O seu prazer em ser mulher, a defesa acérrima do pleno direito das mulheres, pleno direito a todos os títulos, incluindo ao pleno direito sobre o corpo, o uso pleno da palavra ao serviço da poesia, da condição da mulher, do prazer, do amor, da paixão -- tudo isso me encantou desde sempre.
E, depois, a sua intrínseca liberdade. A liberdade do uso íntegro da palavra. Sem medo, sem hesitação, sem inibição ou vergonha. E sem que, com a sua liberdade, embandeirasse em arco. Sem arrogância. Como uma coisa natural.
Sempre a admirei, não apenas como poeta mas também como mulher.
Estava frágil, em casa, com receio de sair. Além disso, quem se alimenta do amor total a um homem, como ela amou o seu Luís, e da companhia desse homem se vê privada, fica forçosamente debilitada. Chegou ao fim.
Esta terça-feira de manhã tive uma daquelas minhas premonições que até a mim me assustam. Tinha que sair e estava à pressa mas quis ligar o computador. Cá para mim pensei: 'deixa cá ver quem é que morreu...'. E, ao pensar isto, fiquei incomodada. Enquanto o computador ligava, arranjei uma desculpa para um pensamento tão estúpido: pensei que desde já há algum tempo que não aparecia a notícia da morte de alguém do mundo das artes. Mas estava mesmo incomodada, só me chamava estúpida por estar com pensamentos tão parvos. Quando abri um dos jornais, apareceu logo a notícia: Maria Teresa Horta tinha morrido. Só me apeteceu desligar logo o computador. Má notícia. Caraças.
Enfim.
Fica-nos a sua magnífica poesia.
Por exemplo:
Segredo
de Maria Teresa Horta
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta in 'Minha Senhora de Mim' -1972
Admiradora que sou de Maria Teresa Horta, considerando-a das melhores poetas portuguesas e uma mulher lúcida, franca, inteligente e informada, claro que fico muito contente.
A lista "BBC 100 Women" deste ano inclui nomes de pessoas mais conhecidas, como a atriz norte-americana Sharon Stone, a artista britânica Tracey Emin, a sobrevivente do caso de violação em França Gisèle Pelicot e a iraquiana Nadia Murad, vencedora do Prémio Nobel da Paz.
As brasileiras Lourdes Barreto, ativista pelos direitos das prostitutas, e a ginasta Rebeca Andrade e a bióloga Silvana Santos também estão na lista, que teve em conta a imparcialidade e a representação regional.
A BBC salienta que, ao longo do ano, as mulheres "tiveram de se esforçar muito" para encontrar novos níveis de resiliência e enfrentaram "conflitos mortais e crises humanitárias" em Gaza, no Líbano, na Ucrânia ou no Sudão e testemunharam a "polarização das sociedades após um número recorde de eleições em todo o mundo".
A equipa do BBC 100 Woman elaborou a lista com base em nomes recolhidos através de pesquisas e sugeridos pela rede das 41 equipas linguísticas do Serviço Mundial da BBC, bem como pela BBC Media Action. Todas as protagonistas femininas deram o seu consentimento para aparecerem, e não são apresentados por uma ordem específica.
A escritora portuguesa Maria Teresa Horta tem sido amplamente premiada ao longo da sua carreira literária, destacando-se, só nos últimos anos, o Prémio Autores 2017, na categoria melhor livro de poesia, para "Anunciações", a Medalha de Mérito Cultural com que o Ministério da Cultura a distinguiu em 2020, o Prémio Literário Casino da Póvoa, que ganhou em 2021 pela obra "Estranhezas", e a condecoração, em 2022, com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade.
Nascida em Lisboa em 1937, Maria Teresa Horta frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi dirigente do ABC Cine-Clube, militante ativa nos movimentos de emancipação feminina, jornalista do jornal A Capital e dirigente da revista Mulheres.
Como escritora, estreou-se no campo da poesia em 1960, mas construiu um percurso literário composto também por romance e conto.
Com livros editados no Brasil, em França e Itália, Maria Teresa Horta foi a primeira mulher a exercer funções dirigentes no cineclubismo em Portugal e é considerada um dos expoentes do feminismo da lusofonia.
Numa ideia criadora revivem milhares de noites de amor esquecidas que a enchem de nobreza e de altura. E os que se unem na noite e se enlaçam numa volúpia embaladora, fazem obra séria e acumulam doçuras, força e profundidade para o canto de qualquer poeta que há-de vir, que se erguerá para dizer delícias indizíveis. E convocam o futuro; e se também errarem e se abraçarem às cegas, o futuro vem na mesma, levanta-se um homem novo e, no terreno do acaso que aqui parece realizado, desperta a lei que impele uma semente forte e resistente para o óvulo que se abre ao seu encontro. Não se deixe iludir pelas superfícies; nas profundezas tudo se torna lei.
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O pequeno texto é um excerto da carta de Rainer Maria Rilke a Franz Kappus datada de 16 de Julho de 1903. Da mesma carta foi extraído o título deste post.
Fotografias feitas hoje cá em casa
Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini
O Segredo de Maria Teresa Horta é dito por Pedro Lamares
Tal como os do post abaixo também estes poema são de Maria Teresa Horta em Estranhezas (de onde igualmente voltei a extrair o título deste post).
Também as fotografias foram feitas aqui em casa durante a tarde deste sábado vagaroso, sereno, parado no tempo. Tão sereno, tão parado no tempo, que consegui descobrir e fotografar um passarinho numa árvore. Se fosse uma gata teria subido pelo tronco, ter-me-ia esgueirado pelos ramos, em silêncio, para o ver de perto, para o cativar. Talvez ele cantasse para mim e talvez eu, feita gata anarca-burguesa, quase morresse de emoção.
E é também Mari Samuelsen que interpreta Una Mattina
Que se iluminem os pulsos estreitos e muito pálidos
daquelas que voam
Como eu queria
sem ter fim
entregar-me à densa Lua
submersa e encoberta
envolta pelo seu manto
perdida de mim
turvada
onde a chuva desamada
se transforma
no meu pranto
docemente
envenenada
pelo jasmim e o espanto
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Os poemas Iluminação e O manto da lua que acima transcrevi e Flor receosa de onde extraí o título deste post pertencem a Estranhezas de Maria Teresa Horta, livro que lhe valeu o Prémio Casino da Póvoa atribuído na 22.ª edição do festival Correntes d’Escritas.
O jasmim foi fotografado hoje, aqui em casa. Está perfumado de dar gosto. Hoje encostei-me ao muro, entre dois tufos, e ali fiquei em estado de inebriamento, deixando que o tempo pousasse suavemente em mim, presa deste tempo sem fronteiras, rendida ao prazer de estar e ser.
Para não ser preciso ir despejar o lixo ao contentor da estrada, separamos os plásticos para um lado, o vidro para outro, o cartão para outro e, quando saímos para ir ao supermercado ou para ir ver a família, levamos para a reciclagem, para os contentores grandes que estão perto da estrada nacional. Os restos, os orgânicos, vou despejar lá em baixo, sob a caruma. Os animais comem-nos e, o que sobra, vai sendo revolvido na terra. Acho que fertiliza o solo, que aproxima os animais, e escusamos de andar a pôr restos que se degradam no contentor da estrada.
Mas, então, um destes dias ia eu à noite, às escuras, descalça, pé ante pé, com um pratinho na mão com cascas de batata ou de fruta, quiçá alguns ossinhos, e dou com um pirilampo a voar à minha frente, a alumiar-me o caminho. Nestas alturas, arrepio-me. Não sei se é emoção pura, se é o inesperado do dito hecho estético de que Borges falou:
La música, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético."
Eu ali, a noite com aqueles seus sons que cruzam o silêncio, a lua a crescer no céu, os meus pés nus e cautelosos sobre a caruma e, à minha frente, ziguezagueando, um pirilampo. Emocionada, pensei: olha, o açauí veio ter comigo. E ia andando e dizendo em voz muito baixa, quase sussurrando: 'Açauí, açauí...', como se querendo falar com ele. Açauí, açauí...
E, desde aí, quando escurece, eu olho em volta e penso: 'Será que o meu amigo açauí vem visitar-me?'. E, sem que ninguém me ouça, eu murmuro Açauí.... açauí...
Ao mesmo tempo ocorre-me, de vez em quando: 'quem será que aqui veio dar-me a conhecer este outro nome do pirilampo?'. E ponho-me a pensar se será este, se aquele, se aquela, tentando perceber como será a pessoa que tão generosamente me ofereceu um nome para eu dar à irreal aparição que é um pequeno açauí voando na noite, um pontinho de luz em que dificilmente se acredita.
Hoje cheguei aqui e resolvi rever o comentário para ver se havia alguma pista que me deixasse antever quem seria. Li, reli e não queria acreditar. Afinal não é açauí coisa nenhuma, é arincu. Reli. Arincu? Se o que ali está escrito é arincu, como é que eu registei açauí...?
Fui agora verificar o significado de açauí e, para ainda maior espanto, é palavra inexistente. E, no entanto, o pirilampo lindo que cruza a noite para deixar que eu o acompanhe parece que fica melhor vestido de açauí do que arincu. Não sei se alguém pode registar o nome ou se fica só meu. É um arincu mágico que muda de nome quando chega perto de mim, transforma-se em açauí.
Enfim. Não liguem. Coisas minhas.
É como tessitura. Li e pensei na La Dame à la licorne. Fiquei a pensar no que tinha lido e a pensar que a palavra certa ali era mesmo aquela, palavra que descreve bem tudo o que envolve coisas como à mon seul désir (que eu, volta e meia, confundo com à mon seul plaisir). Tive vontade de ir buscar A Dama e o Unicórnio para reler alguns poemas, para ver as tapeçarias, para perceber bem as declinações de desejar e ser desejado: a primeira, a segunda e a quinquagésima derivada.
Tessitura. Ponto a ponto, passo a passo, o fio que se entrelaça, que desliza e prende e volteia e se cruza com outro fio, de uma outra cor, o ponto e outro ponto, a tessitura perfeita, o desenho a anunciar-se, a insinuar-se.
A Dama seduz Ou o Unicórnio entrega-se? No jogo da sedução Quem usa a taça e a seta?
Eu capricho na conquista
no fogo da sedução
Sou Dama da minha vida
deixo nela a minha pista
Senhora de meu desejo
de meu prazer e paixão
Agora, estando eu nisto, assaltou-me a dúvida: tessitura? ou tecedura? Reli. Tessitura. Fui conferir. Pois, li uma coisa, tresli e pensei noutra. E, no entanto, agora parece-me que são sinónimos. Ou uma outra forma de dizer a mesma coisa.
Aliteração. Alitero o sentido das palavras, aconchego-as a mim, ao fogo da minha paixão, ao capricho da sedução, teço e entreteço e enlaço e deslizo o laço e em alvoroço escondo a taça e espero que o prazer das palavras de mim não faça sua escrava porque não nasci para serva mas para senhora da minha vontade e, mesmo quando me desnudo, nunca mostro o meu corpo nu mas a minha alma que apenas ilude uma nudez que nunca é real. E agora que o escrevo penso que talvez aliteração também não seja a palavra certa mas isso agora também não interessa para nada até porque é capaz de não haver palavra para isto de nascerem asas no corpo das palavras. Portanto, adiante.
Muitas vezes já aqui o disse: ao vivo, sou uma pessoa reservada, sobretudo em relação ao que me diz respeito. Em ambiente social, falo pouco de mim, prefiro prestar atenção aos outros, ouvi-los, saber deles. Apesar de ser bastante assertiva na defesa das minhas convicções, reservo a minha energia para falar do que me interessa e o que me interessa a maior parte das vezes não tem a ver comigo.
Contudo, quando aqui escrevo, é frequente contextualizar as ideias a partir da minha própria experiência. Assim, é frequente evocar memórias ou registar acontecimentos que presenciei ou vivi e só depois partir para o tema em si. Muitas vezes me interrogo sobre o que me leva a fazê-lo. A explicação que me parece mais fácil tem a ver com o facto de apenas aqui escrever tarde e más horas, quando o dia chegou ao fim, frequentemente estando já esgotada e sem grande cabeça para textos elaborados. Usar-me como objecto de escrita é, assim, subterfúgio fácil para quando as mãos têm vontade de escrever e a mente já pede descanso.
Contudo, hoje, ao ler 'O lado negro da mente', de Kerry Daynes -- que é psicóloga forense e consultora do governo britânico para casos de alto risco --, dei com uma justificação que me agrada mais. Transcrevo:
Contar as nossas histórias pessoais, nomear e reconhecer as nossas experiências, é a principal forma como as pessoas dão sentido ao mundo. Para a maioria de nós, isso significa falar com os amigos ou a família; para outros, é a terapia ou o aconselhamento. A premissa mantém-se: através do simples acto de falar, processamos e compreendemo-nos a nós e aos outros. Quando não contamos as nossas histórias, ou não as podemos contar, elas manifestam-se de outras formas. As emoções precisam de uma voz. Sem ela, acabam por se escapar.
De seguida a autora fala de um outro facto que me parece ser a razão subjacente a muitos dos males deste mundo:
(...) a arte de falar é mais fácil para uns do que para outros. Para rapazes e homens, muitos deles ainda socializados numa multitude de formas destrutivas para dissimular a fraqueza e a dureza dos seus problemas, a ideia de partilhar um profundo sofrimento emocional com alguém continua a ser inconcebível, mesmo no século XXI. Quando somos castigados ou gozados por expressar, ou mesmo, ter sentimentos, iremos tender a esforçar-nos bastante para parecermos fortes e impassíveis. Excepto no que se refere à ira. O condicionamento masculino é mais predisposto a aceitar ira, uma emoção que tem mais que ver com 'fazer' do que com 'sentir'.
Tirando isso, e embora avessa a publicidades, só tenho a acrescentar que o creme corporal iogurtado de gengibre é uma maravilha: macio, muito hidratante, com um perfume fresco e picante. Ficou o meu corpo perfumado e ficou o quarto em que eu estava quando o fiz deslizar na minha pele.
Também estou agora a usar, para lavar as mãos, um gel com aroma de gingerbread e devo dizer que me traz alegria. Os miúdos ontem estavam intrigados, diziam que parecia que cheirava a canela. É um cheirinho bom, inusitado e agradável.
Também posso ainda referir que misturando na mesma chávena uma saqueta de chá branco e outra de gengibre se obtém uma infusão preciosa. Ainda hei-de experimentar juntar uma casquinha de laranja e, quando as rosas do jardim da minha mãe florirem, hei-de trazer de lá uma para experimentar juntar uma pétala. Mas, claro, quando puser a pétala de rosa, não ponho a casquinha da laranja para que não anule o perfume da rosa. Ou talvez até tudo junto fique bem. Hei-de experimentar também.
É cálida flor E trópica mansamente De leite entreaberta às tuas Mãos Feltro das pétalas que por dentro Tem o felpo das pálpebras Da língua a lentidão Guelra do corpo Pulmão que não respira Dobada em muco Tecida em água Flor carnívora voraz do próprio suco No ventre entorpecida Nas pernas sequestrada. Maria Teresa Horta
de Jacqueline Secor
No seguimento do post de ontem, decidi fazer um post em homenagem a uma das partes mais fantásticas do corpo das mulheres. Já não é a primeira vez que o faço (por exemplo aqui e aqui) e provavelmente não será a última. É uma parte íntima, geralmente escondida, muitas vezes objecto de vergonhas, de tabus, muitas outras vezes transformada em arma de arremesso vernacular. E, no entanto, que delicadeza, que porta de entrada para um mundo de mistérios e prazeres. Felizmente a anatomia colocou-a num lugar em que está ao abrigo de olhares impróprios, protegendo-a de uma banalização que a tornaria menos secreta e menos desejada.
Por motivos que não alcanço, há quem a associe ao pecado e proíba imagens suas. Eu, pelo contrário, acho que a sua existência deveria ser glorificada e só por pensar que os meus filhos existem porque alguém transpôs esta entrada do meu corpo para no mais interior de mim depositar a sua semente e que ambos chegaram a este mundo descendo por mim e atravessando esta porta abençoada, ainda mais penso que pecado uma ova.
E agora chega de conversa. Vou ali buscar o meu chá, quentinho e bom. Aceitam um bolinho?
Não há mulheres, no plural. Há uma e outra e outra e outra. Todas diferentes. Nada que as iguale. Nada.
Posso falar do que conheço de outras mulheres mas não falo por elas. Cada uma tem a sua própria voz.
Conheço-as submissas. Conheço-as desconfiadas. Conheço-as abnegadas. Conheço-as lutadoras. Conheço-as sofredoras. Conheço-as arrogantes. Conheço-as inseguras. Conheço-as ingratas. Conheço-as com os pés e as mãos na terra. Conheço-as com a cabeça na lua. Conheço-as destroçadas. Conheço-as frágeis. Conheço-as guerreiras.
Conheço tantas mulheres.
Posso falar delas. Mas, se não falo de alguma em particular, se falo de mulheres, falo da que desconheço melhor: de mim.
Que as mulheres que me lêem não sintam estranheza por não se reconhecerem porque, se falo de mulheres, em abstracto, é de mim que falo, uso a minha própria voz que é a única que, em toda a verdade, sou capaz de usar.
Dos homens não sei. Há homens que eu acho que não têm qualquer interesse. E, no entanto, há sempre alguém que se interessa por eles. Por isso, sobre homens, também apenas posso falar por mim. E, se falar do que como um homem deve ser para ser interessante, é em mim que penso, no que a mim me parece interessante num homem. Mas também não sei dizer muito porque, se falasse, estaria a falar de um ser abstracto e, a mim, o que me interessa são os homens concretos, de carne e osso, de verdade.
Portanto, se eu me pusesse aqui a falar de homens, sobre homens em abstracto, tudo não passaria de teoria, conversa vaga, coisa de nulo interesse. Não o farei.
E um disclaimer que, se calhar, nem vem a propósito: há homens e mulheres que podem ser muito próximos, muito amigos. A grande amizade entre um homem e uma mulher é possível. Os meus melhores amigos sempre foram homens. Mas o mais interessante, o mais raro, o que dá sentido e fulgor à vida, o que cintila no escuro e no coração é a paixão. E, a seguir à paixão, um grande amor, um grande amor entre um homem e uma mulher.
E, claro, estou a falar da condição que é a minha, a heterossexual. Mas talvez tudo possa extrapolado.
Contudo, justamente, porque quero ser precisa, não posso dizer muita coisa. Não saberia o que dizer.
Sei que teria ainda muito para descobrir sobre mim mas não tenho interesse nisso. Gosto de ser surpreendida e isso aplica-se também a mim. E gosto de ser desafiada pois isso leva-me a aventurar-me por caminhos que desconheço e, mais do que conhecer-me a mim, interessa-me conhecer os caminhos por onde a minha curiosidade me pode ainda levar.
E, tirando isso, nada. Não sei o que dizer.
Dou, pois, a palavra a outras mulheres. Este é um post sobre o que pensam as mulheres. Sobre o que sentem as mulheres. Melhor: sobre o que pensam as mulheres quando pensam em homens. Em certos homens. Naqueles que trazem sal, pimenta e beleza à vida, naqueles que fazem com que tudo cintile.
Os moços tão bonitos me doem, impertinentes como limões novos. Eu pareço uma actriz em decadência, mas, como sei disso, o que sou é uma mulher com um radar poderoso. Por isso, quando eles não me vêem como se me dissessem: acomoda-te no teu galho, eu penso: bonitos como potros. Não me servem. Vou esperar que ganhem indecisão. E espero. Quando cuidam que não, estão todos no meu bolso.
Mas se o corpo é escrita no leito do papel
onde a mão o deita, desnuda e o invade
lhe acaricia os ombros e em seguida
o possui de bruços e mesmo assim não sabe
saciar o corpo no corpo do delírio
com a avidez de uma emoção rapace
Réstia de sol na sombra do calor
fuso do corpo
tecendo o seu orgasmo ....
Penso em ti com apreensivo carinho. Realmente, entre a dor e o sonho, até quando conseguirei manter esta obsessão prática, este quase incesto? O verdadeiro amor é um acto indisponível.
Segundo poema - excerto de 'O esplendor do Corpo' de Maria Teresa Horta in 'Eu sou a minha poesia'
Tisana 285 - de Ana Hatherley in '351 tisanas'
Último poema e poema do título - de Hilda Hilst in 'De amor tenho vivido'
Pinturas respectivamente de Frank Dicksee, Solomon Joseph Solomon, Picasso, Solomon Joseph Solomon, Red Cloth, John William Waterhouse, Rubens e Charles Joseph Frederic
Tudo na companhia de Melody Gardot com Our love is easy
Há um aspecto nas cidades portuguesas que é muito diferente do que se pode encontrar noutras cidades europeias. Não precisamos de ir muito longe, basta ir aqui ao lado, a Espanha. Se estivermos depois das cinco da tarde na Plaza Colón ouviremos como que um muito sonoro chilreio: são crianças. Montes de crianças. Correm, brincam, chamam umas pelas outras, riem. Grande parte está com as empregadas, grande parte delas da América do Sul. Mas o que verdadeiramente impressiona é a quantidade de crianças. Numa outra cidade espanhola, aquela que prefiro, em minha opinião uma das mais belas cidades euopeias, San Sebastian, a Donostia do País Basco, também, a partir de meio da tarde, as ruas e os jardins estão cheios de crianças, aqui já muitas com os pais e não tanto com as babás como no centro do Madrid. Em Amesterdão, tenho ideia que é ao longo de todo o dia que se vêem jovens mães ou pais com crianças nas bicicletas. Tantas crianças.
Por cá, durante a semana, pouco se vêem. Não apenas não há muitas crianças como as poucas que há têm que ficar nas escolas até tarde já que os pobres pais têm que trabalhar até tarde e, depois, enfrentar longos e demorados percursos, presos no trânsito.
Se há aspecto francamente descurado por todos os governos, incluindo pelo da geringonça, é o demografia. É certo que tem havido uma ou outra medida mas, reconheçamos, nada que seja efectivo, tudo muito em ponto pequeno, medidas desgarradas, timoratas. E, por isso, não espanta que os resultados sejam tão desoladoramente incipientes.
Uma das filhas da senhora que vai ajudar a minha mãe a tratar do meu pai vive na Alemanha e tem duas filhas pequenas. As licenças de maternidade são extensas, os horários são reduzidos enquanto as crianças são pequenas, o ensino é completamente gratuito, incluindo todo o material escolar, e nem sei que outros apoios tem, pois, volta e meia, quando me contam, fico tão admirada que acabo por não fixar, quase como se fosse uma quimera em que nem vale a pena pensar. Apesar de não ter um emprego por aí além e de ser emigrante, ela não teve qualquer problema em ter uma criança e, pouco tempo depois, uma outra. E quando fala com a mãe, via Skype, está fresca e bem disposta, nunca se queixando de nada.
Um país com muitas crianças é um país com futuro, em que a população pode viver tranquilamente, encarando o futuro com tranquilidade, sem o peso do receio de uma possível falência de sistemas de segurança social. Em países como Portugal, em que há cada vez menos pessoas a entrar como novos contribuintes para um sistema repleto de idosos que vivem cada vez até mais tarde, paira sempre sobre o pescoço, em especial dos que caminham para a madura idade, o receio de que o cutelo do corte das pensões empobreça a sua velhice.
Por isso, é vital que se reforcem todos os apoios ao incremento da natalidade, e que se seja criativo, arrojado, que se tenha uma visão abrangente -- que haja subsídios de apoio ou redução fiscal (o que for mais eficaz) para famílias com crianças, que haja infantários e escolas públicas, obviamente gratuitas, com actividades e horários alargados e funcionando todos os meses do ano, que haja amplo apoio pediátrico, que se reduzam os horários para pais com filhos até aos doze anos, que se fomente o teletrabalho, que haja uns quantos dias para ausências para que os pais possam acompanhar os filhos, que haja também alguns dias para avós que tenham que prestar apoio aos netos.
E estou a escrever ao correr da pena. Mas que se abra um debate público, que se faça um inquérito junto de jovens pais para saber quais as suas dificuldades e outro junto dos que não têm filhos para saber o que receiam.
Dir-me-ão que receiam os ordenados baixos o desemprego. Claro. Mas isso combate-se com uma economia pujante -- e é outro lado da equação.
E não é apenas para a sustentabilidade dos sistemas contributivos que é indispensável ter um equilíbrio demográfico: é também porque cidades sem crianças pequenas e sem jovens irreverentes são cidades soturnas, tristes. E, quem diz cidades, diz vilas ou aldeias.
E, enquanto não estejam no terreno todas essas medidas e que comecem a produzir efeito, pois que se incentive a imigração.
E aceitem-se miúdos de países em risco, famílias de refugiados com filhos pequenos. E 'importem-se', por exemplo, médicos e enfermeiros.
Não os há que cheguem nos hospitais porque cada vez há mais clínicas e hospitais mas as Faculdades de Medicina são basicamente as mesmas. Como é que os médicos e enfermeiros hão-de ser suficientes? Não são, claro. Mas não é drama: incentive-se a vinda de médicos de outros países.
Ou engenheiros informáticos, que estão também em falta. Ou engenheiros de ambiente, engenheiros sanitários, engenheiros de materiais, ou físicos ou bioquímicos, ou gente que venha investigar seja o que for. Muita falta nos fazem. Todos os que cá tivermos serão sempre poucos.
E, já agora: uma vez que começam a rarear muitas profissões, criem-se muito mais escolas técnico-profissionais onde se ensine a ser electricista, canalizador, mecânico, instrumentista, torneiro, etc, para ter oferta diversificada a nível de ensino, incluindo para jovens que não querem fazer cursos superiores.
E outra coisa. Uma muito importante.
Estou a falar de algo que, em meu entender, é vital nas cidades para lhes dar vida, uma vida jubilosa, uma vida com irrequietude de espírito, alegria e criatividade: a arte.
Uma vez escrevi uma carta ao presidente da autarquia com um conjunto de sugestões: que enchesse as ruas de arte, que oferecesse prémios e bolsas para artistas que fizessem trabalhos para a cidade, que tivesse residências e ateliers para artistas vindos de onde quisessem vir, que tivesse galerias públicas.
A arte atrai bons espíritos, atrai mais gente, e mais gente atrai mais trabalho e prosperidade, maior qualidade de vida e maior qualidade de vida é segurança, e segurança e qualidade de vida dá mais vontade de criar família, de ter crianças, de renovar o mundo.
Terras sem artistas, sem arte pública, sem comunidades de artistas vibrantes, criativos, diferentes, são terras tristes, ensimesmadas, com tendência ao esvaziamento, terras com triste futuro.
É outro aspecto fundamental nas políticas públicas: muita arte, arte ao dispor de todos, arte a inspirar todos.
Forte apoio à natalidade, forte apoio à imigração, forte apoio às artes -- são três medidas que espero que estejam bem presentes no programa do próximo governo. Isso a par da defesa do planeta que, espero bem, há-de ser uma das principais causas dos anos que aí vêm.
Claro que muito mais que isto. Bibliotecas públicas abertas de manhã à noite e ao fim de semana, também, por exemplo. E mais, claro. Mas a estas políticas a que aqui dei destaque eu dou total importância. E defendê-las enche-me de entusiasmo, como se tivesse uma suave brisa a tocar-me o rosto, como se tivesse os braços cheios de braçadas de flores, como se tivesse outra vez dez anos e largasse a correr por um sinuoso caminho descendente, a saia voando, os cabelos compridos pelos ares, eu com a vida pela frente, eu ainda nunca desiludida, eu ainda inocente e crente na força da minha vontade.
Usei pinturas de Georgia O'Keeffe e o Smile pela Madeleine Peyroux para dar alguma graça a este post. O título é um excerto do poema Eternidade de Maria Teresa Horta
A sala tranquila, na televisão qualquer coisa a que não presto atenção, luz apenas aqui onde escrevo. Para variar, depois de uma manhã a cozinhar, de uma caminhada em passo apressado que o pessoal estava quase a chegar e depois de um dia muito bem passado, sol, ternuras, alegrias e muito verde, chego aqui a este recanto e é uma quebreira. É o mal de apenas escrever depois de tudo o resto, quando o dia terminou e a casa está em sossego. Sempre assim foi. Por algum motivo, parece que o dia não está completo se não tiver estes momentos só meus, de preferência sem ninguém por perto, apenas eu e o que quero fazer com o meu tempo, eu e as minhas mãos. Se pensar nisto, acho que sempre tive necessidade de produzir qualquer coisa. Fazer tapetes, bordar, fazer camisolas, pintar, escrever. A excepção é a leitura, é um prazer mas apenas consumo, não produzo. A leitura é quase como respirar, saber dos meus: imprescindibilidades. A questão é que tudo isto só pode acontecer à noite e o prazer de fazer mistura-se com o cansaço, com o sono. Mas é assim, nada a fazer. Não é coisa que eu consiga gerir melhor pois, mesmo que tenha tempo durante o dia, ocupo-o com outras coisas (apanhar figos, andar a apanhar amoras e a comê-las mornas e doces, varrer, tirar fotografias) e, à noite, tarde e más horas, aqui estou, cansada e ensonada, como se estivesse a cumprir um castigo -- quando, afinal, é pura opção e puro prazer.
Enfim. Idiossincrasias.
Depois de muito brincarem e de, a meio da tarde, lancharem (Tá, se faz favor, pão com queijo fresco, tomate e azeite acompanhado de sumo e, a seguir, iogurte) e de, mais tarde, no meio do trabalho (apanha e transporte de caruma), terem ficado outra vez com fome (pão igual, se faz favor, Tá) e de, já noite, terem tomado um banho, chegaram à mesa e atiraram-se à pratada que tinham à frente e ninguém mais os ouviu. Ri-me. Que silêncio... Então ninguém diz nada? O mais velho olhou para mim, pensativo, e disse: 'Obrigado'. Desatámo-nos a rir. Obrigado...? Mas obrigado porquê?. Com um gesto largo de mão mostrou o prato e a comida disponível e disse: 'Por isto tudo...'. Meu lindo menino. Fiz-lhe uma festa. No fundo, senti-me agradecida por ele reconhecer e agradecer a comida que eu tinha preparado; e nem é pela comida, claro, mas pela motivação que sinto quando estou a cozinhar para eles e que talvez ele, ao escolher, com entusiasmo e apetite devorador, o que pôr no prato, tenha pressentido o prazer com que a sua Tá tinha conficcionado tudo aquilo.
De tarde, enquanto andavam entretidos nas suas brincadeiras e labutas e os crescidos também, ainda consegui ler um pouco: o último de Eduardo Lourenço sobre pintura. Gosto de ler sobre pintura. E agora, antes de abrir o blog estive a ler a entrevista de Maria Teresa Horta no Expresso online.
Já fez tudo o que tinha para fazer?
Não. Estou a fazer outro livro neste momento. Escrevo todos os dias três a quatro poemas. Acordo de noite com a poesia, e tenho de me levantar e escrever para não a perder, mas depois já não consigo adormecer. No dia seguinte, as frases ficam em cima das frases, versos e versos, já não me entendo. Escrevo no colo, os poemas andam aqui pela casa. Não uso mesa, máquina, computador... Quando os perco, entro em perfeita loucura. É como se me tirassem um pedaço, um pedaço do coração, e já não respiro. Fica tudo aterrado cá em casa. Fico doida. É como se fosse o poema mais maravilhoso que já escrevi e mais nenhum poeta o teria escrito. Procuro debaixo das coisas, viro tudo... Quando o encontro, pronto, já não ligo mais. Isto é essencial na minha vida, esta é a minha vida, mas levanto-me cedo, cozinho, lavo, engomo...
Se eu tiver que referir um escritor português vivo é nela que penso em primeiro lugar. Gosto muito da sua poesia. Devia ganhar o prémio Camões. E o Nobel. Há nela uma invulgar força poética, um domínio superlativo da arte de entretecer palavras seguindo uma linha melódica -- e uma história (nem que seja apenas a história da sua extraordinária paixão pelo marido, o Luís de quem ela fala sempre com um inquebrantável amor).
Gostava que a Maria Teresa Horta escrevesse um livro de poemas sobre a Paula Rego e gostava que a Paula Rego pintasse uma série de quadros sobre a Dama e o Unicórnio ou sobre as Anunciações. Penso que são ambas figuras maiores da arte em Portugal. Não vejo artistas-homens vivos que ombreiem com elas.
À tarde, a minha filha disse-me, enquanto apanhava banhos de sol e eu lado os apanhava também, e enquanto lia uma revista que, a propósito daquilo do bigode do Dali estar impecável, o pénis do Napoleão parecia um pénis de um pin y pon. Fui agora ver ao google e aparecem coisas do além sobre o tema como que o dito orgão apareceu muitos anos mais tarde, creio que pelos anos 70 do século passado, num leilão e que parecia um pequeno cavalo marinho meio encarquilhado, coisa para menos de 3 cm.
Mas contou também (porque leu) que o Farinelli afinal era uma mulher, castrato coisa nenhuma. Ora que o pénis do Napoleão fosse um apêndice atrofiado não me surpreende por aí além mas que o Farinelli, afinal, fosse uma mulher, isso já me espanta já que não tenho ideia de tal ter ouvido dizer. Agora pesquisei (pesquisa pouco aturada, confesso) e não vejo referência a tal coisa. Alguém sonhou com a genitália Farinellica e lá vai disto: artigo de revista com ele.
Tirando isso.
Este domingo espera-me mais um dia de trabalho, de limpezas, dentro e fora de casa, coisa que farei de gosto. O meu marido continua a embrenhar-se no mato. Tremo de vê-lo avançar armado de catanas e podões quando sei que o seu foco é limpar o terreno e ponto final e que, para ele, um pé de alecrim ou de rosmaninho é mato e tudo o que eu disser em contrário é música celestial que lhe entra por um e sai pelo outro. Mas não posso andar atrás dele, a vigiá-lo dos seus ímpetos de vandalismo contra a natureza, pois tenho a minha agenda mais do que preenchida. Entrego pr'a Deus a vigilância sobre ele, impedindo-o de devastar ervas aromáticas, flores campestres e arbustos inofensicos.
De tarde, se tiver tempo, quem sabe não me ponha a pintar. Mas os domingos são dias de hiperactidade com visitas familiares, trabalhos extra e sei lá que mais. Por isso, dará para o que der. Embora, eu deseje que, no meio de tudo, ainda me dê para estar tranquilamente, nem que por breves instantes, à sombra do pinheiro, aspirando este ar tão limpo e tão perfumado, os pés sobre a caruma, sem pensar em nada, apenas ouvindo os pássaros, sentindo a suave aragem. Existindo como um simples animal.
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A todos vós, meus Caros Leitores, desejo um belo dia de domingo.
Tenho aqui ao meu lado três livros. Volta e meia abro um deles ao acaso, leio. Não é meada de que tenha que guardar a ponta do fio. Onde eu abra, está bom de ler.
Com jornais, não é bem isso mas quase. Em papel, desabituei-me de os ler. Mesmo na empresa, em que se assinavam uns poucos, acho que desistiram. Eu, pelo menos, deixei de os ver por lá. Na net, abro, espreito, sigo para outro. Mas, quando os lia em papel, lia do fim para o princípio. Em revistas, a mesma coisa. Não sei dizer porquê mas é assim. No outro dia, estava a ver a minha menininha linda a fazer exercícios num livro que lhe dei e que era qualquer coisa como 'desenvolve o teu QI'. É que ela adora fazer estas coisas, descobrir a sequência, a lógica, a peça que falta, a que está deslocada no contexto, coisas assim. O curioso é que, em cada página, fazia os exercícios de baixo para cima.
Quando eu, mal fiz dezassete anos, fui viver longe dos meus pais, almoçava e jantava onde calhava, em especial nas cantinas universitárias. Sou de boa boca e onde os outros protestavam veementemente, comia eu de gosto tudo o que vinha parar ao prato. Contudo, durante todo esse tempo eu estava desejando chegar a casa para comer o meu petisco de eleição: pescadinha fresca, daquelas de anzol, marmota (acho eu que lhe chamam), com batatas cozidas, brócolos ou feijão verde e ovo cozido. Pois bem, se perguntarmos à minha lovely menininha qual a sua comida preferida dirá sem pestanejar: 'peixe cozido com batatas, brócolos e ovo cozido'. Nas coisas mais incríveis, mostra bem que herdou alguns dos meus peculiares genes.
Bem. Seguindo.
Eu a ler cada vez mais sou assim como vos conto. Páginas soltas, salteadas. Os livros que aqui tenho agora são Caminhos e Destinos, a memória de outros II, de Marcello Duarte Mathias; O homem fatal de Nelson Rodrigues e, ainda, a Poesis da Maria Teresa Horta. Memórias, apontamentos, crónicas soltas, poesia.
Cada vez me sinto mais afastada da leitura aturada. Nunca na vida poderei discutir uma obra com quem quer que seja pois nunca na vida seria capaz de me pôr a ler, página por página, fazendo investigação séria para estudar influências ou apurar referências implícitas, criando anotações, ou, se caso disso, procurando o texto na língua original. Perceber a geneologia, a genética da escrita ou a gramática, o corte e costura havidos antes do autor ali chegar são matérias que não me interessam.
Talvez eu tenha sido pássaro quando alguns dos meus actuais átomos por aí andavam, antes de se terem juntado e formado esta que aqui vos escreve. É que o que me cai bem é o vol d'oiseau, o saltitar de ramo em ramo, página aqui, página ali, o descer à terra para picar isto ou aquilo ou olhar ao longe e logo voltar a voar, outro livro, outros horizontes.
Admiro aqueles que se entregam a um livro como se estivessem numa missão de vida, meses a fio, horas e horas, mergulhados num poema, num texto -- abdicando de viver. Só por existirem missionários assim é que, depois, posso pegar em parte dos livros que leio. Contudo, prefiro os livros que apresentam trabalho limpo. Não gosto de ler textos sarapintados com números de chamada, com textozinhos pequenos a comentar isto ou aquilo. Não gosto. Sei que é material de estudo mas, para mim, é gossip, é fofoca literária, é ruído, é poluição. Se gosto de ler um texto, quero tê-lo imaculado, do produtor ao consumidor, nada de falatório miúdo na esquina da página. Quero lê-lo como se fosse a primeira leitora. A única, até.
E, cada vez mais, gosto mesmo é de ler texto escrito ao correr da pena, escrita despojada, lembrança, pensamento, carta, quase como se fosse coisa de nada. Mas coisa escorreita, elegante, com riqueza de substrato, gramaticalmente a corresponder à melodia das palavras. E tem que vir com sangue na guelra. E qualquer coisa ali tem que surpreender: ou a beleza da sequência ou o inusitado da ideia.
E depois a poesia. O sopro, a carícia, o lamento, o rasgão, o murmúrio o desejo. Leio poemas em blogs, leio nas páginas que abro ao acaso. A forma mais genuína e pura de dizer.