No outro dia falei de bibliotecas lindas, arrumadas, coisa de gente ordeira, cenários que gosto de admirar, invejosa, estrangeira.
Como tantas vezes já aqui desabafei, ainda não percebi como se consegue ter os livros arrumados mas acessíveis e presentes. Na minha casa, os livros multiplicam-se e quase ganham terreno sobre as pessoas.
No entanto, não pensem que a bagunça é generalizada, absoluta. Não. Em minha casa tenho alguns redutos em que eles se mantêm disciplinados e quietos. Como nisto é ver para crer, vou mostrar-vos alguns desses pequenos oásis.
No entanto, não pensem que a bagunça é generalizada, absoluta. Não. Em minha casa tenho alguns redutos em que eles se mantêm disciplinados e quietos. Como nisto é ver para crer, vou mostrar-vos alguns desses pequenos oásis.
Mas, se não se importam, vamos com música.
Sonia Wieder Atherton no violoncelo com Daria Hovora no piano
Nigun
Em tempos que já lá vão, não havia internet e as pesquisas eram feitas através de enciclopédias, colecções, obras em vários tomos.
Desde o início, houve a questão de onde arrumar tão extensa e pesada colecção. Perto da minha casa havia uma loja de móveis que abastecia essencialmente embaixadas e que, portanto, tinha um mobiliário clássico que sempre me agradou. Parte dos meus móveis provém dessa loja. A escrivaninha de alçado onde a preciosa enciclopédia, hoje quase coisa de museu, reside provém de lá.
Também durante muito tempo fui sócia do Círculo dos Leitores. De lá são várias colecções de História, de História de Arte, relativas a Património, o Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa belamente encadernado.
Esses livros hoje também se conservam imóveis, arrumados como gente educada. Ao escrever, noto que isto me faz sentir mal, como se estivesse a ser ingrata, desleal, a esquecer e abandonar amigos que deveriam merecer mais atenção.
Mas é verdade: quando agora quero pesquisar qualquer coisa ou ler alguns apontamentos sobre qualquer um destes assuntos que antes me levavam a folhear estes livros, procurando os índices, lendo os excertos que me elucidassem, nem me lembro já de recorrer a eles.
O vasto mundo está perto das mãos através da internet. Os meus hábitos mudaram tanto desde então.
O vasto mundo está perto das mãos através da internet. Os meus hábitos mudaram tanto desde então.
Depois há também os autores portugueses de vasta obra, os clássicos, Eça, claro. Há algum tempo que o não leio e, de resto, nem tenho o hábito de reler seja que livro for pois a imensidão do que vou tendo para ler pela primeira vez não me permite ocasião para revisitar velhos amores. Mas, como a minha mãe anda a relê-lo e me vai comentando, deliciada, a sua actualidade e a ironia, ando com saudade e vontade de lhe fazer uma visita. Talvez A Capital ou Os Maias.
Nesta estante aqui, que é das últimas que veio cá para casa e provém do IKEA, e onde estão alguns dos portugueses do início do abecedário (nem todos, pois o Aquilino, o Camilo, e outros que têm obra vasta, estão numa outra, dedicada a estas colecções), está por exemplo a diva Agustina, bendita mulher que se me deu a conhecer através da Sibila que tanto me impressionou, e também António Lobo Antunes, embora os livros dele de crónicas andem à deriva por outras paragens.
Tenho-o dito muitas vezes. Gostei muito, na altura, do sopro de novidade que foram os seus primeiros livros (Memória de Elefante, Cus de Judas) mas, depois, a sua escrita entrou numa tal elipse labiríntica que ao fim de me esgotar em alguns, comecei a desistir pois canso-me ao fim de umas dezenas de páginas. Tento, juro que tento, e acho que devo tê-los quase todos, sempre na esperança de voltar a sentir aquele encantamento inicial, mas não consigo vencer aquele cavar e remoer sobre o mesmo terreno. Mas as Crónicas, essas sim, leio-as de gosto. Ele acha que as crónicas são apenas um ganha pão, um entretenimento, coisa menor, mas eu é por elas que agora me fico. Também aqui tenho, nesta estante, o Abelaira que me encantou tanto, quando os li.
A partir de certa altura, faltando-me o espaço para arrumar mais livros, comecei a olhar para cada recanto da casa a ver se lá conseguia encaixar pequenas estantes de forma a que não estorvassem o passo. Algumas destas estantes foram feitas a feitio, desenhadas por mim, medidas milimetricamente estudadas para que coubessem nos recantos e para que nela coubessem os livros.
Esta aqui é uma delas. Aqui é onde se alojam os autores de língua espanhola, autores geralmente vibrantes, sensuais, revigorantes que sabem transportar para a escrita o sal dos mares do sul, o sol, o sangue, a magia das lendas, o sonho.
Nesta pequena estante, como podem ver, tenho uns quantos saleiros, réplicas de peças de museu e caixinhas de porcelana.
Durante muito tempo tive uma perdição por caixinhas. Tenho-as clássicas, de colecção, tenho-as de vidro, artesanais, de madeira, de metal, de pedras.
Agora não é que não tenha mais esse gosto mas tenho a percepção de que não posso continuar a trazer tralha para casa.
Sobre esta estante, se repararem, tenho um relógio derretido a la Dali. Acho-lhe imensa graça, claro está.
Sobre esta estante, se repararem, tenho um relógio derretido a la Dali. Acho-lhe imensa graça, claro está.
E ainda tenho mais umas quantas estantes que ainda consigo manter bem apresentadas. Mas há um problema. Estando os livros ali tão postos em sossego, acabo por me esquecer deles. Quando me apetece ir à procura de um livro novo para ler, esqueço-me de ir às estantes, não me dá jeito, está tudo tão adormecido.
Então, por isso - ou simplesmente porque transporto em mim a semente do caos - tenho à minha volta montes terríveis a que de vez em quando dou a volta pois ou tombam e tenho que os arrumar melhor ou vou à procura de um e gosto de os percorrer a todos.
A mesa redonda que aqui vêem é a mesa onde escrevo. Estou no lado oposto ao da cadeira que se vê, num pequeno canto, cercada de pilhas de livros. As cadeiras eram as cadeiras de madeira de uma das minhas avós. Resistiram décadas mas estou sempre com medo que um dia sucumbam sob o peso que agora carregam. Há, em volta da mesa, apenas duas cadeiras livres, aquela em que agora me sento e outra que tem que estar livre para o caso do meu marido precisar de trabalhar no computador (coisa que o deixa doente pois gosta de alguma ordem e esta minha propensão para me entrincheirar no meio de livros parece-lhe prova da minha falta de razoabilidade e ele ter que partilhar este espaço tira-o do sério).
Mas sinto-me tão bem, tão acompanhada, junto dos meus livros. É uma atracção fatal aquela que sinto por livros. E não é apenas pelas palavras que eles contêm, não é apenas pelas ideias, pelas imagens se for caso disso. Não. É também pelo objecto que eles são: a capa, a textura do papel, a paginação, o peso, o toque. Não há outro objecto que tanto me seduza. Como pensar em substitui-lo pelo e-book? Não é possível. Estaria aqui, agora, numa mesa asséptica, vazia, e eu sem os escritores que agora tenho junto a mim, amigos, anjos da guarda, presenças reais.
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E, por falar grandes escritores, que dois espíritos brilhantes se juntem:
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J. Rentes de Carvalho e Eça de Queirós
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Quando as mães chegaram, ficaram em choque ao verem os filhos cheios de gesso mas, enfim, isso é um mal menor face à enorme satisfação deles por fazerem trabalho de tal responsabilidade.
Gostava também de vos mostrar a casa por dentro que está quase pronta e que está mesmo bonita (a cave é que ainda está quase na mesma uma vez que ficou para o fim).
E queria contar-vos como, ao fim do dia, a dona da casa - com um belo corte Bob - foi comprar chouriço, que o marido depois assou, tal como assou também castanhas e como, depois, estivemos todos sentados a petiscar, no melhor convívio.
Mas passa das duas da manhã e eu tenho tanto sono... Se amanhã não se meterem outras coisas, talvez mostre. Não pensei alongar-me tanto com os livros mas sou sempre assim, ponho-me na conversa convosco e nem dou pelo tempo a passar. Fazia-me falta ter aqui um chá bem quentinho para irmos bebendo em conjunto. Gosto imenso de chá, seja chá a preceito, seja infusão do que for, lúcia lima, cidreira, camomila, tília, menta, qualquer coisa mesmo. Se vocês aqui estivessem comigo, nesta minha sala cheia de livros, eu servir-vos-ia um chá quentinho e perfumado. Teria era que ver onde é que pousava o bule...
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo.
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