Dias tranquilos, bons. Podei árvores, reguei, dispus umas suculentas num canteiros onde nada medra, apanhei nêsperas, arrumei coisas, cozinhei (inclusivamente entrecosto guisado com favas e temperado com coentros), andei a caminhar de biquini para apanhar sol, li, escrevi.
Podia abrir um parêntesis para dizer como faço o entrecosto com favas, de que gostamos bastante, mas vou antes dizer que estou a livro a que resisti mas de que estou a gozar muito. Muito. Por muitos motivos e até pelos emotivos. Mas também porque já aprendi várias palavras que desconhecia. E fico na dúvida: terá sido o Gabo, quando a mente já começava a dar sinais de que estava a ir para um caminho sem retorno, a rebuscar palavras pouco usuais ou terá sido o tradutor que resolveu caprichar? Por acaso gostava mesmo de saber. Gosto de livros assim. Vemo-nos em Agosto. Um livro belo, povoado por garças azuis.
E agora ao ir espreitar o youtube dei com o fantástico Bial a entrevistar a fantástica Susana Vieira. Só a forma como se cumprimentam já é uma graça. Mas tudo o que ela diz é uma graça. Olho para ela e não consigo acreditar que já tem 81 anos. De facto, os tempos já não são o que eram. Pensava-se numa mulher com mais de oitenta anos e imaginava-se uma velhinha. Pois, no caso dela e de cada vez mais mulheres acima dos oitenta, velhinha uma ova.
Susana Vieira fala sobre sua parceria com José Wilker e mais | Conversa com Bial | GNT
Não há muito, num daqueles exames de rotina, a médica detectou um pequeno nódulo que não aparecia referido no relatório do exame anterior embora em tempos tenha havido referência a um, que talvez fosse o mesmo e que, inclusivamente, já foi biopsiado e que tanto medo me causou. Esse tinha um nome de que agora não me lembro (seria fibroadenoma?) e, felizmente, era benigno. Não sabendo se era o mesmo e intrigada por não aparecer no exame anterior, pelo sim, pelo não, a médica pediu para repetir o exame quatro meses depois. Foi hoje. Se por um lado tenho para mim que estou bem pois sinto-me bem, por outro sei que há coisas silenciosas que fazem o seu percurso ao longo de anos sem que quem as tem se aperceba do que quer que seja. E, se tendo a ser despreocupada, a verdade é que, na meia hora que precede o exame, um nervoso miudinho se apodera de mim de uma forma um bocado intensa. Para começar, ao ir para lá, ia tão distraída a ouvir música mas ao mesmo tempo já a ficar tão enervada que só dei por que tinha passado o cruzamento onde deveria ter virado quando já ia para aí um ou dois quilómetros à frente. Azar. Impossível virar. Tive que continuar por mais uns dois quilómetros até conseguir inverter o sentido.
Quando cheguei, mal acabei de me inscrever fui logo à casa de banho. Tinha ido antes de almoço, menos de uma hora antes, mas sentia a bexiga a ponto de rebentar.
Passado um bocado, chamaram o meu número.
A funcionária mandou-me entrar para um cubículo e disse que me despisse da cintura para cima, vestisse a bata e me deixasse ficar sentada com a porta aberta. Assim fiz. Pensei que aquela de ficar sentada de porta aberta fazia sentido para ter ar para respirar e para ouvir quando me chamassem. Vesti a bata com a abertura para a frente e não a abotoei, apenas a tracei, prendendo-a com os braços cruzados debaixo do peito. Disse-me ainda que, quando me chamasse, eu levasse a carteira comigo.
Entretanto, senti que estava outra vez aflita para ir à casa de banho. Pensei que não podia ir pois a casa de banho fica na zona aberta ao público e, naquele estado, meio despida, não era muito conveniente circular. Pensei que era psicológico, que a bexiga não podia ter-se enchido em meia dúzia de minutos. Mas cada vez estava mais aflita. Pensei que se não me chamassem rapidamente teria mesmo que ir.
Pelo meio, cada vez mais cheia de medo, pensava que tomara que estivesse tudo bem. E, às escondidas de mim, pedi protecção. Mas senti-me uma pedinchona incoerente e sem vergonha na cara. E, lembrando-me de uma coisa que tinha lido na véspera num livro, numa livraria, deu-me vontade de rir.
É que, na segunda-feira, fiz uma daquelas minhas incursões por uma livraria mas, como sempre, tomada por firme decisão de não comprar qualquer livro. Ia-os catrapiscando e pensando: vou ser lógica, vou ceder à ortodoxia dos bem-comportados, não vou ser uma pessoa assim, bla-bla-bla. Às tantas, folheei um e li uma coisa que era qualquer coisa como isto: um homem dizia que, quando estava em apuros e aflições, tirava uma imagem que tinha na carteira e pedia-lhe protecção. E exemplificava, mostrando ao outro a imagem. O outro exclamava: 'Mas é a Greta Garbo!'. O homem confirmava e dizia que era importante ter qualquer coisa em que acreditar. E eu achei a ideia deliciosa. E fiquei cheia de vontade de trazer o livro nem que fosse para reler a cena e para ver se havia mais coisas assim. Mas resisti. Há dias em que consigo portar-me bem. E agora não tenho como validar se foi isto mesmo que li ou se o que contei foi uma construção da minha cabeça a partir de um relance em diagonal num livro aberto ao acaso.
Mas, então, estava a lembrar-me disto e quase a rir, já mais aliviada da bexiga e do medo. Às tantas, a funcionária chamou 'Bárbara'. Fiquei admirada, pensei que ela tivesse trocado a ficha. Então, para meu espanto, vejo que do cubículo ao lado -- no qual eu não sabia que estava uma pessoa pois quando para lá me dirigi estava fechado -- sai um mulherão. Teria à volta de trinta, era morena, alta, formas generosas. Ao contrário de mim que ia fazer apenas uma ecografia mamária, ela devia ir fazer também a pélvica pois estava nua. Contudo, curiosamente, manteve os saltos altos, muito altos, e a bata aberta atrás, presa por um cintinho, mas deixando-lhe à mostra as costas e, ao andar, as pernas. Uma imagem muito sexy. E ia com a carteira ao ombro o que tornava o conjunto ainda mais insólito. Avançou resoluta, aparentemente sem sombra de medo.
Quando faço os dois exames e também tenho que me pôr nua, vou praticamente descalça para o gabinete da médica, só com umas sapatinhas descartáveis. Pois ela ia gloriosa, em cima dos seus saltos altos.
Fiquei a pensar que, antes de se levantar, ela devia estar sentada, tal como eu, de porta aberta, tal como eu. Quem estivesse de frente, teria visto aquela beldade toda nua e de saltos altos, apenas vagamente coberta por uma bata fina e descartável, provavelmente a olhar para o telemóvel, e eu, de calças e igualmente de saltos altos, também com a bata, mas certamente com ar amedrontado, a tentar não pensar que não aguentava sem ir à casa de banho e que tomara que o exame não desse nada de mal.
Passado um bocado, saíu do gabinete da médica, bárbara e gloriosa, enfiou-se no cubículo, ouvi fechar a porta, e antes que me chamassem, saíu, saia justa, pelo joelho, um casaco justo a três quartos, a carteira ao ombro; deitou a bata no recipiente e lá foi, óculos escuros na mão.
Passado um bocado, ouvi o meu nome. Lá fui. Assustada e a sentir-me quase muda. A funcionária disse-me para despir a bata e deitar-me de barriga para cima. Escusava de dizer, sei como é. Braços para cima. Desprotegida. A médica encheu-me o peito de gel e começou a tortura, passando o dispositivo, que parece um rato, por toda a superfície dos seios. Faz força, incomoda. Com os braços para cima, não ficamos apenas expostas, ficamos à mercê. Provavelmente por estar em tensão, tudo aquilo me dói. E depois há o medo. Ver a médica a parar, a fixar a imagem no ecrã, a medir o tamanho do que encontra. Mas ela concluíu que estava tudo bem. Ainda lá estava o nódulo mas igual ao que estava há poucos meses e igual ao que estava anos antes. Explicou que pode acontecer não ser detectado em alguns exames por estar escondido atrás de alguma gordurinha. Foi ela que disse: nas maminhas há gordurinhas que, por vezes, não deixam ver bem. Quando ela me disse isso, descontraí. Deixou de me doer e deixei de estar aflita para ir à casa de banho. Respirei fundo, consegui falar.
Quando saí, ia na maior felicidade. Sentia-me agradecida e ocorreu-me que talvez devesse ter na carteira uma fotografia de alguém a quem agradecer numa situação destas. Não uma santa mas um santinho. Pensei que talvez o Jeremy Irons, e que bom, bom mesmo, seria ter um cd com a voz dele e, então, punha-o a tocar e era como se tivesse o santo em pessoa ali a dizer-me poesia. Depois detive-me, senti-me incorrecta por ter pensamentos tão hereges quando deveria era sentir-me recatadamente agradecida.
De tarde trabalhei sentindo a alma leve como uma pluma.
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Como post scriptum posso ainda contar que, como no sábado e no domingo estive doente e dormi que me fartei, na noite de domingo, sentindo-me já fresca, estava sem pitada de sono. Então, levantei-me e mudei-me para a sala. Estendi-me no sofá, tapei-me com uma manta quentinha e pus-me a ler Gabriel Garcia Márquez: o livro de contos onde se inclui a história da cândida Eréndira e da sua avó desalmada. E o que me deliciei. A sala às escuras excepto o que se via sob aquele pequeno foco de luz. E o que se via era uma delirante delícia.
Tinha chovido tanto que o quintal estava alagado e havia caranguejos por todo o lado. E com o rio transbordante e com a intempérie não só tinham aparecido caranguejos aos montes como tinha aparecido um anjo de cabelo ralo, desdentado e velho. E o casal tinha posto o anjo velho numa gaiola e veio gente de todo o lado para ver o anjo; e o casal ficou rico. E, pelo meio, iam os dois para o quarto e era de todas as maneiras, aos coelhinhos, às formiguinhas e a outros bichinhos. Às vezes enganavam-se e faziam de outras maneiras e não naquela em que iam a pensar. Depois um dia, muito tempo depois, as penas, que tinham caído, voltaram a nascer nas grandes asas e o anjo, a custo, levantou voo e lá foi. Ou, então, a história da jovem Erêndira que era uma escrava às mãos da avó, uma velha gorda, a quem a neta tinha que dar banho, vestir, fazer a lida da casa. Um dia, morta de cansaço, a menina pousou o castiçal e adormeceu. As velas pegaram fogo aos cortinados e casa ardeu mas a avó foi boazinha, disse que não fazia mal, que a neta pagaria o prejuízo. E passou a vender os serviços sexuais da jovem de catorze anos. Dezenas de vezes por dia. A menina exausta. Até que um dia apareceu Ulisses e a menina e ele fizeram amor, de gosto, ao longo de toda a noite. Não contei que o pai da menina se chamava Amadis e o avô também e que já tinham morrido, estavam enterrados no quintal. E que, depois da casa ter ardido, a avó andava com a caixa dos ossos dos Amadises por todo o lado onde fossem.
Pelo meio a prosa ia andando com pormenores que me traziam a felicidade, tanta a inteligência, o humor e a elegância das palavras. E eu estava a ver que não me dava o sono, tão gostosa estava a leitura. Até senti que, a qualquer momento, poderia sentir um lobo a espreitar-me, na distância, na insolência. Mas não, acabei por cair no sono.
Hoje de manhã, o meu tio mal me via, estava a regar o jardim. Está mais encurvado e reparo nas rugas; mas o sorriso é sempre o mesmo. Fica contente por me ver, pousa a mangueira e vem logo ter comigo, sorridente. Sempre foi uma pessoa serena. Nunca se ouviu que levantasse a voz, nunca se soube que se tivesse zangado. Muito diferente do irmão, sempre apressado e stressado, este meu tio é a calma em pessoa. O meu pai sai à mãe que sempre conheci em estado de alerta, sempre ansiosa com alguma coisa. O irmão sai ao pai, o meu avô tranquilo. Tenho cá o cadeirão onde o meu avô se sentava a ouvir rádio ou a ouvir televisão ou a ler o jornal. E tenho o pequeno móvel onde estava o rádio que também ali tenho. A minha avó sempre com coisas, que ele não limpava bem os pés à entrada e trazia terra para dentro de casa ou que ia à pesca quando estava mau tempo ou coisas assim e ele sempre sorridente, como se nenhuma daquelas reprimendas o afectasse. Recostava-se no seu cadeirão e ela que reclamasse à vontade.
Perguntei ao meu tio pela minha tia. Esmoreceu-se-lhe o sorriso, que não está nada bem, as dores nas pernas, a pouca vontade de se levantar, parte do dia na cama. Nada lhe disse, encolhi apenas os ombros: sempre assim foi, pouco dada à acção, sempre com receio de estar doente.
Lembrando-me dela, digo muitas vezes que ter medo de estar doente é, em si, uma doença. Foi disso que, desde que me conheço, ela sempre sofreu. E sofreu mesmo, como se estivesse doente de verdade.
A minha prima habituou-se aos sintomas de tudo que a mãe tem. Sendo médica, sabe bem o que valorizar e aquilo de que mais vale é distrair a atenção. Perguntei por ela, pela minha prima. O meu tio sorriu de novo, diz que está para a Dinamarca, a passeio. Faz ela bem. Penso que quem me dera.
E depois penso no meu pai, cada vez mais ausente, preso à cama, tendo que ser virado de tanto em tanto tempo para não ficar com escaras, alimentado através de uma sonda, já sem conseguir falar de forma que se perceba, pouco ouvindo, nada vendo. Por isso, faz-me muita impressão ir para longe por muitos dias. E tanto que sempre gostei de passear, e tanta a falta que me faz ir por aí, à descoberta. É certo que dele, não fora o AVC, se poderia dizer que tem uma saúde de ferro. Não sei quantas pneumonias já teve, quantas bactérias hospitalares já apanhou, quantas vezes pensámos que estava por um fio e, afinal, a verdade é que continua vivo e, tirando o declínio que a falta de massa muscular acarreta, tudo o resto vai funcionando bem. Quando me lembro que, quando teve o AVC, toda a gente ficou consternada, como se fosse impossível um homem daqueles ter uma coisa destas, e, afinal, tantos desses, saudáveis na altura (ou que assim se julgava), afinal, já cá não estão. Tanto que, por exemplo, me lembro dos meus outros tios, que tanto ajudaram, tão cheios de saúde e de alegria, e que um após o outro já lá se foram. Por isso, digo para comigo que o meu pai está há tantos anos assim e sempre ultrapassando os problemas e sobrevivendo, que não tem grande lógica eu estar sempre com medo de me afastar por uns dias. Mas nestas coisas dos medos não há grande lógica, há apenas medos.
Estamos in heaven, descansadamente, sem nada que fazer. De tarde, dormi durante um bocado. Soube-me tão bem. Durante a semana o meu corpo aguarda por estes pequenos momentos de repouso.
O campo está de uma suavidade que dá gosto mas há festa na aldeia e tudo o que cantam ou anunciam ouve-se como se estivessem quase aqui à porta. Não posso dizer que não me incomoda um pouco. Não que esperasse ouvir a Callas. Isso não que o meu bebé não está de DJ à festa. Também já nem esperava genuína música portuguesa. Isso já nem se sabe bem o que seja, creio eu. Mas ouvir uma misturada de covers, barulheira pegada, anúncios de sorteios misturados com uma chinfrineira excessiva, isso é poluição sonora que fere a minha sensibilidade. De qualquer maneira, à tardinha fez-se silêncio e os pássaros saíram das árvores a cantar, esvoaçando baixo, pousando por perto.
Infelizmente, o ruído recomeçou mal anoiteceu e durou até há pouco.
Ao fim de tantos anos, estreei-me hoje num lugar bom para se estar ao fim do dia. Do lado da sala da televisão, a luz do ocaso dilui-se em ouro sobre as árvores, luminosidade que me encanta muito, e eu limitava-me a abrir as portadas de vidro para o ar e o sol entrarem pela casa ou, então, ia lá para fora, para o banco de madeira que está encostado à parede da rua, mas que não é especialmente confortável para se estar a ler. É que gosto de ler reclinada.
Disse ao meu marido que havia era de ter uma daquelas cadeirinhas baixas, inclinadas, que se põem na areia. Ele disse que o que não faltam são cadeiras, na despensa. Lembrei-me que, de facto, ao fundo da despensa (que aqui é uma divisão razoavelmente grande, em especial comprida) há cadeiras mas não tinha nada ideia de haver muitas e, muito menos, dessas. Fui logo ver. Só duas cadeiras e um banquinho pequeno. As cadeiras são iguais, de tipo realizador. Peguei numa e pu-la junto à pedra grande.
Portanto, pude estar reclinada na cadeira de realizadora mas mais na base da pseudo: esticada, cabeça encostada atrás, pés em cima da pedra. Muito bem instalada, sob a copa de uma robinia também pseudo, pseudoacácia. Ouvindo os passarinhos, olhando a luz dourada, respirando o ar limpo e perfumado. E fotografando, fotografando tudo.
Tenho estado a ler o Escândalo do Século do Gabriel Garcia Márquez. Tenho também aqui o Wagneriano Perfeito que continuarei a ler amanhã e já antecipo a minha admiração pasmada pela inteligência e elegância da escrita. Estranhamente, quando me deixo encantar desta forma, acontece-me parecer nem prestar atenção à informação contida no texto, fico totalmente entregue à fruição da beleza que se desprende da inteligência das palavras. Gostava de um dia poder dizer que sou discípula de Shaw tal como Estela Canto mas não tenho disciplina para ser discípula de alguém. Pessoas como eu são puras diletantes, cultivadoras de indisciplinas e desconhecimentos. Além disso, não sei se seria prudente: as discípulas de Shaw produzem perigosos efeitos em quem também o admira. Ah, sim, como é poderosamente afrodisíaca a inteligência. Borges que o diga, não é...?
E, por agora, é isto.
Estou com vontade de pegar na máquina fotográfia e ir fotografar chávenas antigas ou copinhos de vidro que têm bem mais que a minha idade e que vieram de casas de quem há muito partiu. Se verá se o faço e depois se as fotografias ficam boas para vos mostrar. Conservo peças antigas que guardam memórias e que outra utilidade não têm senão essa. Felizmente aqui tenho espaço para isso mas lá chegará o dia em que alguém delas se desfará por não ter qualquer vínculo emocional que justifique o espaço que ocupam. Por isso, se puser aqui a sua imagem, talvez seja uma forma de se manterem junto à minha memória para todo o sempre. Se é que isso importa para alguma coisa.
Tinha levado dois livros e fiquei-me pelo que me foi oferecido e de que falei ontem. Um dia lê-lo-ei de seguida, como merece ser lido. Por enquanto, não resisto à surpresa e espreito e leio e volto a abrir ao calhas, espreito, leio, mais à frente, de novo no início, quase no fim. Qualquer coisa ali me transporta a um outro mundo no qual não posso entrar senão assim, devagar, às espreitadelas.
E ficou lá à minha espera para ser lido com calma e alguma cerimónia, onde possa esconder do mundo alguma da minha perplexidade por, tal como ontem confessei, ter desconhecido até agora esta escrita.
Para ler no caminho de volta, trouxe o outro, 'Relato de um Náufrago'. Como a volta foi maior já que fomos a casa dos meus pais antes de regressarmos, deu para ler bastante. E para ficar agarrada. Gosto de ler histórias bem escritas, as palavras no osso, desadjectivadas, em que o autor nos agarra pelos colarinhos e, nós, ali presos, não nos importamos porque não há uma palavra que desiluda.
Pena esta terça-feira não ser feriado que ficava a ler até acabar e acordava quando acordasse. Assim tem que esperar.
Entretanto, que nem de propósito, tinha no YouTube um outro relato surpreendente de uma outra história verídica. Steven Callahan sobreviveu 76 dias no mar, à deriva, coisa que não dá para acreditar.
Mas acredite-se: aconteceu. E aqui, no vídeo abaixo, pode perceber-se como foi. Não se pode dizer que seja breve mas é muito interessante. As histórias de luta pela vida, ainda por cima quando acabam bem, e quando os próprios sobreviventes contam como foi, são sempre emocionantes.
[E vão por mim: estou em crer que não vale a pena darem-se ao trabalho de descerem para saber o que acho do discurso do João Miguel Tavares (de que ouvi apenas um excerto) e, sobretudo, da escolha do Presidente Marcelo]
No post abaixo falei da cada vez mais incrível actuação de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI - tanto faz para agradar a gregos e troianos que só falta mesmo é aparecer a fazer bolos em directo (e sobre outras coisas que ainda espero vê-lo a fazer, falo a seguir) - e, mais abaixo ainda, avanço com uma sugestão para tornar mais animadas as reuniões de trabalho e os comentários políticos e económicos na televisão.
de Urbexography (in Bored Panda)
Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é completamente outra. Cansam-me tanto, mas tanto, os Marcelos desta vida, e os pseudo-jornalistas, e os comentadores avençados que introduzem uma enervante entropia na sociedade, e as cacafonias que se repetem por alguma blogosfera fora, e os programas de televisão completamente desprovidos de qualidade - que, de vez em quando, me apetece voltar-me para outro mundo. Outro mundo mesmo, gente que pensa e fala de outras coisas, de outra maneira, que valoriza outro tipo de ideias, que parece que faz renascer o mundo quando fala. E que eu esteja agora, aqui, a referir-me a pessoas que fisicamente já não estão entre nós como se o estivessem não é desatenção, é deliberado.
Vou transcrever quase na íntegra um artigo da revista Bula.
CLARICE LISPECTOR ENTREVISTA PABLO NERUDA
Numa manhã de abril de 1969, a escritora brasileira entrevistou o poeta chileno, que, à época, era considerado um dos mais importantes nomes da poesia em língua espanhola.
Cheguei à porta do edifício de apartamentos onde mora Rubem Braga e onde Pablo Neruda e sua esposa Matilde se hospedavam — cheguei à porta exatamente quando o carro parava e retiravam a grande bagagem dos visitantes. O que fez Rubem dizer: “É grande a bagagem literária do poeta”. Ao que o poeta retrucou: “Minha bagagem literária deve pesar uns dois ou três quilos”.
Neruda é extremamente simpático, sobretudo quando usa o seu boné (“tenho poucos cabelos, mas muitos bonés”, disse). Não brinca porém em serviço: disse-me que se me desse a entrevista naquela noite mesma só responderia a três perguntas, mas se no dia seguinte de manhã eu quisesse falar com ele, responderia a maior número. E pediu para ver as perguntas que eu iria fazer. Inteiramente sem confiança em mim mesma, dei-lhe a página onde anotara as perguntas, esperando Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. Disse-me que eram muito boas e que me esperaria no dia seguinte. Saí com alívio no coração porque estava adiada a minha timidez em fazer perguntas. Mas sou uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também alguma recompensa. Quem sofre de timidez ousada entenderá o que quero dizer.
(...)
No dia seguinte de manhã, fui vê-lo. Já havia respondido às minhas perguntas, infelizmente: pois, a partir de uma resposta, é sempre ou quase sempre provocada outra pergunta, às vezes aquela a que se queria chegar. As respostas eram sucintas. Tão frustrador receber resposta curta a uma pergunta longa. Contei-lhe sobre a minha timidez em pedir entrevistas, ao que ele respondeu: “Que tolice”. Perguntei-lhe de qual de seus livros ele mais gostava e por quê. Respondeu-me: “Tu sabes bem que tudo o que fazemos nos agrada porque somos nós — tu e eu — que o fizemos”. A entrevista foi concedida em 19 de abril de 1969 e publicada no livro “De Corpo Inteiro”, Editora Rocco, em 1999.
Você se considera mais um poeta chileno ou da América Latina?
Poeta local do Chile, provinciano da América Latina.
Escrever melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.
Quem é Deus?
Todos algumas vezes. Nada, sempre.
Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?
Político, poético. Físico.
Como é uma mulher bonita para você?
Feita de muitas mulheres.
Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?
Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?
Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?
Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum tempo escrevi em um poema: Se tivesse que nascer mil vezes. Ali quero nascer. Se tivesse que morrer mil vezes. Ali quero morrer…
Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de Magalhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.
Em você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?
Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia insensível.
Diga alguma coisa que me surpreenda.
748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)
Que acha da literatura engajada?
Toda literatura é engajada.
Qual de seus livros você mais gosta?
O próximo.
A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América Latina”?
Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
Como se processa em você a criação?
Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.
A critica constrói?
Para os outros, não para o criador.
Você já fez algum poema de encomenda? Se não o fez faça agora, mesmo que seja bem curto.
Muitos. São os melhores. Este é um poema.
Qual é a coisa mais importante no mundo?
Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.
O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
Depende da hora do dia.
O que é amor? Qualquer tipo de amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.
Você já sofreu muito por amor?
Estou disposto a sofrer mais.
(...)
E assim terminou a entrevista com Pablo Neruda. Antes falasse ele mais. Eu poderia prolongá-la quase que indefinidamente. Mas era a primeira entrevista que ele dava no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto uma entrevista pode ser cansativa. Espontaneamente, deu-me um livro, “Cem Sonetos de Amor”. E depois de meu nome, na dedicatória, escreveu: “De seu amigo Pablo”. Eu também sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as circunstâncias facilitassem. Na contracapa do livro diz: “Um todo manifestado com uma espécie de sensualidade casta e pagã: o amor como uma vocação do homem e a poesia como sua tarefa”. Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas últimas frases.
de williampatino.com
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Não resisto ainda a aqui partilhar convosco, e não é a primeira vez que o faço, dois vídeos com uma fantástica entrevista a Clarice Lispector e com algumas informações e opiniões sobre ela.
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Deixem ainda que junte uma outra entrevista: Gabriel García Márquez y Pablo Neruda
Outro comprimento de onda. Outro mundo. Outra gente.
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Permitam que alerte: o que se segue não tem nada a ver: a qualidade da escrita e dos temas não tem nem comparação com o que aqui se mostrou.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já esta segunda-feira.
No post abaixo falei das histórias infantis cheias de termos datados, incompreensíveis para as crianças de hoje, e repletas de perfídias de toda a espécie e feitio e aproveitei para mostrar como Jean Paul Gaultier vestiu a Branca de Neve a a Bruxa Má e demais personagens para um bailado contemporâneo.
E estava eu a escrever já sobre outra coisa, nomeadamente sobre um novo mural de Banksy que apareceu e desapareceu numa semana, quando vi na televisão que Gabriel García Márquez tinha morrido.
Hesitei.
Não gosto nada de obituários, de elogios fúnebres, de epitáfios. Não gosto da morte. Sei que faz parte da vida mas nunca convivi bem com esse último passo. Não sei se foi porque, quando era pequena - teria talvez uns dois ou três anos - morreu o meu avô, em casa de quem eu ficava enquanto a minha mãe estava a dar aulas. Foi um processo muito traumático para a família, soube-o vários anos depois. Essa minha avó tinha tido a minha mãe quando tinha dezassete anos, tinha caído perdida de amores pelo meu avô, um rapaz um pouco mais velho que ela, muito alto, muito louro, de olhos muito azuis. A minha mãe, por sua vez, teve-me aos vinte e três e, portanto, a minha avó era, então, muito nova e ainda completamente apaixonada pelo meu avô. Ele morreu de acidente e iam ao cinema nessa tarde. Nunca mais aparecia e a minha avó à espera. Até que alguém foi avisá-la. Com o choque, ela desmaiou e viveu uns dias entre a consciência e a inconsciência. A minha mãe também teve um choque brutal, acho que chorou dias a fio. Eu, que estava sempre com os meus pais ou com esses meus avós, fui enviada para a casa da minha outra avó e ninguém me disse nada. Mas eu, que era uma menina muito curiosa e que percebia tudo o que se passava, devo ter achado alguma coisa de estranho. E depois andavam de luto, vi-o depois nas fotografias. Mas não me lembro de nada desses tempos. Ocultaram tudo de mim e eu nem percebo como conseguiram porque eu haveria de ter feito perguntas. Mas não me lembro de as ter feito. Lembro-me de mil coisas de quando era dessa idade mas disso nada. Só sei que, por essa altura, fiquei gaga. A minha mãe levou-me ao médico e ele disse que me havia de passar. Quando entrei para a infantil, aos quatro anos, já não gaguejava. Já lia e escrevia e, no entanto, não tinha qualquer ideia sobre a morte do meu avô.
Não sei se é por isso, o que sei é que desde criança que tenho terror da morte. Nunca consegui ver ninguém morto. Mesmo quando são familiares próximos, fico na parte externa das capelas. Não consigo aproximar-me. Não consigo mesmo.
Também talvez por tudo isso, detesto falar de mortes. Faz-me impressão que, quando morre alguém, a internet é varrida por RIP e datas entre parêntesis. Dá ideia que as pessoas falam disto com ligeireza, que cumprem uma obrigação. Eu não consigo.
Mas, de vez em quando, abro uma excepção, já aqui as abri umas quantas vezes, poucas mas abri.
Hoje quero falar do Gabo. Houve uma altura, na verdade uns anos, em que eu trabalhava num sítio em que, todos os dias, estava para aí uma meia hora no trânsito. Havia uma estrada que ia dar a uma rotunda e era um castigo para lá chegar. Mas para mim não era. Lia livros atrás de livros. Um dos livros que melhor recordo desses tempos foi o Amor nos Tempos de Cólera. Florentino Ariza e Fermina Daza vivem dentro de mim desde então.
Já tinha lido os Cem anos de Solidão mas na verdade foi o Amor nosTempos de Cólera que verdadeiramente me fascinou.
Não garanto que estejam aqui todos,
fui ali num instante fotografá-los
Depois li vários outros e li livros de entrevistas com ele, autobiografia e biografia. Pessoa com uma vida fascinante, cheia, uma pessoa apaixonada e apaixonante, uma escrita igual, transbordante, mágica, por vezes aquém da própria vida.
Entretanto, ultimamente a cabeça foi-lhe ficando cansada e, quando isso acontece, a pessoa já não está bem cá. O estado de saúde nos últimos dias estava frágil e, portanto, o relato dos seus últimos tempos era de facto a crónica de uma morte anunciada.
Não consigo dizer que o mundo fica mais pobre sem ele.
Já tantos se foram e o mundo fica sempre mais pobre mas a verdade é que fica e não fica.
O meu pai um dia queixava-se que o que tinha morto o pai, o meu avô que morreu aos noventa e tal anos, tinha sido uma pneumonia. Saíu-me: 'Senão o quê...? Teria vivido até aos duzentos...?'. O meu pai ficou a olhar para mim, sem dizer nada. E eu arrependi-me de ter sido tão bruta; afinal estava a falar do pai dele, do meu avô de quem eu tanto gostei. Mas a minha mãe deu-me razão, disse que ele ter vivido até aos noventa e tal já tinha sido até bem bom.
Ninguém fica cá para sempre e, portanto, não vale a pena dizermos palavras escusadas. Morrem uns, nascem outros. Vejo a fotografia de alguns casamentos da família, do meu, dos meus cunhados. Quase metade das pessoas já cá não está. Mas estão outros tantos ou mais, que, na altura, não faziam parte da família ou não existiam sequer. Assim é a vida: um ciclo implacável, uma viagem que deve ser bem vivida enquanto dura e que um dia chega ao fim. Eu sei disso. Pareço até racional ao falar assim. Mas não sou. Não se deixem iludir.
No entanto, foi-se ele mas a sua obra de Gabriel García Márquez ficará para sempre. É um lugar comum isto, eu sei, mil pessoas o dizem a propósito de cada artista que morre. Mas é a verdade - e para quê inventar palavras de efeito quando a verdade é tão simples?
Quando os meus filhos saíram de casa, fiz questão de que, para além dos livros deles, levassem um mínimo de livros que considero incontornáveis. Claro que não lhes dei os meus mas comprei-os de propósito para eles os levarem (como dote, como enxoval). O Amor nos Tempos de Cólera foi um deles.
Entretanto, outros escritores foram aparecendo na minha vida e outros virão, e outros e outros. E na vida dos meus filhos aparecerão outros que eles próprios vão descobrindo. Assim é a caminhada que vamos fazendo.
Um presidente de uma multinacional, um homem com uma pinta extraordinária, um francês cheio de charme, tratava-me pelo meu nome (que ele dizia em francês) seguido de la femme infidèle. E sou. Infiel. Sempre pronta para abraçar novos parceiros. E isto aplica-se a parceiros nos negócios, na literatura, na pintura, na fotografia, na música. Presa a um mesmo, por enquanto apenas ao meu namorado de longa data - mas esse já é parte de mim, não conta.
E talvez seja por isso que aquela história de amor inabalável, um amor único feito de mil pequenas infidelidades mas de uma lealdade invencível, me seduziu tanto.
Partiu o Gabo, saíu do seu corpo, mas uma parte dele está naquela minha pequena estante, perto de mim, e isso para mim chega.
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Gabo por ele próprio, falando do seu amado Caribe
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Amor nos tempos de Cólera - o filme
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A música lá em cima é Acuarela de Adolfo Mejia, músico colombiano, interpretada pelo Trío Instrumental Macaregua.
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Relembro: sobre a perversidade da história da Branca de Neve e sobre a sua transposição para os tempos modernos falo no post já aqui a seguir.
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E, assim sendo, sobre Banksy e sobre telemóveis a ver se consigo falar amanhã. Vou ter a casa com lotação esgotada, incluindo com pernoita, pelo que não sei se, à noite, terei condições físicas para conseguir escrever ou, sequer, articular palavra.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta feira.