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terça-feira, setembro 19, 2023

Dias mais complicados...
E as minhas últimas comprinhas (na Gulbenkian)

 

Um dia complicado. 

Na véspera tinha estado até às últimas a acabar umas coisas. O meu marido perguntou-me qual a pressa. Disse-lhe que prefiro ter as coisas despachadas não fosse surgir alguma situação que me impedisse de levar a água a bom porto. Sempre assim fui e agora ainda mais: gosto de acabar as coisas antes da data limite pois gosto de guardar uma reserva de tempo para imprevistos.

Parecia eu que adivinhava. Uma das coisas que mais impressão me faz, que sempre me fez, isto é, que me custa, é não poder ser eu a gerir inteiramente o meu tempo e as minhas actividades. Mas quem tem pais de idade sabe bem o que é andarmos com o coração nas mãos. Ou é uma coisa ou é outra. E, quando estão sob orientação permanente de terceiros em quem se confia para garantir que a medicação é seguida ou que os sinais de alarme são despistados, é uma coisa. Quando estão autónomos, independentes, orgulhosos de serem senhores do seu nariz, aí a coisa fia mais fino. Fazem o que querem. E não podemos obrigá-los a fazer o que não querem pois estão na plena possa das suas faculdades e ainda bem que assim é. 

O pior é quando o seu querer tem consequências. E não reconhecem como consequências mas, sim, como uma contingência de algo que não percebem ou não querem perceber: é que há dez ou vinte ou trinta anos faziam coisas cujas consequências eram nulas ou negligenciáveis mas, nos noventas, a fragilidade do corpo, já prega partidas.

Enfim. É o que é.

E, portanto, o dia foi daqueles com longas horas, preocupações, canseiras.

Agora parece que a coisa estará mais controlada. Mas, até que tudo passe, não fico tranquila. 

Tenho a sorte de viver muitos anos com os meus pais vivos. 

Mas assisti ao declínio do meu pai e ele também assistiu e sofreu muito por isso. Desde que teve o último e grave AVC ficou altamente debilitado, estando acamado nos últimos anos. Quando ele morreu, obviamente custou-me muito mas, racionalmente, compreendi que tinha chegado a hora dele, a hora de parar de sofrer, a hora de descansar, de chegar ao fim do seu caminho.

A minha mãe, felizmente está ainda bem, apesar das suas doenças e condicionantes. Mas está também a assistir às crescentes limitações que o seu corpo demonstra. E não está a aceitá-las bem. Receia muito essas limitações, desgosta-se muito, não aceita nem compreende, assusta-se. E, portanto, embora por razões diferentes do que aconteceu com o meu pai, com a minha mãe também não está ser fácil.

É lugar comum dizer que não se escolhe. 

Os jornalistas, quando entrevistam pessoas com alguma idade, têm o péssimo gosto de acabar as entrevistas com perguntas sobre a morte: pensa muito na morte? como gostaria de morrer?

Se me perguntassem parvoíces dessas mandá-los-ia à fava. Mas, por dentro, ficaria a pensar. Obviamente gostaria que fosse o mais tarde possível mas que acontecesse quando eu deixasse de gostar de estar viva e que fosse rápido, indolor e, de preferência, sem me aperceber que estava para acontecer.

Mas, pronto, isto não é conversa que se tenha. A questão é que estou cansada, um pouco esgotada.

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(...)
O que desaparece? E o que sobra?
Uma nuvem de aves brancas em céu de cinzas...

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Contudo, não me esqueci do que ontem disse, que ia mostrar os livros que trouxe da Gulbenkian. Contudo, vendo bem as coisas só um é que talvez possa ser cabalmente considerado como livro. Mas eu, que não sou purista, considero-os.

Mostro-os.














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Manon - final pas de deux - Sylvie Guillem & Jonathan Cope


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Um dia bom
Saúde. Tudo a correr bem. Paz.

sábado, março 26, 2016

O que é a arte? Para que servem os poetas?
-- Se alguém sabe, de fonte segura, que não me diga que eu, por muito que pense ou que leia, não sei nem quero saber.
É que, para mim, a beleza da arte ou da poesia residem na sua injustificação


Perante a beleza desmedida de uma paisagem traçada pela arquitectura, ou perante a grandeza de uma escrita feita catedral, ou a atracção de uma pintura feita de cores, luz e coisa nenhuma, ou uma música que se transforme na alma que me comanda, detenho-me, muitas vezes fecho os olhos. Não quero esgotar o que me é dado, então, viver. Não quero racionalizar, não quero retalhar o todo nas partes que o compõem porque, para além das partes, há o espírito que as liga e há a forma como o sinto e o todo é sempre mais e muito diferente da soma das partes. O que em mim se altera pela emoção que me é despertada deve permanecer inexplicável, reacção mágica, indefinível. Só não analisando a arte que em mim toca as cordas da emoção poderei defender-me da indiferença ou da arrogância, só assim as minhas células permanecerão disponíveis para serem impressionadas em vezes futuras. 



Sendo um tema que me interessa, é daqueles que deliberadamente afloro como um pássaro que voa e pousa com ligeireza para logo voar e depois se acolher e depois voar e depois pousar para sentir a aragem na plumagem e sempre sem pensamentos profundos, apenas a leveza de quem gosta de viver em liberdade, sem seguir tendências, sem se prender a teorias, sem dever fidelidades.

Começo a ler o que parece ser esclarecedor e vou by the book, uma linha depois da outra, uma página a seguir à outra. Mas não dura muito o meu bom comportamento. É que logo depois já estou a espreitar páginas para a frente, depois quero ver qual o rumo que o raciocínio está a levar e leio a última página, depois leio do fim para o princípio e depois, se me parece inútil, salto páginas e voo até que as palavras chamem por mim e, assim vou, regressando à casa da partida. 

Se tiver sorte, terei permanecido na mesma ignorância que antes, apenas percebendo que, na longa parede ao longo da qual caminho, há portas de que antes não me tinha apercebido, penso que talvez um dia entre em alguma pela curiosidade de ver o que há do lado de lá. Mas evitarei isso porque, de cada vez que entrar por uma porta, ficarei fechada num compartimento em vez de continuar a percorrer o atraente caminho por onde gosto tanto de andar -- e de me perder.
____


Procura ainda a vida que
podes viver quando reflecte
da floresta a sombria folha
que

no primeiro capítulo foi perdida.
Procura a proporção do que
cresce dentro e fora da casa –

o corpo,
no seu existir dia a dia
similiter tui domine
deus. Procura

a vibração do mar e da terra e
desce
na cavidade medida
o mais profundo golpe.


São coisas muito frágeis – uma sede
a transformar-se em água ou num sorriso
aberto à flor dos lábios,
a música de um corpo enquanto é verão
e sobretudo a chama de um olhar
que se entrega à primeira alegria,π
ao primeiro desejo.

Ele sabe, sempre soube que é difícil ser
fiel ao esplendor de tudo isso, à
melodia ou ao rumor do sangue. É um
segredo roubado à terra ou à infância
como se a voz dançasse.

Confidente das aves quando chegam
do sul
ou cúmplice da luz que se demora
à passagem do vento,
mal o vejo daqui
e a sombra que se move entre os seus olhos
é a lição do dia quando morre,
esse rasto de lume que o sol deixa
a arder no mar.

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E para que serve a música? E para que serve a dança?

(E o corpo, para que serve? E nós, para que servimos nós?)


Roberto Bolle e Polina Semionova dançam 'Passage', uma música de Fabrizio Ferri

Os poemas pertencem ao livro 'Aproximações a Eugénio de Andrade'. O primeiro é 'Naufrágio que le Prince Charmant sofreu ao tempo do Livro de Navegações de São Brandão' escrito para Eugénio por João Miguel Fernandes Jorge, que refere que foi o único poema que escreveu em 1999. O segundo é de Fernando Pinto do Amaral – “Para um retrato de Eugénio”

As fotografias foram feitas hoje rente ao Tejo.

Lá em cima Catrin Finch interpreta Blessing de John Rutter

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Convido-vos, ainda, a virem de visita até ao meu Ginjal onde hoje vou, feliz, no barquinho de Kabir

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Já cá volto mas, entretanto, desejo-vos um bom sábado.



sábado, setembro 19, 2015

As armas balanceiam no resguardo das donzelas


No post abaixo falo e mostro a brilhante Senhora Cor de Rosa que atirou o Láparo ao tapete, falo de António Costa com o RAP e digo quais as minhas previsões relativas aos resultados das eleições. Podem anotar para na noite das eleições falarmos. Vão por mim. Não sou nada parecida com o Cavaco (em nada mesmo e, muito menos, naquela coisa de nunca ter dúvidas e de raramente me enganar), pelo que assumo que esta minha previsão é apenas intuição (mas a intuição, calma aí, não é coisa de somenos, é apenas um shortcut usado pela inteligência).

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, vocês desculpem-me mas, depois do meu dia de hoje, tenho que me desviar disto tudo.

Vamos lá.





Leva-me pela mão. Leva-me. E conta-me o que me quiseres contar. As tardes estão amenas, as folhas tombam, douradas, os pássaros cantam, e eu estou pronta. Passearemos, amor, de mãos dadas, pelas alamedas cobertas pelas copas das grandes árvores e tu, enquanto passeamos, porque sabes que me agradarás, perguntarás, sabes aquele poema que fala das palavras interditas? E eu direi, sei, mas quero ouvir a tua voz a dizê-las; diz. E tu, em voz baixa, abraçar-me-ás e, junto ao meu ouvido, contar-me-ás que

Os navios existem, e existe o teu rosto 
encostado ao rosto dos navios

Sim, leva-me até à beira do rio, mostra-me os navios, embala-me no ondular das marés. Leva-me. Eu vou.

Estou à janela. Espero-te. Olho o portão ao fundo, espero que o sino toque. Ou que o abras e entres e, lá de baixo, me acenes. Sairei correndo, o vestido esvoaçando tal como esvoaçando estará o meu coração.

Mas demoras. Porque demoras tanto, amor? 

Entretenho-me pensando. Penso que vou pedir que me digas, a seguir, um poema que me fale de pássaros brancos. Não sei de nenhum mas tu, que sabes todas as palavras mesmo as ainda não escritas, saberás. E dirás, a voz leve,

As asas do pássaro
que vê com os olhos de Deus
abrem-se com as tuas mãos.

E eu, surpreendida, enlevada, direi, tocas-me as mãos, tocas-me os olhos, tocas-me o coração. Mas, depois, perguntarei mas porque achas que o pássaro é branco? E tu sorrirás e dirás que o pássaro é branco porque é meu irmão, o meu reflexo. 

Sim, visto-me de branco. Virgem. Sou virgem. Hoje vesti-me de noiva. Coloquei brincos de pérola, enfeitei os meus cabelos com flores brancas. Estou nesta casa silenciosa, uma música líquida tocando lá dentro, e eu, aqui, à janela, esperando por um noivo que virá para me levar por entre caminhos de sombra e sussurros. Mas demoras, amor. Olho-me ao espelho, os meus olhos sempre tão tristes. Faz-me rir, amor. Ou não. Ensina-me. Conta-me de outras mulheres. Fala-me de mulheres imorais. Ensina-me para que, talvez então, me procures. Dir-te-ei, fala-me de perdições. E, então, tu abrirás um fosso na tua voz e dir-me-ás em voz quase rouca

Requebros do manto vencem o olhar
perde-se a folha
onde escreveu o seu saber - ave, que não, o
o simples mundo serpenteante

E eu olhar-te-ei e pedir-te-ei, desdobra-me o manto, ensina-me a voar. Ou despe-me o manto. Despe-me. Não me deixes assim, inutilmente vestida de noiva, eternamente de branco.

Mas tu não vens. Anoitece e tu não vens. Os cães estão tranquilos, não ouço passos. Não vens. Não me trazes a tua voz nem o teu olhar nem as tuas mãos.

Mudo o penteado, o toucado, a pintura. Destruo a virgindade do meu olhar.




Ensaio malícias, travessuras. Quando vieres, amor, e os cães lá em baixo ladrarem porque a noite já vai alto, encontrar-me-ás igual às que te prendem. Vais ver. Os meus olhos provocarão os teus, surpreender-te-ei, dir-te-ei  

Morrer de amor 
ao pé da tua boca 

Desfalecer 
à pele 
do sorriso 

Sufocar 
de prazer 
com o teu corpo 

E tu, então, talvez me olhes como nunca me sonhaste. Talvez eu me dispa. Eu. Eu, não tu. Deitar-me-ei e olharei para ti com o meu olhar de mulher vestida de branco, sem mácula, sem pecado. À espera. E, como se delirasse, direi

as donzelas, solevados cimos, inquietam no
veneno na estúrdia casta do papel

E tu, silente, inquieto, olhar-me-ás com espanto. Quem és tu?, perguntarás. E eu nada te direi. Se queres saber, pois descobre tu.




Ou talvez te peça, despe-me como despes as outras mulheres. Verás como, por baixo do vestido de noiva, estarei coberta por quase nada. Despe-me. Não tenhas medo. Despe-me. Vê como é o meu corpo. Apanho o cabelo para que melhor vejas o meu pescoço, o meu colo, as minhas pernas, os meus braços nus. Olha como te olho. Se eu não tenho medo, o que temes tu? Olha-me, devora-me com o olhar que eu não fugirei porque, sabes, eu, de ti, nada temo. Olha-me. Toma-me. Sou um cisne branco, sente-me. 




Mas nada sinto. Não te sinto. Estás longe. Não sinto as tuas mãos. Terei, pois, que te recriminar. Terei que te fazer sentir culpado. Talvez te diga, Ah, como és cuidadoso. Ou não, cuidadoso não. Cobarde. Vê como baixas os olhos. Não baixes. Olha para mim. Aproxima-te. Toca-me. Sente a minha pele morna, macia, virgem. Não fujas. Vê como é o meu corpo, os meus seios de menina, os meus lábios que te esperam, a serpente que se enrola de desejo, o meu ventre. Olha-me. Olha-me. Olha este corpo que te aguarda, este corpo tão desconhecedor dos prazeres que o teu olhar promete e que as tuas mãos não procuram.




Mas tu não vens. Não virás. Raramente vens. Penso em ti a cada minuto que passa, tudo o que penso é como se o falasse contigo, tudo o que sei é para te contar, tudo o que quero aprender quero que me seja ensinado por ti.

Mas tu estás longe. Nunca vieste. Não sei sequer quem és.

Sento-me, então, triste, noiva que nunca noivou, e sonho. Sonho. Sonho que um dia serei a mulher que um dia tomarás nos teus braços, que de ti escutarei belos poemas de amor, que um dia navegarás dentro do meu corpo virgem, branco, branco como um barco silencioso atravessando as brumas das madrugadas vazias.

E adormeço. Perdida.



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As fotografias mostram Cara Delevingne (que é capa da Revista E do Expresso deste sábado).


Os excertos de poemas são, respectivamente, de Eugénio de Andrade, Richard Zimler, João Miguel Fernandes Jorge, Maria Teresa Horta e, finalmente, outra vez, João Miguel Fernandes Jorge (o título do post pertence a um dos seus poemas).

Na harpa, Catrin Finch interpreta Clair De Lune

Tom O'Bedlam diz Taking Off Emily Dickinson's Clothes de Billy CollinsEmily Dickinson nos últimos anos vestia-se de branco, pensa-se que morreu virgem. Vivia solitariamente.

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Caso queiram agora ver a Senhora Cor de Rosa ou saber as minhas previsões para os resultados das próximas eleições, façam o favor de descer até ao post já aqui a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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domingo, maio 17, 2015

Noite dos Museus em Lisboa - Obras marcantes [2º de 5 posts]


Este é o papel singular da alegria 
a lei errante do país 
é o maior dos silêncios. 

Caminhei por entre rios pontos de água 
estações de novembro 
pequena razão dos ventos da manhã. 




Não trafiquei não porque seja forte 
mas porque falo da alegria do estar sobre vós 
nestes pontos de água 
na acidez da flor 
neste país frequentado 

algumas coisas nunca mudarão. O rigor 
da luz torna invulnerável o desejo de perder 
esta pressa de verão. 




Algumas coisas serão sempre as mesmas: manhã 
encosta o teu ouvido sobre a porta escuta 
era a voz os cavaleiros roubados a Ucello 
longínquos. 




(Profanamos a casa não o corpo 
esta forma desenhada ruga a ruga 
esta cor amarela sobre a praia.) 



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A primeira fotografia mostra, no Museu de Arte Antiga, os Painéis de S. Vicente de Fora de Nuno Gonçalves.

As duas seguintes mostram, no mesmo museu, partes de Tentações de Santo Antão do pintor holandês Hieronymus Bosch

O poema é Este é o Papel Singular da Alegria de João Miguel Fernandes Jorge

Lang Lang interpreta Serenade de Schubert

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terça-feira, março 31, 2015

Livros junto ao peito, a nova moda nesta saison. E o rio ao anoitecer, belo e tranquilo. E o Bebedor Nocturno. E Mirleos.


Depois de no post abaixo ter mostrado cuecas adequadas a homens elegantes e a badochas fofos e de, mais abaixo ainda, ter mostrado uma fotografia que Leitor, a quem muito agradeço, me enviou sobre o wi-fi alentejano, aqui, agora, parto para outra.

À hora de almoço fui aos livros. Nada de mais. Vou para ver se há alguma coisa de novo, convencida a só trazer mesmo aquilo sem o que não vou conseguir passar. Mas, quando dou por mim, já estou a folhear sem me conseguir vir embora sem um, sem outro. Ainda hesito, tento controlar-me, mas é irresistível, coisa mesmo mais forte que eu.

Quando fui pagar, a empregada perguntou se queria um saco e disse-me o preço.

Lembrei-me, então, que no outro dia vi, salvo erro na Vogue, que o último grito da moda é usar livros ou revistas apertados contra o peito ou na mão, como se fosse uma clutch ou, na provável ausência de livros, uma clutch em forma de livro.

Na altura achei que aquela parvoíce era mesmo a última coca-cola do deserto, a ideia mais estapafúrdia que alguém podia ter tido. É o disparate completo: as modelos, todas fashion, a andarem todas produzidas e com um livro como se fosse uma carteira. É que não sei se estão a ver: a ideia não é ler o livro ou sequer parecer que se tem um livro, é apenas ter um ar sartorialist, street fashion, uma coisa nessa base.

Pois bem, naquele instante em que a empregada me informou sobre o preço do saco, pensei que isto, de facto, mais vale uma pessoa não se pôr a cuspir para o ar, que é como quem diz: nem mais, não levo saco, poupo os 60 cêntimos e ainda vou toda fashion. E assim vim, uma erudição em quatro volumes junto ao peito, toda eu com aquele ar saison que dá uma alegria primaveril de dar gosto.

Cheguei a casa e vi que um estava repetido (coisa que, de resto, já temia) e, portanto, pouca sorte, lá tenho que o ir trocar. Melhor: agora que estou a escrever, lembrei-me que não o vou trocar coisa nenhuma, fica é para os meus filhos.

Estive aqui a fotografá-los, já sem o repetido, e juntei os que comprei a semana passada. Claro que isto é sobretudo mais uma dose de frustração pois quando é que eu tenho vagar para me pôr de perna estendida a ler como deve ser...? 

Enfim, tristezas não pagam dívidas e, portanto, a alegria é estar rodeada de livros e poder ir espreitando, lendo aqui e ali (e fazer planos para os ler com tempo daqui por uns anos).


E vamos mas é com música para irmos melhor


Shostakovich interpreta o seu Concerto No 2 para Piano 





Do livro do Mia Couto, do Cem Poemas para salvar a nossa Vida e de mais um do Robert Mapplethorpe já aqui deixei alguns apontamentos ao longo da última semana.


Dos de hoje, já aqui estive de namoro com o Mirleos do João Miguel Fernandes Jorge e está a parecer-me um namoro promissor.

Transcrevo o poema Maria Madalena

Requebros do manto vencem o andar
perde-se a folha
onde escreveu o seu saber - ave, que não, o
simples mundo serpenteante

 - Querem mesmo saber de mim?
Os cabelos repousam na clareira dos ombros.
Ela estendeu a mão para que não lhe tocasse.
A meio caminho da cidade, do pântano, o zumbido dos
mosquitos o coaxar das rãs o grito do milhafre
erva queimada, as presas maceram ao sol.
Ele estendeu a mão - É verdade, somos imorais.



Quando saí do trabalho ainda era de dia. Com a mudança da hora, os dias trazem a duração que prenuncia o verão, o sul. 



Belo deslizava o rio no seu leito, e melhor seria
nele mergulhar a boca do que mergulhá-la numa boca de mulher.


[Início de 'O rio' de Ben Jafacha, numa tradução de Herberto Helder in O Bebedor Nocturno]



Peguei na máquina e quase tinha vontade de voar para a beira do rio. O meu marido teme estas minhas alegrias de máquina na mão, já sabe que a caminhada não vai ser a limpeza do costume. Ele vai andando e eu fico-me perdida na beleza do pôr-do-sol sobre o rio. E ele, para não me deixar abandonada, anda em frente, depois volta para me resgatar, depois segue e assim sucessivamente - já farto, claro está, e a avisar-me que eu nem pense que vai ser isto daqui para a frente. A ver vamos (como diz o ceguinho).



O vento batia nos ramos, ondulava o ouro do
crepúsculo sobre a prata da água.

Enquanto na margem eu distribuía vinho dourado
cujo reflexo mordia as mãos dos convivas.


[Final de 'O rio' de Ben Jafacha, numa tradução de Herberto Helder in O Bebedor Nocturno]



Depois, aos poucos, o dia foi caindo, uma beleza sem igual, uma paz imensa, silêncio, apenas o som ligeiro das águas que, aos poucos, vão absorvendo a falta de luz, escurecendo devagar.

E as luzes da cidade foram-se acendendo, aos poucos também, e eu podia ficar ali durante horas a fotografar a serenidade que envolve o rio, o céu, a cidade bela, e sentindo a serenidade macia que me cobre como um véu afável e transparente.



     As mãos da Primavera edificaram, no cimo dos caules, os castelos de açucena;
    castelos com ameias de prata onde, em volta do Príncipe, os guerreiros empunham espadas de oiro.


['A açucena' de Ben Darreach Al-Qastalli, numa tradução de Herberto Helder in O Bebedor Nocturno]



E depois a lua escondeu-se numa casa em ruínas e espreitou-me de uma janela aberta como devem ser todas as janelas - mas eu apanhei-a para vos mostrar.



A lua é um espelho empanado pelo hálito das raparigas.
E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta se veste com o papel branco


['A lua' de Ben Burd El Nieto, numa tradução de Herberto Helder in O Bebedor Nocturno]



E então, já noite, vim para casa, feliz da vida, ligeira, leve, despida das preocupações que, ao longo do dia, se vão depositando sobre mim.


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E, para espantar qualquer resto de preocupação ou tristeza que vos cubra, desçam, por favor, até aos dois post seguintes. O humor é um remédio eficaz para qualquer mal.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela e serena terça-feira. 

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terça-feira, agosto 20, 2013

Se o expressionista Munch a tivesse conhecido, que quadro pintaria?, pergunta-me jrd. Vou jogar os búzios, socorro-me de Erik Satie, de uns quantos poetas, faço um cadavre exquis e depois interpreto o que os búzios me dizem. A resposta está mais abaixo. Faz sentido?



Se o expressionista Munch a tivesse conhecido, que quadro pintaria?, pergunta-me jrd.


Impossível saber. Mas posso deixar-me ir, numa deriva, e ver se obtenho uma resposta que faça sentido (embora ao lado). 

Vou fazer como se deitasse os búzios, parece-me uma boa opção.

Vou buscar Satie (cuja subtileza, aqui, corre em cima das mulheres de Modigliani - mas não é Amedeo nem a sua Jeanne que hoje são para aqui chamados), vou pegar nuns quantos livros de poesia, ao acaso, perfeitamente ao acaso, vou abrir cada livro também ao acaso, vou transcrever um verso de cada, aqueles que vierem ao chamamento de Satie, e depois logo vejo se adivinho que quadro é que Munch pintaria para ilustrar a mulher que teria escrito o poema obtido através de Satie e do cadavre exquis que daqui nascer.



Música, por favor



Erik Satie, Gnossienne nº 2 - interpretação de Reinbert De Leeuw

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                                              Não quero mais mundo senão a memória trémula       1
                                              Partes, o céu demora-se
                                              a entardecer e a lassidão flutua      
                                              como as volutas do incenso a arder         2
                                              Ninguém nos vem em socorro
                                              ninguém nos liberta os braços        3
                                              Ah o terrível, o trémulo que tão fácil dissipa o universo inteiro      4
                                              Quem sofre está sempre em situação de
                                              espera        5
                                              A terra é absorvida pelos poros
                                              da alma         6  
                                              É verdade que quando eu contigo
                                              me inclinava o mundo por instantes
                                              recuava.      7
                                              Se tudo é pureza apaixonada,
                                              direi somente que és tu o meu retrato         8
                                              Oh, a absurda melancolia do teu olhar         9


Então, agora que lancei os búzios, como é que Munch pintaria a mulher que teria escrito este novo poema ao som de Satie?

Reparo que o resultado foi nostálgico, melancólico. Face a isso, eu diria que Munch pintaria a mulher que, a existir, teria escrito o que acima se pôde ler, como pintou Inger numa outra noite de verão, uma mulher que, em tudo, até fisicamente, parece ser o meu oposto. 



Edvard Munch, Summer Night – Inger on the Beach, 1889

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No cadavre exquis cada verso assinalado foi retirado de:


  • 1 - Herberto Helder, Servidões, pag. 82
  • 2 - Soledade Santos, Sob os teus pés a terra, Poema 'Azul da quase noite', pag.58
  • 3 - David Mourão-Ferreira, A arte de amar, poema 'Romance de Pompeia', pag. 205
  • 4 - Herberto Helder, As magias, tradução do poema 'Iniji' de Henri Michaux, pag, 24
  • 5 - João Miguel Fernandes Jorge, Oferenda, poema XXVII, pag.67
  • 6 - Armando Silva Carvalho, Canis Dei, poema da pag. 29
  • 7 - Margarida Vale de Gato, Mulher ao mar, poema 'Feiticismo', pag. 34
  • 8 - Ricardo Gil Soeiro, Espera vigilante, poema III, pag.18
  • 9 - Manuel Gusmão, Pequeno tratado das figuras, poema #18, pag.97



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(A ver se ainda cá volto.)