O dia não foi fácil. Reuniões, muita exposição, sempre a ter que sorrir, sempre a ter que mostrar confiança, simpatia. Agora que conseguiu despachar a exigente agenda diária já é tarde. Podia estar cansado mas hoje, por acaso, não está.
Vem com uma irrequietude na alma e no corpo. Não lhe apeteceu ir jantar a casa. Parou na estação de serviço, comeu uma sopa, dois crepes, uma imperial, bem bom. Sentia-se incapaz de se ir enfiar no sofá, anestesiado, a saltar de canal para canal. Comentadores desportivos, comentadores políticos, telenovelas e sempre aquele ar provinciano, nada lhe interessava, nada o sossegaria.
Portanto, em vez de se dirigir a casa, seguiu outro caminho, conduziu até à zona antiga da cidade. Estacionou, guardou os óculos, e saíu do carro sem saber ao que ia, talvez apenas andar pela rua. Voltou atrás, foi buscar a pasta, esta zona não é segura e os documentos são demasiado importantes. Início de Janeiro, temperatura amena, uma vontade de primaverar, um certo ar precoce de flores a renascerem, um aroma de volúpia, qualquer coisa de invisível, de indefinido.
As luzes estão quase apagadas, a autarquia está a poupar na electricidade, pensaria que o ambiente está quase lúgubre não fosse esta pulsão pela descoberta de qualquer coisa, nem sabe o quê. Anda e parece que há uma leveza que o transporta. Sente perfume no ar, talvez alguma planta nos arbustos destas moradias antigas, talvez alguma mulher aqui tenha passado há pouco. Aspira, vai andando e, ao andar, vai aspirando, que cheiro tão bom. Pensa: se fosse há uns anos, talvez achasse normal procurar uma prostituta, que o corpo lhe está a pedir confronto. Ri-se sozinho. Uma mulher, coisa boa.
E segue. Adiante estão dois homens, cada um com seu cão, conversam, os cães brincam, estão praticamente às escuras. Olha-os com uma certa inveja; são hábitos de um quotidiano que lhe é estranho. Mais à frente passa por um carro que estaciona e de onde sai uma mulher. Repara que a mulher está amedrontada com a sua presença, olha em volta, atrasa-se para lhe dar tempo a passar, talvez receie que ele seja um ladrão, um traficante com a sua pastinha, um violador. Muda de passeio para que a mulher perca o medo e, ao fazê-lo, pensa: se fosse acompanhado, ninguém tinha medo, assim, cão sem dono, as mulheres têm medo de mim. A mulher era bonita, transportava uma mala com rodas, tinha um fato que parecia uma farda, talvez fosse hospedeira. Tem vontade de dar meia volta e ir atrás dela, sentir se o seu rasto é perfumado. Ainda hesita mas logo se detém: estás maluco ou quê?
E continua. A seguir ao pequeno jardim, há uma pequena rua, uns quantos prédios velhos, baixos, de dois ou três andares, alguns devolutos, andares vazios, zona a evitar, dizem que por ali param os sem-abrigo, drogados, não sabe. Avança um pouco na rua escura. Tomara não saia daqui algum que ainda me venha roubar, pensa. Mas segue, cauteloso. Por ali chega-se mais depressa ao rio, irá dar uma volta pelo cais.
E então, ao passar por um desses prédios antigos, ouve uma música suave, talvez uma valsa, uma música que parece vir de cima, sai talvez de uma janela. Afasta-se, espreita. As janelas do 1º andar têm as portadas abertas, uma luz amarela, quente, e uma música. Fica ali parado, envolvido, qualquer coisa de electrizante o paralisa. Quem será que ali, àquela hora, ouve aquela música?
A música pára, depois começa outra, agora parece salsa, é mais alegre. Ele ouve, olha a janela iluminada, parece ouvir uns passos, escuta com atenção, a música está baixa mas os passos agora ouvem-se distintamente, acompanham o ritmo. Sente-se arrepiado, uma emoção a crescer dentro dele, a música a invadir-lhe o corpo.
Sem pensar dirige-se à porta do prédio. É uma porta de madeira com um pequeno vidro, uma porta antiga, está apenas encostada. A medo, empurra-a, o prédio cheira a prédio antigo, as escadas são de madeira, e ele sobe, segue a música, está à porta do 1º andar de onde se soltam os acordes da salsa, uns passos, parece que apenas de uma única pessoa. Encosta-se mais, para ouvir melhor. Há luz por debaixo da porta. Treme. É receio, é apetência pelo risco, é um tremor que o empurra.
A música acaba. Uns passos soam. Tenta perceber os movimentos. E, então, movido pela curiosidade, pela vontade de qualquer coisa, encosta a mão à porta. Devagar. E devagar a porta vai-se abrindo, estava apenas encostada.
Fica com a respiração suspensa. Repara no chão que é de soalho, repara no tecto, o pé direito muito alto, uma luz coada, amarela, quente, suave, uma porta que divide esta sala de outra divisão em madeira e vidro, o ambiente é acolhedor, quase surreal atendendo ao sítio que é. E um cheiro a madeira, a cera, a flores, um cheiro a mulher.
E então, da porta de madeira e vidro, sai uma mulher, cabelo apanhado, corpo voluptuoso, ancas fartas, pernas torneadas - e ondula ao andar. Dirige-se ao leitor de cd’s, escolhe uma música, deixa-a começar. Ele está imóvel, não a quer assustar. Treme, o coração bate descompassado. A música começa, ela baixa o volume. Um tango. Deslizando, sensual, ela dirige-se ao centro da sala, vai dançar sozinha.
Sem se deter a pensar, ele despe o casaco e avança também, dirige-se também ao centro da sala. Curiosamente ela não parece estranhar, parece que vai acontecer uma coreografia previamente ensaiada. Como se fosse uma professora à espera do aluno, assertiva, ela diz-lhe que não fale, que não pense e ele pensa: mas eu não ia falar... e, à frente de um corpo destes, quem é consegue pensar...? Não consegue articular palavra, sente o sorriso preso no rosto. A confiança da vida diária sumiu-se. Agora é apenas um homem que apenas pressente que estás prestes a ser submerso. E entrega-se, pensando com a pouca malícia que lhe resta, tão sobressaltado está: seja feita a vossa vontade, minha senhora.
Nesse mesmo instante ele sente que é dela o cheiro, que é dela o cheiro que adivinhou na rua. Apetece-lhe chegar-se, cheirá-la. Chega-se a ela, enlaça-a, e ela faz o mesmo e então começam a dançar um imprevisto tango. E o calor que vem dos seus corpos, a luz coada, a música num sussurro, o cheiro dos seus corpos, a tensão dos músculos em entrega total, é tal que, aos poucos, a proximidade é irreprimível, ela luta, ele procura-a, ela afasta-se, ele afasta-se para logo a recuperar, rodopiam, ela ao colo dele, e, no final, sorriem, quase envergonhados, e a emoção é tão intensa que pensam ambos, sem o confessarem, que uma certeza assim acontece uma vez na vida.
Créditos
1. A ideia deste texto surgiu-me há pouco, a partir do comentário e da informação do meu Caro Leitor Patrício Branco, no post anterior, a quem muito agradeço.
2. A última frase é uma fala de Clint Eastwood, como Robert, em As Pontes de Madison County, quando sai de casa e se despede de Meryl Streep, como Francesca.
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E, por hoje, é isto. Não me apeteceu falar do défice que parece que vai ser superior, da austeridade que parece que vai ter que aumentar - temas demasiadamente previsíveis.
Hoje apeteceu-me dançar (e quase me apetece escrever dansar, com s, como Sophia o fazia). Hoje apeteceu-se ser une danseuse, une danseuse com palavras voando à minha volta.
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Aproveitem bem cada pequeno instante, gozem a vida, ouçam música, dancem a sério ou em pensamento.
E tenham uma boa terça-feira!