, um bom Natal

Não sei se conseguirei voltar amanhã ou só depois do Natal dobrado pelo que daqui vos envio já a minha estima e, em especial para aqueles que estão sozinhos, doentes ou tristes, o meu abraço. É virtual, bem sei, mas, é o que há e, acreditem, é sentido. 

Tirando isso, não nos esqueçamos daquela velha máxima: neste Natal, muito cuidado com o 'novo normal'. (Olha, versejei).

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Dos caçadores, da caça e dos que não caçam mas apreciam comê-la. E etc.

 



Como esperava um telefonema muito cedo e teria que estar bem desperta, tendo acordado antes das cinco (hora a que o madrugador cá de casa se levantou), já não voltei a adormecer. Portanto, nem chegou a três horas o que dormi. Como todo o santo dia foi uma animação e um stress, preparativos sobre preparativos e revolução sobre revolução, agora, aqui sentada neste meu sofá tão confortável, não faço outra coisa senão adormecer. Dias muito preenchidos, estes. Se pudesse escrever sobre eles, tanta coisa teria para contar. Emoção, suspense, fúria, inquietação, vingança, medo, hesitação, euforia, desgosto: por estes dias a tudo tenho assistido. Lidar com tudo isso é, também para mim, uma emoção.

Agora ao fim do dia, ao comunicar a um, por sinal um jovem talentoso que trabalha comigo há muito pouco tempo, que ia deixar de me reportar, passando a depender de outra pessoa, estranhei o silêncio. Esperei. Nada. Pensei que a chamada tivesse caído. Confirmei: 'Está?'. Ao fim de uns instantes diz ele com a voz baixa: 'Por acaso não estou nada feliz com essa notícia...'. Pensei: 'mas será que tem alguma coisa contra o novo chefe?'. mas ele disse: 'É que gosto muito de trabalhar consigo, tenho pena, não estava nada à espera...' e voltou a calar-se. Fiquei também um pouco admirada, também sem saber o que dizer. Também eu gostei de trabalhar com ele, é um jovem que vai longe. Disse-lhe isso, disse-lhe que o vou continuar a acompanhar, que aposto muito nele. Do outro lado, silêncio. Sempre houve muita empatia entre nós mas não estava à espera de uma reacção tão sentida. Os outros a quem comuniquei o mesmo fizeram-me muitas perguntas, agradeceram-me, desejaram-me sorte nisto tudo, foram muito simpáticos, um voltou a ligar-me passado um bocado, que só então estava a cair em si. Mas em nenhum senti a verdadeira emoção que senti neste talentoso jovem que fui buscar a um outro país.

Esperam-me mais uns dias muito preenchidos mas, espero eu, sem o stress destes últimos. Sempre achei que o que mais motiva as pessoas é sentirem-se desafiadas para algo que receiam não ser capazes de atingir, algo de tão inesperado e complexo que faça os outros acharem que é uma prova de confiança muito grande atribuírem tal responsabilidade ao outro. A pessoa sente-se reconhecida, sente-se com vontade de ir à luta, de se superar, de mostrar que a aposta foi fundada. Gosto que me façam isso a mim e gosto de proporcionar isso aos outros. E isso é tão melhor quanto todos reconhecem que são tarefas necessárias, indispensáveis. Sentem que vão fazer parte de um desafio maior, nobre.

Mas, claro, por cada espaço que se abre para que alguém possa dar o seu melhor, alguém -- que antes lá estava e para quem as coisas não correram como deviam -- vai ter que sair e, onde há entusiasmo para uns, há desgosto e, tantas vezes, incompreensão pelo que lhes aconteceu, para outros. Mas nada a fazer, é assim mesmo. Como dizia o outro: é a vida.

Devo ainda dizer que, em todo o dia, apenas consegui andar um pouco quando recebi um outro telefonema, mais complicado, mais demorado. Antes da covid, iríamos para um gabinete, discutiríamos, avaliaríamos alternativas, talvez fizéssemos esquemas numa folha de papel. Agora é tudo por zoom ou teams ou, quando nos cansamos de nos vermos, falamos por telefone. Portanto, quando vi que a conversa estava para durar, levantei-me, fui buscar a máquina fotográfica e vim dar voltas ao jardim enquanto falava e, para descomprimir, fotografava. Também a meio da manhã, enquanto fazia uma outra chamada, levantei-me e estava à janela a negociar uma solução quando reparei em coisinhas que saltitavam na relva à minha frente. Passarinhos. Debicavam, saltitavam, uma vez um até estava pendurado numa haste finíssima de uma pequena flor. Máquina a postos e clic, clic, clic, várias fotografias. Fora e dentro de casa. A luz, a cor, os reflexos. Qualquer coisa serve para me descansar a mente.

Com isto, só agora vi o que se passou lá na Torre Bela, aquela brutal matança. 

Tenho vários amigos caçadores. Vão para espaço aberto, coutadas que, segundo dizem, são lugares bonitos, terras bem cuidadas em que os animais vivem em liberdade (uma liberdade perversa cujos contornos felizmente as futuras vítimas devem ignorar). Vibram com a caça esses meus amigos. Não são energúmenos. Eu, no entanto, nunca me senti atraída pela caça e a ideia de alguém matar um animal em liberdade causa-me alguma inquietação. Mas, lá está, sou como os outros que não são capazes de matar uma galinha mas são capazes de comê-la. Portanto, pio baixinho.

Um dos meus amigos caçadores fala com especial entusiasmo dos dias de caçada. E eu gosto de ouvi-lo a falar disso. Há ali o mais puro instinto predador, coisa primitiva. Nessa semana, conta ele, vive em função da emoção que sabe que vai sentir, no dia, ao sair de casa de madrugada, da emoção de, lá chegados, se esconder à espreita, escuro ainda, neblinas, frialdades, da emoção de, quando sente um leve movimento ou o ruído quase imperceptível de um roçagar nas faldas da vegetação, se colocar em posição de disparo, o braço e a arma como um único membro, da emoção de fazer pontaria, da emoção de acertar. A partir daí já nada o entusiasma. 

Um dia estava a falar dos pombos que tinha apanhado e um outro, na brincadeira, disse que ele, em vez de estar para ali com bazófias, poderia era convidar-nos para lá ir a casa almoçar. De imediato, ligou à empregada: que preparasse uma salada de pombo, com alface, maçã, pinhões. Quando lá chegámos, estava a empregada toda afobada, que uma coisa assim, sô tôr..., tão em cima da hora, não sabia se estava tudo em condições, que os pombos ainda nem arranjados estavam, que foi tudo a correr, os senhores desculpem se alguma coisa não estiver bem.  Havia um outro prato mas nem me lembro de qual. A salada, sim, estava óptima, a alface tenra, fresquinha, a carne deliciosa, no ponto. Foi um almoço animado, bem regado. A meio do almoço, chegou a mulher, meio zangada com o marido, que nem sobremesa havia, que a empregada não tinha tido tempo de preparar alguma, que tinha tido, ela, que ir ali comprar uns travesseiros e umas queijadas, que ainda vinham quentes, mas só mesmo tu, não podias ter avisado antes? Os cavalheiros à mesa levantaram-se logo, que ideia, não teria sido necessário, passávamos bem sem doces, ora essa, e que se sentasse, que pediam muitas desculpas por não termos esperado por ela. E ela que não, nem pensar, que tinha a agenda cheia, tinha que ir, já estava era super atrasada. 

(Outros tempos).

Mas do que eles sempre me contaram, os meus amigos caçadores, há limites ao número de peças. Para além disso, pagam por cada uma e, se bem me lembro, não é nada barato. Portanto, uma chacina como aquela que vi não me parece que tenha qualquer coisa a ver com o genuíno prazer de quem caça. Chacina pura, matança, crime, desrespeito, massacre. Nem sei. Ver aquelas imagens deixou-me consternada. Há pessoas vis, estranhas. Estúpidas. Nem sei o que pensar.

Quanto ao resto, o que tenho a dizer é que, nunca tendo tido coragem ou vontade de matar algum animal, muito pelo contrário, a verdade é que também não posso jurar a pés juntos que sou destituída de instinto de caçadora. Não posso mesmo. Diana. Artémis, chamava-me um poeta. 

Tirando isso, nada mais. Só se for piu-piu.

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Fotografias cá de casa ao som de Have Yourself a Merry Little Christmas pelas The Singers Unlimited num vídeo com imagens de Norman Rockwell, outro que é cá muito de meu agrado.

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E tenham um belo dia

terça-feira, dezembro 22, 2020

O vovô viralizou...
E não é que o gordinho voou...?


Como não tenho facebook, instagram, grupos de whatsapp e quejandos, não faço ideia do que está a dar. 

[Não sei se a expressão estar a dar é comum ou se é coisa de quem vive à beira de água. Vizinho, que é que tá a dar? Sargueta? Robalo? Charroco?]

Provavelmente o vídeo que vou partilhar e que já tem umas três semanas já esteve a dar numa qualquer outra maré e agora já é tido como velho e relho de tão visto. Ainda assim, corro o risco. Contudo, digo uma coisa: não sei bem qual a ideia já que parece que foi feito num outro tempo para ser publicado também num outro tempo ou num outro mundo. Não há máscaras, distanciamentos sociais. Há abraços, há colo aos netos, há ternura. Talvez por quase parecer uma ficção nostálgica lhe tenha achado tanta graça. 

Por esta altura do ano, a gente recebe telefonemas, votos. E, invariavelmente, a conversa vai parar a este natal que, com tanta restrição, quase não é natal nem é nada. Uns ficam em casa e não querem lá ninguém, outros estão isolados há tanto tempo que agora não querem deitar tudo a perder, outros dizem que, já que natal é quando um homem quer, o gozarão pela páscoa. Fala-se em natais virtuais, cada um em sua casa e todos unidos pelo ecrã do computador. Não gosto disso. Não sou digital, sou analógica, sou do afecto, de estar perto, de sentir a proximidade. E nem é por ser natal, é sempre. 

Mas, agora que estamos no natal: se a gente não pode estar todos ao molho e em fé em deus então que natal é esse? À chegada, quem vinha cumprimentava os que estavam, beijinhos e abraços, tudo na maior harmonia. Há quanto tempo foi isso? Vivíamos na maior descontração e não o sabíamos, achávamos que era normal, um dado adquirido. Não era. Quem nos haveria de dizer que um merdinhas de totós cor-de-rosa haveria de nos pôr à distância uns dos outros, impedir as demonstrações de afecto, fechar-nos em casa, pôr os aviões em terra, esvaziar hotéis, fechar lojas, fábricas, igrejas, e, pelo contrário, encher hospitais e morgues? Podia ter caído um meteorito tão grande que rachasse o pequeno ponto azul ao meio, fazendo de tudo o que o cobre uma fantástica chuva de estrelas. Mas não, não caiu nenhum pedregulho e cá andamos como se não tivéssemos a cabeça a prémio. Mas temos. Ou um meteorito ou seca extrema ou enxurradas diluvianas ou placas tectónicas em convulsão ou pragas do egipto ou do fim do mundo: se pensássemos bem saberíamos que um dia poderia acontecer. Contudo, espertos que nem alhos, preferíamos fazer de conta que éramos imortais e que não havia mal que nos chegasse. Até que, do nada (do nada ou da boca de um pangolim ou de dentro de algum laboratório -- quem sabe...?), um corona de nada se instalou e, apesar de não ter vida própria, rapidamente avançou sobre esta raça de gente que, afinal, é mais frágil que formiga. 

E brincalhão, este coiso-de-nada que nem coração, cérebro ou qualquer órgão vital tem, bricalhão... Rapidamente aprendeu as brincadeiras do bicho-homem e agora já é ele que dita as regras: joga às escondidas, joga ao mata. Quando o bicho-homem achava que a luz ao fundo do túnel já estava à vista com a vacina a andar a toque de caixa, eis que o merdinhas-mor, num golpe de mágica, se transmuta. Já vai em não sei quantos o número de sósias. Desta vez, o novo sósia é special, uma variante made in brexit lands. Mais ágil, mais fino, mais matreiro, mais invisível. Resta saber se a vacina lhe faz mossa. 

Enfim, já nem digo nada. 

Digo é que este vídeo mostra o que éramos antes de termos visto de perto os limites da nossa finitude. E digo também que, até à data em que escrevo, já vai em 12 825 139 visualizações. Viralizou.

Durante muito tempo, o natal era em casa dos meus sogros. Depois, eles foram ficando mais limitados e a casa pequena para a família que ia crescendo. Depois as tias e tios foram tendo mais dificuldade em subir e descer a imensa escadaria do seu andar de pé direito muito alto, na avenida, um andar de onde se tinha uma vista divina sobre Lisboa e sobre o rio. Então, na véspera, antes de irmos para o nosso destino natalício, íamos visitar as tias. Depois foi uma tia, depois um tio, depois a última tia. Esse ponto deixou de fazer parte do percurso. Depois o meu sogro, depois a minha sogra. Entretanto, a família desdobrando-se, novas famílias a juntarem-se. Entretanto, do meu lado, a minha avó, depois o meu avô, depois a última avó. Mais recentemente, o meu tio, aquele a quem a minha tia, chorando, aquando da sua cremação, se dirigiu, queixando-se: 'não esperaste por mim...'. E, pouco tempo depois, foi ela. Este ano, o meu pai. Um impiedoso tapete rolante. 

A minha mãe queixa-se porque lhe dói uma perna: o que havia de me acontecer. Desvalorizo, lembro-a que, com a idade que tem, estranho seria se não tivesse nada. Tem medo, diz que teme algum dia ficar dependente, a dar trabalho. Desvalorizo de novo, digo-lhe que não dramatize. Enquanto falo, penso que eu também não quero dar trabalho. No domingo, como contei, andei a carregar pesados baldes de terra, muitos quilos. Sei que carregar coisas muito pesadas não me faz bem. Mas não quero abdicar do que me dá prazer nem quero pedir que façam aquilo que gosto de ser eu a fazer. Hoje, como estive muitas horas sentada, reuniões sobre reuniões, de cada vez que me levantava, doíam-me os isquiáticos. É só o tempo de me pôr direita e começar a andar mas, nesse instante, eu percebo que é o meu ponto fraco, provavelmente o mal que me acompanhará na velhice -- se lá chegar, claro. 

Aliás, tenho para mim que a gente, se quer viver minimamente bem, o que tem é que seguir em frente, caminhar, estar ocupada, ser amada, gostar de estar vivo. Claro que há vezes em que a mulher da foice não quer saber de caminhadas, afectos e outras frescuras; mas vamos fazer de conta que são excepções senão damos em malucos. 

A seguir ao vídeo ali acima, o do vovô, o algoritmo tinha outro para me sugerir. Desta vez, num mundo de gordos, alguém quer voar e, para tal, perde peso. Não sei se isto é alguma indirecta para mim mas, lá está, faço-me despercebida e enterneço-me e sorrio com a graça da história. Não é tão viral como a do vovô mas também é bem pensado e bem visto (até agora, já vai em 5 079 600 visualizações se bem que também seja um vídeo mais idoso). Um post sobre viralizações, portanto. 


Sorrisos também para si, Leitor amigo
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Pinturas de Orazio Gentileschi
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Desejo-vos uma boa terça-feira.
Saúde. Força. 
Melhores dias virão.