Mostrar mensagens com a etiqueta Pedro Abrunhosa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Pedro Abrunhosa. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, abril 19, 2021

In heaven a varrer e a carregar móveis.
Na praia a ver beldades em sessões fotográficas e a ver o mar.
Em casa, feliz da vida, a começar a desconfinar.

 


No sábado estivemos in heaven. Há quanto tempo... O campo está verde, lindo, lindo, o rosmaninho todo florido, há insectos e passarinhos, há perfumes no ar, há silêncio, há paz. É o meu chão, o meu ar, o meu céu.

As duas roçadoras, a mais antiga e a mais recente, estão avariadas. Não há como cortar o mato. O meu marido foi pôr as duas numa pequena oficina na vila mais próxima. Disseram que durante a semana ligam a informar se conseguem arranjá-las. A ver se sim. Sem se ter podido mudar de concelho e agora com as máquinas incapazes, está complicado cumprir o prazo para limpar o terreno.

Andei por lá, fotografei tudo, os verdes, as pequenas flores, as árvores, as pedras, as saudades que tinha. 

Já sei que, quando o meu marido se apanhar com uma roçadora nas mãos, vou tremer: por ele vai tudo à frente. Não é especialmente sensível a florzinhas ou a distinguir vulgares ervas daninhas de plantas aromáticas. Depois já não vê muito bem. Ele acha que só não vê bem ao perto mas eu tenho algumas dúvidas. Pior quando põe aqueles óculos de plástico de protecção. A tentação dele é despachar, ir tudo a eito. E eu fico em pânico. O que eu gostava mesmo é que ele andasse com o podão a cortar, à mão, tojo e silvas, poupando tudo o resto. Diz que sou maluca, diz que, se é isso que quero, vá eu para o meio do tojo e das silvas cortar pezinho a pezinho. É um tema que nos divide desde os primórdios.

Quanto à casa, a ver se conseguimos que coincidam no espaço e no tempo nós e as pessoas que gostaríamos que lá fossem ver os arranjos que queremos fazer para fazerem um orçamento e para nos dizerem quando poderiam começar. Olho para a casa e parece que já a vejo como eu gostaria que ficasse. Na zona mais antiga da casa, a zona central, os tectos e o chão são de madeira e os varandins das mezzanines também. Tenho vontade de -- com excepção do chão, que gosto de ver em soalho -- pintar tudo de branco. As janelas dessa zona são de madeira e vidro simples. A ver se as mudamos para vidro duplo e se calhar tudo em branco. Os aros dos vidros são bonitos em madeira mas requerem muita manutenção e, em termos de isolamento térmico, são fracos. E toda a casa precisa de ser pintada. E acho que é desta que vou ter coragem para fazer aquilo que tenho vontade de fazer desde que aquela passou a ser a nossa casa de campo. Já o contei: a casa, pelo que é, é uma casa rústica e as paredes são rugosas. Não sei se é tinta de areia, se tem outro nome. Ora eu prefiro paredes lisas. Deve ter que ser tudo lixado ou estucado, não sei. Deve ser demorado e uma sujeira pegada pela casa, só poeira. Mas alguma vez vai ter que ser. Não posso ver as teias de aranha entranhadas naquelas rugosidades. De cada vez que lá chego tenho que fazer um esforço para me abstrair, senão passava o pouco tempo de que disponho, a catar ínfimos fios por entre o arenoso da parede. Se vou com uma vassoura, mesmo que envolta num pano, ou consigo a leveza de gestos que as arranque, ou o que acontece é que as teias ainda mais se entranham. Só de pinça se conseguiria. Portanto, tem que haver outra solução.

Enfim. Andei a varrer cá fora: folhas, folhas, folhas. Se há coisa de que gosto é de varrer. Tenho uma vassoura daquelas grandes, pesadas, de 'pelo' de arame. A pá também é de metal, de pé alto. E ando com um balde grandão com rodas. Encho-o e vou vazá-lo nos canteiros mais longe. 

Também andámos a apanhar nêsperas. As nespereiras estão carregadinhas. Os frutinhos amarelinhos não estão ainda a saber a mel mas já se comem muito bem. 

E outra coisa: nesta casa, esta onde estou agora, como já o referi, os móveis do apartamento encaixaram como um puzzle perfeito. Misteriosamente, tudo parece ter sido feito à medida desta casa. Porém sempre houve uma zona da casa em que a coisa não convenceu: é a entrada principal. Há uma espécie de curto corredor que vai dar a um pequeno hall de onde partem mais dois corredores. Embora largo, por ser curto, nunca se percebeu bem o que haveria de ali ficar. Pusemos um móvel de meia altura, com três prateleiras e uma gaveta em baixo. Mas parecia um pouco insignificante ali. Uma aguarela por cima, uns bibelots simples. Comecei por lhe arranjar um banco de veludo claro e pés dourados para pôr ao lado, para compor o espaço e porque um banquinho na entrada dá sempre jeito.

Mas, in heaven, na sala de jantar, tínhamos um móvel bonito em nogueira, com pés altos, três gavetas e duas portas. Ali onde estava não achava que estivesse muito bem e ocorreu-me que onde estaria mesmo bem seria aqui na entrada. 

Portanto, lá o conseguimos levar, em cima de um tapete, até ao carro. Pesado, pesado, pesado. Madeira maciça, pesadérrima. Mas o pior foi conseguir enfiá-lo no carro. Rebatemos os bancos e lá conseguimos.

À vinda fomos a casa da minha mãe. Aproveitei para tratar do irs dela e para tirar dúvidas no tablet. Fartou-se de insistir para eu não comer tantos frutos secos, para não comer tanta fruta, diz que tenho que perder algum peso. Também acho. Ela não tem um grama a mais e acha que eu deveria seguir-lhe o exemplo. Diz: tens sempre fome, desde pequena que és assim, sempre com vontade de comer. Confirmo. Digo-lhe que é da menopausa, que alarguei, que engordei. Ela diz que com ela foi a mesma coisa, também alargou, os casacos deixaram de lhe servir. Mas diz que depois normalizou. Espero que comigo seja a mesma coisa. Nem me peso para não ter desgostos. Imagino que devo estar para aí com uns sessenta e cinco quilos, senão mais. Uma desgraça. Abaixo dos sessenta já não devo ir. Tantos anos nos cinquenta e cinco, toda delgadinha, e agora este disparate. Mas como é que arranjo disposição para uma dieta das valentes? Gaita.

Quando chegámos aqui a casa, já era de noite. Manobra inversa com o móvel. Pior mesmo foi conseguirmos subir os degraus até à porta. Um pesadelo. Mas conseguimos. Um dia destes é provável que me apareçam dores nas costas ou nas pernas. Depois foi preciso trazer o móvel que lá estava aqui para esta sala onde estou. A cómoda pequena com tampo de mármore da Arrábida, que estava com a televisão em cima, foi para o lado do sofá grande. A televisão agora está em cima do móvel que estava na entrada. Ficou tudo a fazer sentido.

Na entrada, o quadro que estava em cima do móvel teve que ser subido e eu já temia o pior, que ele se recusasse a ir buscar o berbequim. Afinal, tudo se resolveu, encurtando o arame. Portanto, embora tarde e más horas, tudo ficou pronto.

Contudo, não estou especialmente convencida. Agora parece-me um bocado grande demais. Mas não digo nada para não despertar a fúria dos deuses.

Este domingo à tarde, fomos ter com a minha filha e com os meninos à praia. Na primeira, tivemos que dar meia volta: carros, carros, carros. Não havia onde estacionar. Muita gente. Fomos a outra. 

Uma belíssima tarde de praia. Os meninos tomaram um belo banho. Muito bom. A praia quase cheia. Zero covid. E digo-o sem sombra de censura. Ao ar livre e desde que com algum distanciamento não creio que haja problema. Sempre desejei Abril. Penso que com os mais velhos vacinados, com vida ao ar livre e com algum cuidado, poderemos voltar a estar uns com os outros.

Perto de nós, uma mulher bonita, alta, magra, elegante. A minha filha chamou-me a atenção: era uma conhecida actriz de telenovelas. Não a fazia tão alta. Brindou-nos com uma inspirada sessão de fotografias. Fez poses de toda a espécie e feitio, sorriu e espevitou a perna, esticou o braço, pôs-se contra o mar, contra a luz, a cabeça para a frente, a cabeça para trás. Não contente com isso, fez selfies atrás de selfies. Passado um bocado a minha filha confirmou: as fotografias já estavam nas suas páginas das redes sociais. Penso que, neste caso, também se pode usar aquilo do 'novo normal'. O culto do 'eu. Diz a minha filha que não é só isso, é que também ganham dinheiro com aquilo. Basta que sejam pessoas conhecidas e que façam publicidade ao que vestem, calçam, que produtos usam, onde compram.

A poucos metros, duas outras, com carnaduras mais generosas, estavam na mesma: uma, deitada ou sentada na areia, fazia poses, esticava a perna, esticava o braço, fazia trejeitos e habilidades; a outra, de pé, fazia a reportagem, orientava a animada diva. 

Toda a gente se sente uma vedette, uma star, alguém com direito a toda a fama do mundo. Não é preciso ser-se conhecido, bonito, elegante, culto, inteligente, sabedor de alguma coisa: não senhor, todo o cão e gato, desde que haja uma máquina fotográfica por perto, se sente no direito de se exibir ao mundo. 

E, se calhar, é hábito que veio para ficar e, se calhar, quem, como eu, gosta de fotografar o mar, as flores, os outros e os seus hábitos, só revela não estar alinhada com os astros. Mas é isso aí: sou vintage. Acho que são os outros têm graça, não eu. 

Fartei-me de fotografar, claro está. E adoraria mostrá-las inteiras, a actriz, os que a fotografavam, as outras duas. Mas não, só uns relances. 

Inteiras, mas é porque estavam de costas, só as duas beldades que embelezaram as cores e a bravura do mar com a sua graciosidade.

Depois da praia viemos todos cá para casa, mais concretamente para o jardim. Arranjei-lhes um lanchinho. Enquanto eles estiveram a comer, eu estive por perto e com máscara. Tranquilo. O meu marido, nestas ocasiões, anda sempre a vigiar-me. Acha que não sou cuidadosa. Mas gosto tanto de estar com eles que volta e meia até me esqueço dos cuidados a ter. 

Varreram o jardim, apanharam folhas, andaram de balouço, riram, brincaram às lutas, espantaram a rola que se acolhe dentro da buganvília.

Contei-lhes que estou com a ideia de colocar no jardim a gaiola grande que está na garagem. Mas para a ter aberta, com água e sementes para os pássaros irem servir-se. Uma coisa tipo bar aberto. Eles acharam boa ideia. O meu marido caladinho. Perguntei-lhe o que achava. Disse: desde que depois sejas tu a limpá-la.

Não sei porque se há-de sujar: os pássaros entrarão, comerão e beberão e voltarão a sair. Não vão lá ficar a fazer as necessidades. É o que me parece.

E é isto. Estou ferrada de sono. Estou assim desde que vim da praia. O meu marido também estava assim. Disse: é do ar do mar. Duvido. 

Ainda por cima, isto de escolher as fotografias, reduzir-lhes a resolução, colocá-las aqui, demora. Já meio a dormir e ainda nisto. O que me preocupa mais nem é o sono, é o receio de que isto vá cheio de gralhas e já não ter pachorra para dar uma vista de olhos. Gaita. Nem consigo agradecer os comentários nem dar uma vista de olhos a ver se isto não vai desvirgulado, despassarado.

[A chuvada do outro dia deixou o vidro em bom estado, deixou, deixou.... Só agora, ao ver a fotografia, reparei nisso. Ainda hesitei em colocá-la aqui. Mas até acho que o fundo, assim, tal como está, ainda valoriza mais as minhas perfumadas rosas mutantes. Não são tão bonitas?]

______________________________________

Desejo-vos uma boa semana. 

Saúde. Alegria. Força.

sexta-feira, novembro 08, 2019

Sou um 0 (zero) na escala de Kinsey





A sério. É aquilo de que tenho falado. Tanta tecnologia, tanto automatismo, tanta porcaria e, afinal, o trabalho parece que cresce pelos lados. Não dá para perceber. Parece que atraio, caraças. O trabalho cai-me em cima. No carro, vinha a falar com a minha mãe e bocejei e ela disse que se percebia pela minha voz que eu estava cansada. E estava. De tantas horas de trabalho, de tanto trânsito, de tantos anos disto.

E, cá em casa, estive a trabalhar até agora. Até agora.

Bem, mas não estou aqui para continuar agarrada aos temas que se me colaram durante todo o santo dia, de tal forma que ainda me está a custar largar-me deles.

Ainda por cima ando com um outro tema encravado nos dedos. Já no outro dia o aflorei (quando falei da Mona Lisa que, na volta, tinha era um baita pirilau debaixo da saia) mas depois derivei, coisa que me acontece muito quando os deixo à rédea solta (e, nisto da rédea solta, tanto posso estar a referir-me aos dedos como aos temas, não aos pirilaus). Li um artigo sobre o amor na arte e fiquei com vontade de falar nisso. Hoje, ao vir para casa, noite bem noite, uma música boa na Antena 2, vinha a pensar em dar-lhe continuidade: pintores que puseram as suas amantes nas telas, algumas delas casadas com quem lhes tinha encomendado as obras, ou mensagens encriptadas que só eles viam, poetas que cantaram os seus grandes amores ou desgostos, compositores que escondiam segredos onde só eles sabiam. Pano para muitas mangas. Mas, a esta hora e depois de tanta tema desengraçado desfiado ao longo de tantas horas, como começar agora uma coisa dessas que, parecendo que não, requer alguma atenção? Não dá.

Para me enquadrar no mundo, ainda aqui dei uma volta breve pelas notícias e entristeci-me com umas, fiquei indiferente com a maioria, arreliei-me com algumas. Mas não é perto da uma da manhã que vou começar com resenhas, até porque já não me sobra tento para ter algum cuidado e não faltar ao rigor. Impossível.

Portanto, deixei-me de coisas e aterrei na platitude. Ou seja, já andei à procura daqueles casaquinhos de tricot que no outro da irrompiam por todo o lado, quando andava a navegar noutros mares, pois a minha mãe disse que anda sem nenhum trabalho em mãos e eu que visse se alguém quer alguma coisa. Ela disse: Vê lá com elas. Ainda só sondei a minha filha que disse que os miúdos já não querem coisas de malha mas, para ela, talvez um casaquinho ou um vestido. Vestidos não estou a ver mas um daqueles casaquinhos bonitos que, quais cuquinhos nos relógios de cuco, no outro dia me saltavam aqui da toca a toda a hora, talvez. E tanto cirandei que me apareceu finalmente qualquer coisa, não sei se era o mesmo site do outro dia, mas talvez. Já mandei à minha filha para ver se algum lhe parece bonito para o encomendar à avó.

E agora, já a assumir que hoje não dá para escrever nada, fui-me outras vezes aos quizzes. Se estivesse in heaven ia aos medronhos. Ou fotografar cogumelos, Ou, se fosse verão, ia às amoras. Assim, aqui, de noite, na sala, não tenho muito por onde ir em busca. Podia ir em busca de palavras, claro. Podia, por exemplo escrever:
sumo rubro das amoras a escorrer nos lábios, figos doces a derreterem-se na boca, uma manta macia sobre os ombros, uma sombra vertical num muro branco, o som das árvores numa noite de ventania que quase parece o rugido do mar, anjos sem corpo nem nome, os mais desejados, olhares húmidos de amor, perfume de ervas do campo, um abraço apertado, umas mãos tranquilas, o canto de um pássaro chamando pela liberdade, o som do violoncelo, o riso, o sorriso, a lágrima, a palavra nunca dita.
Mas não sei se tem grande jeito pôr-me para aqui a desfolhar ideias que se querem esvoaçantes e não transformadas em letras num ecrã.

Portanto, fui-me mesmo a mais um quizz. Como o fiz meio distraída e sem saber bem de que se tratava, nem estava bem a perceber a lógica das perguntas.

Quando apareceu o resultado, Straight as an arrow, não percebi. Avancei para a explicação e quando vi que era um zero pensei: pronto, uma nulidade. Não sabia qual a escala e, a bem dizer, nem sabia bem o significado da dita escala. Entretanto, já fui instruir-me, na modalidade instrução a la minute. A escala vai de zero a seis. É esta, escala de Kinsey:


E o que me deu foi isto (nada que eu não estivesse fartinha de saber, mas é sempre bom a gente perceber que minimamente se conhece -- isto fazendo de conta que acredito que estes testes, mais do que duvidosos, têm qualquer substância)
You are a 0 on the Kinsey scale meaning that you are exclusively attracted to members of the opposite sex and have never had any sexual experiences or fantasies about the opposite gender. You prefer to stick solely with the opposite sex and are not likely to experience any bisexual or homosexual encounters in the future.
E é isto. E já fiz um outro, sobre qual a minha característica psicológica dominante mas, bolas, haja algum respeito pela vossa paciência, não vos maço mais com estas palermeiras.

Espera-me mais um dia cheio de cenas e isto deixa-me menos espaço na cabeça para dar largas ao que me apetece. Mas as coisas são o que são e esta é a minha vida e, para dizer a verdade, não tenho de que me queixar. No outro dia um colega dizia-me que tencionava ficar a trabalhar até depois da idade da reforma para 'ir buscar umas bonificações'. Eu disse-lhe que eu não, que a vida é curta e que tenho uma nova vida para começar quando me vir livre desta vida de trabalho que levo há séculos. Ele ficou a olhar para mim muito sério, certamente intrigado com a vida nova que quero começar. E eu tive vontade de dizer um disparate, com ar muito sério, para o deixar a pensar que estou maluca. Por exemplo: vida de árbitro de futebol feminino. Ou vida de bailarina de dança clássica. Ou vida de guarda nacional republicana. Mas não disse nada. E ele também não. Quando contei ao meu marido, ele disse: no caso dele, não quer ir para casa para não ter que aturar a mulher. Consta que é uma coisa do além: ciumenta, chata, faladora, possessiva e eu já comentei isto em casa. E eu pensei que devia ser mesmo isso e não as bonificações.

Pronto. Calo-me já, não estou a dizer coisa com coisa. Vou pregar para outra freguesia.


---------------------------------------------------------------------------------

Fotografias muito bonitas de Erika Astrid em Like a painting na Vogue italiana na companhia de Pedro Abrunhosa em dueto com Sandra de Sá em  'Eu não sei quem te perdeu'

-----------------------------------------------------------------------

E um dia feliz a todos.
Thanks God it's Friday.

sexta-feira, setembro 28, 2018

Os tigres dele




Na minha vida sempre houve tigres. Tão entrelaçada está a leitura com os outros hábitos dos meus dias que não sei verdadeiramente se o meu primeiro tigre foi o de uma gravura ou esse, já morto, cujo obstinado ir e vir pela jaula eu seguia, enfeitiçado, do outro lado das barras de ferro. Ao meu pai agradavam as enciclopédias; eu apreciava-as, tenho a certeza, pelas imagens de tigres que me ofereciam. Recordo agora os de Montaner e Simón (um branco tigre-da-sibéria e um tigre-de-bengala) e outro cuidadosamente desenhado, que saltava e no qual havia algo de rio. A esses tigres visuais acrescentaram-se os tigres feitos de palavras; a famosa fogueira de Blake ("tyger, tyger, burning bright") e a definição de Chesterton: "É um emblema de terrível elegância". 


Nenhuma outra cidade, que eu saiba, confina com um secreto arquipélago de verdes ilhas que se afastam e perdem nas duvidosas águas de um rio tão lento que a literatura pôde chamar-lhe imóvel. Numa delas, que nunca vi, matou-se Leopoldo Lugones, que terá sentido, talvez pela primeira vez na vida, que estava livre, enfim, do misterioso dever de procurar metáforas, adjectivos e verbos para todas as coisas do mundo.






..........................................

Na companhia de  Pedro Abrunhosa a interpretar Quem me leva os meus fantasmas, excertos de 'O meu último tigre' e 'As ilhas do Tigre'  in Atlas de Jorge Luis Borges numa tradução de Fernando Pinto do Amaral

No final Tom O'Bedlam diz "The Tyger" de William Blake. Obtive as fotografias de tigres no The Guardian.

quinta-feira, junho 15, 2017

Sou aquela que transgride o abismo da paixão





Todos os dias, por mera rotina, se pesava mas, também todos os dias, se esquecia de reparar no peso. Reparava, isso sim, que a magreza avançava mas isso estava longe de a preocupar. Era como se vivesse desligada dos assuntos normais, incluindo o da necessidade de se alimentar. Foi consumindo o que havia no frigorífico e na despensa, mas cada vez comia menos porque o organismo parecia precisar de cada vez menos alimento.

Era raro o dia em que não ouvia tocar à campainha mas nunca abria a porta ou, sequer, perguntava quem era. Se era de manhã, pensava que devia ser o carteiro, se era de tarde, pensava que devia ser distribuição de publicidade. Também o telefone tocava várias vezes mas apenas falava com a mãe. Eram sempre conversas breves mas a mãe não estranhou pois nunca a filha tinha tido tempo para cortesias ou carinhos. Um dia acordou a pensar que tinha que voltar a ligar para o trabalho e assim fez mas não prestou atenção às palavras preocupadas da secretária, nem atendeu aos seus conselhos. Limitou-se a dizer que tinha sucedido um imprevisto e que ia gozar férias antigas, ela que a avisasse quando os dias estivessem quase a acabar. E agradeceu e desligou. Parecia não conseguir suportar a sua vida de sempre.

Um dia resolveu esvaziar a estante onde guardava os discos e os cd's. Tudo espalhado pelo chão. Não se lembrava de ter comprado grande parte do que via. Nem sabia de que se tratava. Pensou que, se calhar, alguém que lá tinha morado os teria comprado. Pensou: a viver aqui durante muito tempo apenas um. Mas, depois desse, vários por lá tinham ficado algumas vezes. Talvez não vários mas alguns. Não tentou lembrar-se de todos. Economizava energias. Ou talvez tudo aquilo, ou quase, tivesse sido recebido como presente. Provavelmente não tinha tido tempo, sequer, para os ouvir uma única vez.

Um em especial parecia-lhe ali completamente deslocado, em contramão. Pô-lo a tocar. 

Depois encostou a cabeça à janela. E aos poucos foi escorregando até ficar deitada no chão, braços e pernas abertas, a olhar fixamente o tecto. E as lágrimas voltaram a correr.

Nessa noite, estava ela ainda nua, tocaram à campainha. O telefone também já tinha tocado várias vezes. Não prestou atenção. Depois ouviu bater com a mão e ouviu gritar o seu nome.

Continuou indiferente.

E, então, ouviu a porta a abrir-se. Estava ela sentada num banquinho baixo a ver fotografias e a tentar decifrar o significado de umas palavras escritas num papel 

Sou aquela que trangride
o abismo da paixão

Ora corpo que se entrega
ora escrita no seu voo

entre o fogo e a razão

quando ele se aproximou. Ela olhou-o sem curiosidade. Ele baixou-se, segurou-a pelos ombros, levantou-a. Perguntou-lhe como que com raiva: 'Mas o que é isto? O que se passa? Não atendes o telefone, não dizes nada, não respondes aos mails, não respondes quando tocam à campainha. Não te ocorre que nos preocupamos contigo? Estás doida ou quê? Ou doente? Que magreza é esta? O que é isto? O que se passa?'

Ela olhou-o nos olhos, indiferente.

Ele abraçou-a. Ela manteve-se como morta.

'Já foste ao médico? Aconteceu alguma coisa?', perguntou ele várias vezes.

Ela respondeu com uma voz que não parecia a sua. 'Não aconteceu nada. Apenas me apeteceu arrumar a casa'

Ele olhou em volta. A casa estava caótica. Livros, discos, molduras, papéis, objectos indistintos, tudo espalhado pelo chão.

'Tu não estás bem, Lu. Tens que ir ao médico. Veste-te, vou levar-te às urgências.'

Ela disse com uma voz muito tranquila: 'não. Estou bem'. 

'Mas aconteceu alguma coisa? Conta. O que foi? Alguma coisa deve ter sido', insistiu ele.

Então ela sentou-se, séria e formal como se não estivesse nua e desamparada, e falou com uma voz que parecia, de novo, a sua. 'Estiveram cá. Remexeram tudo. Levaram coisas, pastas, papéis, o portátil da empresa.' 

Ele sentou-se. 'A sério...? Também aqui? E não disseste nada? Falaste com o Manel?

Ela respondeu: 'Disseram que não podia falar contigo nem com ninguém. Deves saber disso. A ti devem ter-te dito o mesmo. Não sei o que estás aqui a fazer.'

A voz ansiosa, as mãos nervosas, ele estava mais velho: 'Mas com o Manel devias ter falado, é o teu advogado.' 

Fria, indiferente, ela: 'Não quero saber de nada. Nada faz sentido. Preciso de descansar. Olho para trás e nada faz sentido. De tudo o que vivi, não sobrou nada. Tudo se confunde, não consigo encontrar uma linha condutora, parece que foi tudo um equívoco.' 

Ele, cada vez mais preocupado: 'Tu tens que ter cuidado com o que dizes, tens que te tratar, não podes falar.'

Ela olhou-o longamente, sem emoção. Não reparou como ele ficava cada vez mais assustado. Depois disse-lhe: 'Já é tarde, vai-te embora antes que a tua mulher te faça uma daquelas cenas.'


Ele encolheu os ombros e tentou abraçá-la mas ela rejeitou-o. Fez o gesto de o acompanhar à porta. Depois, quando ele estava a dirigir-se para a saída, chamou-o: 'Olha, lembras-te de quando fui a Marrocos, as temperaturas tão altas, eu não queria ir, e tu quase impuseste que eu fosse, uma oportunidade de vida ou de morte, dizias...?'. Ele olhou-a, sem compreender. Ela continuou: 'Lembras-te de como me dizias que eu andava bonita? E eu dizia que não queria ir, que naquela altura não?'. 

Enquanto falava, segurava um leque rendilhado em azul turquesa. 'O primo do príncipe ofereceu-me este leque na segunda vez que foi ver-me ao hospital, estava tanto calor lá'.

Ele olhava-a sem perceber. 'Ao hospital? Mas que hospital?'.

'Resolveu-se por si. Eu não sabia o que fazer. Melhor para todos. Estava sem coragem para acabar e sem coragem para continuar. Aquele calor, a violência daquelas viagens e daquelas intermináveis negociações resolveram o assunto'

Ele estava encostado à parede: 'Nunca falaste nisso. Devias ter-me dito.'

'Para quê? E as negociações correram bem. Era o que te importava. Mas sabes o que percebo agora? Que, disso tudo, o que sobrou foi o leque. Até o prémio chorudo que recebi na altura se evaporou. Belos investimentos que fiz na minha vida...'.

Ele não disse nada. Deixou que ela o levasse até à porta. Iam em silêncio.

Ela não soube que, logo que chegou à rua, ele deitou a mão à cabeça, esfregando o cabelo, preocupado. Ela não soube que ele ia telefonar mas que logo se arrependeu. Ela não viu que ele era agora um homem acossado. Ela não viu que ele ia curvado, magro também. Ela não viu que, quando arrancou no carro, por uma vez ele ia devagar, como se não soubesse qual o seu destino.

_____________________________________________________________________________

[O poema que plantei no meio da prosa é, uma vez mais, da Maria Teresa Horta in Poesis]

________________________________

Este texto que acabei de escrever vem na continuação de Sem rasto
e continua em Um coração negro como a noite

___

sábado, novembro 21, 2015

De que serve ter o mapa se o fim está traçado, de que serve a terra à vista se o barco está parado, de que serve ter a chave se a porta está aberta, de que servem as palavras se a casa está deserta





Se puderes ensinar-me o caminho que me leve até a uma paisagem assim, serena, feita de luz e paz, eu vou. Se me ensinares a sair da torre de vidro onde me têm guardada, eu vou. Se me disseres como virar as costas a estes fantasmas que me cercam, eu vou.

Mas, enquanto eu não me libertar das mãos que se fecham em volta do meu peito, vai-me dizendo palavras suaves como a brisa que se desprende do rio, conta-me do algodão doce que se eleva da areia nas manhãs de vento, ensina-me poemas e toadas, fala-me de cítaras e de clavicórdios, mostra-me pinturas e vidros banhados por reflexos infinitos, leva-me pela mão até ao passado ou até ao futuro, conta-me histórias, olha-me como se o teu olhar viesse de um tempo em que eu era outra e tu também. 

Vou fechar os olhos. Vou esperar que a tua voz me conduza pela noite fora, que o teu sorriso desvende a minha timidez, que a tua presença me envolva. Coloca as tuas mãos sobre as minhas, coloca os teus lábios sobre os meus. Vou imaginar que me estás a levar pela mão, que me levas até onde a luz entra numa catedral imensa, vou sonhar que os cânticos descem como raios de luz das abóbadas infinitas. Amparar-me-ás, dir-me-ás que a estrada me espera, que eu me demore porque a estrada espera, porque tu esperas. E, juntos, deixaremos que o silêncio nos abençoe, nos purifique.


Fecho os olhos e demoro-me. Anjos, deuses, lembranças. Estão à nossa volta. Diz-me baixinho, como um segredo, como uma oração que eu imagine só para mim:

Vem como a gazela do deserto
obrigada a ziguezaguear em nervosa velocidade
atravessando os trilhos e voltando
com medo do ganido dos cães e do caçador e finalmente se decide
por uma veloz linha recta
com um relance ao lugar deixado

Sinto o ciciar das tuas palavras. Elas encerram um mistério. A tua pele encerra um mistério. A forma como me olhas encerra um mistério. A minha pele treme de inquietação. De onde te conheço? Da minha imaginação? És aquele que os meus dedos inventaram quando, nas noites silenciosas, escrevia palavras sem dono?

Não me respondas. Deixa-me viver com essa inquietação dentro de mim. Ela alimenta-me, ela faz-me companhia. Deixa-me desconhecer de onde te conheço.

Uma aragem branda recorda-me que quero partir. Mas não quero.

De olhos fechados, em segredo, digo-te: Quero que me leves. Mas não agora. Um dia. Dizes que me esperas mas logo te contradizes e pedes que te responda. Mas dizer-te o quê? Estas paredes brancas, este vidro frio, estes fantasmas que falam palavras vazias deixam-me sem vontade, cansada, tão cansada.

Mas tu pedes-me: Responde-me. Vens? Vens como a gazela do deserto?


Digo-te, então, como se uma outra voz falasse por mim -- e a voz que eu ouço é baixa, quase rouca, uma voz que vem da pedra, da terra. Falo e descubro os seios, quero que os vejas banhados de luz dourada, quero que sintas como debaixo deles bate o meu coração apaixonado:

Estás a salvo dentro da casa da amada
beijando-lhe as mãos, fazendo-lhe
a sincera proclamação do teu amor,
fazes tudo isto
tudo isto no interior da grande e preconcebida organização
da deusa de oiro.

Tu olhas-me. Não sabes o que digo e eu também não. Peço-te que não me perguntes porque as palavras que disse não são minhas, voaram de dentro de mim. Acredita em mim. Ou não. Desacredita como se eu fosse a outra que me habita. O meu coração está longe, lá onde os pássaros cantam em liberdade, lá onde as folhas têm mil cores e da terra se evolam mil perfumes. E tu dizes: vem, então.

Mas não posso. Não tenho o mapa da estrada e tu também não, não tenho a chave da casa e tu também não, não tenho o segredo dos teus olhos, não sei o que se esconde no fundo secreto do teu olhar nem sei para onde vai o barco que leva os teus sonhos.

Um dia vou, um dia dar-me-ás a mão e eu irei, irei levada pelo teu sorriso que entra sem vergonha no meu corpo, irei para longe dos fantasmas cinzentos que habitam a torre onde vivo aprisionada, irei contigo para onde me levares. Mas que nesse lugar haja um mar tranquilo como um espelho, árvores verdes e douradas como seda e lãs, montes macios e doces como mel e um silêncio longo e terno como a música que se desprende do meu e do teu coração.

___

Não ligues. Desculpa. Não sei o que digo. 
Pega nas minhas palavras e junta-as de outra forma: talvez, então, elas façam algum sentido.

________
  • O poema é a parte III de Pressa in 'Poemas de amor do antigo Egipto'.
  • As fotografias da capela de King’s College mostram as iluminações digitais feitas por Miguel Chevalier e as fotografias das paisagens de Seul são de Jaewoon U. (descobri-as no Bored Panda).
  • Lá em cima Maria Bethânia canta Quem me leva os meus Fantasmas de Pedro Abrunhosa.
...

sábado, dezembro 07, 2013

O que falta aos homens que não conseguem acertar-se com nenhuma mulher?






Depois de ontem ter acabado a minha história sobre a Leonor, ou seja, o meu pequeno Conto de Natal, hoje vou falar de um tema muito mais prático.

Porque é que alguns homens arranjam facilmente uma companheira e outros se vêem e desejam e parece que não acertam uma?



Era bom que eu soubesse a resposta pois, divulgando-a, os homens desafortunados que me lêem tinham logo aqui a solução para os seus problemas.

É que eu resposta não tenho: tenho é perguntas e uma ou outra teoria.

Em tempos tive um colega que parecia um bocado atrasado mental. Um bocado é favor. Parecia completamente atrasado mental. Raramente falava, mesmo se estava no meio de uma reunião em que se discutia assuntos que lhe diziam respeito. Era preciso picá-lo, insistir para que falasse. Então, atabalhoadamente, lá dizia umas coisas que ninguém percebia.

Corporalmente também era estranho, alto e meio gordo, todo curvado, aspecto ensimesmado, parecia enrolar-se sobre si próprio. E parecia que andava sempre com a mesma roupa, uma roupa incaracterística.

Ninguém lhe dava nada de especial para fazer porque ninguém sabia se ele era capaz de fazer alguma coisa de jeito. Limitava-se a fazer coisas básicas de cariz basicamente burocrático. Em suma: uma criatura estranha. Quando se cruzava comigo fazia um vago sorriso e um pequeno grunhido, o que eu interpretava como um cumprimento. Toda a gente se interrogava sobre aquele espécime e, sobretudo, ninguém percebia como teria ele conseguido tirar um curso superior.

Durante muito tempo supus que vivesse sozinho, talvez com alguns pais velhos. Quando o conheci deveria ele ter uns 40 ou quarenta e tal anos mas até nisso a coisa era indefinida, ninguém sabia ao certo que idade teria ele.

Alguns anos depois soube, para meu espanto, que tinha enviuvado. É que nunca me passaria pela cabeça que fosse casado. Como poderia uma coisa assim arranjar mulher? Afinal era casado e com um filho adolescente.

Na altura, disseram-me: vai ser o fim dele, da maneira que ele é, vai acabar por morrer sozinho, fechado em casa. Achei que, de facto, só podia ser esse o triste fim dele, coitado.

Na altura já eu trabalhava noutro sítio. Perguntei, Mas continua na mesma? Sem dar uma para a caixa? Sem abrir a boca? Sempre cabisbaixo, incapaz de levantar os olhos do chão? Responderam-me, Ah, sabe lá, muito pior, um bicho, coitado, aquilo só pode ser doença.

E pronto, esqueci-me dele.

Qual não é o meu espanto quando no outro dia uma colega me dizia que a filha se tinha casado e Imagine com quem? Não fazia ideia. Diz-me ela, ar de espanto, Com o filho daquele sujeito estranho que trabalhava lá, aquele que parecia atrasado mental, lembra-se?

Achei engraçado, o mundo é pequeno. E diz-me ela, Mas sabe uma coisa? Voltou a casar.

Digo-vos: fiquei de boca aberta. Voltou a casar?! Mas como? Onde desencanta ele as mulheres? Como as conquista? Falará com elas? E sobre o resto nem ouso perguntar até porque não consigo imaginar. Mas, enfim, tenho que reconhecer: alguns dotes deve ele ter.

Essa minha colega dizia do agora compadre, É de facto um mistério. Mas está um bocado melhor.

Perguntei, E a mulher como é? Normal?

Ela riu-se, Normal. Simpática. Trata-o com carinho. 

Continuei de boca aberta.

*

Bom, mas não é caso único. Um amigo meu, e nem vou entrar em grandes detalhes porque sou mesmo amiga dele, é um bocado mal jeitoso, fisicamente muito curioso até. Tem a favor ser boa pessoa, inteligente e muito divertido. Não tem irmãos e tem uma mãe já de bastante idade. A mulher morreu aqui há uns dois anos e ele teve um grande desgosto. Acompanhei o calvário da doença dela e presenciei o sofrimento dele. Já era a segunda mulher. Não sei o que aconteceu à primeira. Por esta que morreu sei eu que ele era apaixonado, companheiros de hobbies, companheiros de vida. Uns tempos depois soubemos que já andava de namoro. E que depois já era uma outra. Pois bem: já voltou a casar, feliz e inocente como um passarinho de primeiras núpcias. O terceiro casamento.

Um outro amigo nosso interrogava-se hoje: mas onde conhece ele aquele mulherame todo?!? 

Não sei, não faço ideia. Mas mais do que isso, intriga-me como é que consegue desencantar mulheres  disponíveis e depois acertar-se com elas, assim, com tanta facilidade?

É um enigma.
*

E depois há homens interessantes, bem enturmados (e que, portanto, devem ter facilidade em conhecer e conquistar muitas mulheres) e que, vá lá saber-se porquê, não conseguem acertar com um relacionamento bem sucedido. Não sei se será porque são excessivamente exigentes, se será porque não conseguem entregar-se, ou porque não têm mesmo jeito para a vida a dois. Não sei mesmo.

Não sei mas, na minha ignorância, permito-me adiantar  algumas explicações e vou já dizendo que sou uma pessoa simples, nada de metafísicas, nada de altas psicologias. Aliás, dou as explicações no pressuposto de que eu, sobre esta temática, penso como a maioria das mulheres, as mulheres comuns. Ou seja, admito que haja mulheres de tipo alternativo que pensem de outra maneira - só que, sobre essas, não sei pronunciar-me. Eu aqui posiciono-me no mainstream.

Então, acho eu que a explicação pode residir no seguinte: as mulheres gostam de homens que tenham algum sentido prático, que seja visível (a olho nu) se são bons de pegada (‘pegada’ do verbo pegar, na acepção brasileira do termo: a forma como um homem agarra numa mulher e faz o que tem a fazer), se darão bons maridos, isto é, se as acompanharão nas compras se for caso disso, que colocarão uma prateleira se for necessário, que montarão um candeeiro, que ajudarão a mudar a posição dos móveis se a decoração o exigir, que darão bons genros (e, claro, bons pais de família, se a idade e a vontade da mulher ainda for essa), que as farão rir e as farão sentir-se desejadas, etc.

Digo eu: um homem pode ser sofisticado na argumentação, pode ter um maravilhoso sentido poético, pode conhecer todos os filmes, livros, personagens, autores e o escambau  mas isso será sempre apenas um plus, uma mais valia, um add on. Mas se o resto, o lado prático e essencial da coisa, falhar, então, meus caros, esqueçam.

Qual a mulher que quer ter um poeta ou um sábio ali num canto da sala e que não tenha nenhuma outra serventia? Uma brilhante cabecinha pensadora cheia de ideias encasquetadas, de maniazinhas, de inseguranças, e incapaz de ir sozinho ao supermercado ou de usar um berbequim...? Serve para quê, isso?

Mas, enfim, isto sou eu a falar.

><><><><><


A música lá em cima é Voamos em Contramão de e por Pedro Abrunhosa.

As imagens foram encontradas no google e não consegui idenficar a proveniência original.

Os dois exemplos que dei não encaixam bem na minha teoria? Não sei. As mulheres que os escolheram se calhar viram neles o que eu não vi.


><><><><><

Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado muito feliz.

sábado, março 17, 2012

A arte da sedução desde os tempos de Madame Pompadour até aos dias de hoje - breves apontamentos para um dia desenvolver


Madame de Pompadour, maitresse en titre, no tempo dos grandes horizontales 

Música, por favor

Pedro Abrunhosa - Viagens
(a parte final em inglês era escusada mas, enfim, não arranjei uma versão sem essa cauda desnecessária.)

: : : :

Volto ao tema da sedução.

A vida pode ser cheia de erudição, cheia de sucessos profissionais, uma agenda preenchida com contactos dos mais úteis que há, belos ordenados, contas bancárias recheadas, grandes casas, futuro garantido e o escambau e, no entanto, apenas será recompensadora se tiver o tempero dos afectos.

E pode até ter também o tempero dos afectos mas faltar-lhe o sal e o picante e, por isso, ser uma boa vidinha mas morna, chata, um tédio.

Assumindo, por facilidade de exposição, que a vida já tem a segurança, o conforto e a base de afectos que confere estabilidade e qualidade à vida, falemos, portanto, do que dá salero à vida, do que a torna sexy, do que lhe dá graça.

Sedução, inteligência, sex appeal, enlevo, charme, malícia, humor, tudo coisas essenciais a uma vida bem vivida.

A questão estará em perceber-se se sedução é um conceito abstracto que abrange os restantes ou se são coisas distintas e se é coisa que se aprende ou, se não nasceu com ela, nada a fazer.

Procuro definições. Priberan: Atractivo irresistível; tentação; Wikipedia: Sedução é a capacidade de encantar o outro com fins de atingir determinados objectivos. 

Ou será apenas 'Gostar de dar e receber' como ontem vos contei?

A minha opinião é que sedução é o dom natural de atrair o interesse do outro de forma irresistível, sendo, para tal, normalmente usadas ‘ferramentas’ tais como a inteligência, o sex appeal, o enlevo, o charme, a malícia, o humor.

No acto de seduzir tem que estar subentendido, de forma inteligente, que por detrás das meias palavras, de uma possível malícia elegante, escondida sob uma capa de fino humor, há uma promessa implícita de prazeres múltiplos e variados, proibidos de preferência. Ou, mesmo que não seja tudo isto, tem que se imaginar que, para além do que está à vista, ou do que é dito, haverá mais, tem que apetecer descobrir, perseguir, sondar, arriscar - porque se antevê que valerá a pena.

E não tem que ver directamente com o aspecto físico embora pessoalmente ache que tem que haver uma qualquer química, seja lá o que isso for.

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre - um amor multifacetado, incomum, aberto, diríamos  hoje
Ele, um incorrigível sedutor à volta de quem as mulheres borboleteavam

Sartre ou Picasso por exemplo eram homens baixinhos, não devendo muito à beleza, (Sartre, então, era mesmo fisicamente pouco dotado) e, no entanto, que fascínio exerciam nas mulheres. No primeiro, seriam as fascinantes palavras, no segundo, o fascinante olhar. As mulheres queriam mais, queriam perceber que promessas se esconderiam por detrás disso, queriam estar por perto para não perderem pitada que fosse.

Transcrevo do livro que ontem referi ('Seduction, a celebration of sensual style') a citação de Jean Baudrillard: 'To seduce is to render weak'. Leio também que Jane Billinghurst dizia que seduzir era criar 'an expectation of delight'. 

Aprende-se isto? Não sei. Mas talvez se possa tentar, exercitar.

Em minha opinião, há factores essenciais para o exercício da sedução: a auto-segurança e a autoestima são dois deles. 

Gabriela Canavilhas: música, ministra e, imagino eu, uma sedutora em lato sensu


Quando uma mulher olha sabendo que há desejo implícito de parte a parte, deve estar segura de que conseguirá manter o olhar até onde quiser, interrompendo-o ou levando-o até a um possível desfecho. E tem que estar confiante de que o homem a está a olhar pelo puro prazer do olhar e não para ver se é uma borbulha que tem disfarçada por creme, junto ao nariz. Inseguranças desse tipo anulam qualquer acto de sedução, por mais simples que seja. A mulher deve estar-se nas tintas para os pormenores, deve estar segura de que, se desperta interesse, é por si mesma e que não é um qualquer insignificante pormenor que anulará isso.

E a mulher deve também saber que o que estimula o interesse é a vontade da descoberta e da conquista. Se tiver comportamentos demasiado óbvios, vulgares, se mostrar (ou disser ou o que for) tudo às primeiras, não havendo já nada a descobrir numa próxima, provavelmente não haverá próxima.

Marília Gabriela, inteligente, vibrante de vitalidade e argúcia, bem humorada,
 uma sedutora com provas dadas

Outra coisa que acho que é uma importante arma de sedução é o controlo (ou o aparente controlo) da situação. Acho que o que desperta o interesse de uma pessoa noutra é saber que tem ali um adversário não negligenciável, que vai dar luta, que vai ser uma coisa mano a mano. A inteligência é fundamental, é quase tudo A sedução, é sabido, é una cosa mentale.

Outro aspecto: pessoas carentes, oferecidas, perdidas, indefesas, geralmente não dão grandes sedutores ou, então, acabam mal, tornam-se demasiado vulneráveis, a cabeça não acompanha o corpo. 

Mil fotografias, mil belas imagens, a câmara amava-a, ela emanava luz e sedução
mas era tão frágil, dava tudo e sentia que recebia tão pouco

O caso mais paradigmático disso é Marilyn Monroe - sedutora até mais não poder mas insegura, indefesa, frágil. Os homens desejavam-ma mas acabavam por cansar-se das suas inseguranças, das suas tristezas, abandonavam-na, e ela não resistia, caía, afogava-se em tristeza, em ansiolíticos. E assim se foi: um dos casos mais tristes da história da sedução.

Claro que o que vale para a mulher, vale para o homem com as devidas especificidades comportamentais.

Jack Nicholson - um mestre na arte da sedução e a prova mais que provada que a arte sedução
tende a refinar com a idade. O olhar não engana e o sorriso ajuda. 


Aqui chegados tenho que vos confessar que, afinal, acho que não vale a pena continuar com isto. Para quê tentar descodificar a sedução através de mais palavras, gestos, subentendidos?

Concordo que a fórmula é simples: seduzir é, acima de tudo, sim, gostar de dar e de receber - dar a ilusão de que muito mais há para dar e receber com prazer o retorno da sedução, porque gostar de receber e mostrar que se gosta é um dos mais poderosos 'instrumentos' de sedução.

<><<>><>

Convido-vos agora a ver o seguinte documentário sobre Madame Pompadour que ilustra bem o que é a sedução, a sedução qualificada.



<<<<>>>>

E tenham, meus Caros, um belo sábado e, se puderem, que seja repleto de sedução.