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sexta-feira, julho 08, 2022

O silêncio do calor e o perfume dos orégãos

 



Passei o dia in heaven. Silêncio total. Nem os cães do outro lado da estrada ou ao longe se fazem ouvir. 

Poder teletrabalhar é daquelas coisas boas que aconteceu na minha vida. Vou às instalações da empresa sempre que é preciso e, quando não é, trabalho a partir de casa. Se isto tivesse sido opção em todos os anos que desperdicei enfiada no trânsito talvez a minha vida tivesse sido bem melhor.

Digo isto e, mal acabo de escrever, faço uma pausa. A questão é que não estou absolutamente certa disto. É certo que foram horas e horas perdidas mas é também certo que nos habituamos a tudo. Tinha a vantagem de ouvir boa rádio enquanto conduzia, tinha a vantagem de poder fazer compras e tratar do que tinha a tratar à hora de almoço. Agora eliminei muito desse tempo absurdo gasto no trânsito mas preenchi-o com trabalho. Agora, quando tenho que tratar de alguma coisa, quase me sinto culpada, parece que estou a baldar-me. E ganhei hábitos ainda mais arreigados do que os anteriores: ligam-me tarde e más horas ou enviam-me mails seja a que hora for e estou sempre disponível. Mesmo que não me apeteça, estou disponível. Um disparate.

Mas, dizia eu, passei o dia in heaven. À hora de almoço finalmente consegui ir tratar do que queria: apanhar orégãos. Um calor de ananases. Claro que o meu marido ficou todo arreliado, dizia que não era hora nem estava temperatura para isso. 

Mas tinha que ser. Com este calor, os orégãos já estão a querer secar e, para ficarem bons e se aguentarem cheirosos e com sabor campestre durante todo o ano, têm que ser apanhados em flor, mas em flor perfumada e viçosa. Tal o calor que estava, vesti um fato de banho, apliquei protector solar 50 e fui à procura dos meus chapéus. Tinha dois, um dos quais um belo chapéu basco de abas muito largas e com uma fita encarnada que trouxe de Bayonne há alguns anos. Não os encontrei. Quando pintámos a casa, faz um ano, tivemos que retirar tudo o que estivesse à vista. Provavelmente escondi-os e agora não faço ideia onde. Ou isso ou a mulher do pintor que volta e meia lá ia e parecia não ser lá muito boa da cabeça achou que a ela é que eles ficavam bem (aliás, ficaram de ir acabar algumas coisas e nunca mais apareceram nem atenderam o telefone, nem a nós nem ao vizinho da ponta da rua que no-lo tinham recomendado).

Portanto, fui ao cabide dos bonés e escolhi um. Já agora, para poderem visualizar a cena, acrescento que nos pés usava uns chinelos de conforto, daqueles que as enfermeiras usam. Habitualmente uso-os em casa. Portanto, tudo a condizer. E foi, assim, naqueles preparos que avancei para o campo. Uma camponesa fora da caixa, digamos assim. 

Um calor, um calor. Andava dobrada, na ceifa, a escolher as hastezinhas mais jeitosas, pezinho a pezinho, e a sentir a transpiração a descer do boné para a testa. Tive que ir lá acima umas três vezes não apenas para depositar os orégãos numa mesa como para tirar o boné, lavar a cara, beber água.

Por volta das seis e tal, a jornada profissional quase concluída, enverguei de novo o fantástico outfit com a diferença que agora fui descalça: fui regar as árvores da frente, dar uma arrumadela na casa e dispor os orégãos em cima de um lençol (lavado!) em cima da mesa para ficarem a secar. 

E ainda voltei lá abaixo (calçada, claro) para apanhar mais um ramo deles para levar para a minha mãe. Seca-os também e creio que dá alguns aos meus tios e provavelmente também alguns às vizinhas e amigas. Mas este ano há poucos, apanhei muito menos que nos outros anos. Não sei porque será. Não encontro tomilho e os orégãos devem ser metade do ano passado. Só espero que não tendam a desparecer.

Quando lá voltar a ver se vou fazer nova monda pois creio que os que estão agora a secar não chegarão para nós e para distribuir.

Conclusão: chegámos aqui bastante tarde e ainda fomos dar uma volta com o urso peludo que tem estado meio abananado pelo calor. 

Entretanto, iam chegando fotografias dos meus filhos. Do lado do meu filho, jantaram na praia e depois foram para o areal. Estava calor e lá é que devia estar-se bem. Do lado da minha filha, jantavam no terraço com vista para o rio. Talvez se fizesse sentir alguma aragem.

E foi isto. 

Esta sexta-feira vai ser difícil. Vou ter umas reuniões complicadas, o tipo de reuniões que gostaria de evitar. As reuniões desta quinta serviram para as preparar. Há decisões que penso que ninguém gosta de tomar. Mas isto é como quando comprava peixe à posta no mercado. Se queria levar postas do meio, tinha que levar também um bocado do rabo e da cabeça, com mais espinhas. Isso era tanto mais assim quando se tratava do safio. Assim é a minha profissão: tem componentes aliciantes, desafiantes, tem outras compensadoras e depois tem estas, aborrecidas, enervantes.

E agora vou descansar. Amanhã respondo aos comentários. Hoje já não dá. Daqui a nada são três da matina e daqui a nada tenho que estar a pé e de cabeça fresca.

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E porque gosto muito de casas e de estar em casa e gosto do silêncio e da quietude, deixem que partilhe este vídeo

The Silence Of Rumah Fajar

Meaning “The House of Dawn” in Bahasa Indonesia, Ruham Fajar is located in Bali and designed by Studio Jencquel. Offering outstanding views of Gunung Agung, the Balinese most sacred volcano, the residence encompasses the local culture from the main door entrance to the materiality it has been chosen. Dive into this amazing project with the natural sound of Bali’s environment as its soundtrack. 


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Fotografias feitas in heaven aqui na companhia de Joana Gama que interpreta Für Alina de Arvo Pärt

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Desejo-vos uma sexta-feira a saber a happy friday
aúde. Alegria. Paz.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Cristina Ferreira foi aos Globos de Ouro vestida de Anjo da Victoria Secret?
Ou de Nossa Senhora (ou de Irmã Lúcia, nem sei)?
Ou de bailarina de Can-Can?
Ou simplesmente na SIC já perderam a noção do ridículo?
Pergunto.


Porque a semana não me chegou e porque esta que entra também se afigura do caneco, para este fim de semana trouxe trabalho de casa -- trabalho chato e com alguma responsabilidade e, ainda por cima, parte escrita em inglês o que complica um pouco a faena já que, a uma hora destas, sem pachorra, quero fazê-lo com um olho no burro e outro no eleitor-alvo do CDS -- e isso, em cima de dias muito dedicados à família, deixaram-me sem grande disponibilidade para as minhas coisinhas ou para o fait divers. Ou seja, por exemplo, não tenho conseguido responder a comentários ou mails pessoais nem, a seguir, cirandar pelo mainstream.

Por isso, há bocado, enquanto trabalhava e o meu marido, mais a dormir do que acordado, via futebol e respectivos resumos e comentários, resolvi surripiar-lhe o comando e fazer zapping. E passei por uma coisa extraordinária. Eram os Globos de Ouro. Não sabia que era dia disso pelo que aquele aparato começou por me parecer uma Gala de algum programa qualquer que não estava a identificar. Mas logo percebi.

Apresentava o espectáculo a Cristina Ferreira vestida de uma forma inenarrável. Estava de asas pregadas a um vestidinho de tipo baby-doll, toda ela lingerie em desfile de Victoria Secret. O meu marido acordou com os gritos dela e quase se assustou com o que viu. Depois de se restabelecer, resmungou: 'Esta gaja não aprende'. Depois percebeu que estava diminuído (sem o comando na mão, ele não é ele) e pediu: 'Dá cá o comando'. Dei-lhe e ele voltou a fazer zapping. Passado um bocado, à sorrelfa, repeti a cena. Lá estava ela, outra vez mascarada, com plumas, folhos, tules, disparatada até à raiz dos cabelos. Ele voltou a acordar e quase não conseguiu protestar: 'Lá estás tu. Para que é que queres ver esta gaja?'. Levantou-se, então, e disse que ia dormir.

Voltei ao meu trabalho, esperando que fossem horas de dar o Desassossego da Maria João Seixas mas estava a dar atletismo pelo que, passado um bocado, coloquei outra vez nos Globos de Ouro. Apareceu ela, então, agora a receber também um prémio. E já estava mascarada de outra coisa, desta vez com as raízes dos cabelos espetadas para fora, e de tal modo era que chamei imediatamente o meu marido para vir ver. Quis saber o que era mas não lhe disse porque se lhe dissesse que era para ver a Cristina Ferreira era o vinhas. Disse-lhe só que era uma coisa do além. Ele chegou à sala, viu-a, e, perante o óbvio too much, agora em versão santinha a caminho do altar, fez um esgar quase de dó e disse: 'Eh pá...' e desandou. E já não viu o pior: é que, quando ela acabou um discurso (de tal forma auto-convencido que parecia estar a ajustar contas com alguém que lhe quisesse tirar o lugar) e virou costas, pareceu-me ver no manto os contornos ou da Nossa Senhora ou da Irmã Lúcia. E, nessa altura, fiquei naquele estado que se designa por estupor catatónico. Mas que raio de maluquice era aquela? É o que eu digo, parece que já vale tudo. 

Voltei a fazer zapping, tentando ver se o Desassossego já tinha começado mas, enquanto não, fui ver se conseguia descobrir que desconcertante desenho era aquele no vestido dela. Mas já ela se tinha trocado de novo. Estava outra vez em espampanante toilette, desta vez misto de Victoria Secret e de bailarina de Moulin Rouge, um excesso de plumas cor de rosa. Nela, talvez pelo exagero, talvez pelo tom de voz, talvez pelo conjunto, tudo fica com toque a novo rico em versão mais do que kitsch. Vinha agarrada ao Balsemão que, não sei se atarantado com tanto pink, tanto guincho e tanta luz, parece que vinha almareado -- e isto para não dizer que vinha disfarçado de múmia andante.

Fiz zapping, claro, e felizmente já a Maria João Seixas tinha começado. Desta vez convidou, de novo, o José Pedro Serra (digo de novo porque já o tinha convidado para o Afinidades). Um bálsamo. Até parei de trabalhar para melhor os ouvir.

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Para terminar num registo de tranquilidade, Joana Gama, a quem estou a ouvir neste momento, igualmente na RTP 2. Outro bálsamo.


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E a si que está aí desse lado desejo uma boa semana, a começar já nesta segunda-feira: 
saúde, alegria, sorte e o mais que queira de bom para si e para os seus.

sábado, novembro 04, 2017

A beleza assombrosa dos pinheiros





Há tempos, na sequência de uma sucessão de 'passamentos', alguns algo traumáticos, com longo tempo para despedidas e etc, espantei-me com toda a gente saber sempre a vontade dos mortos, se enterrado, se cremado, e, se cremado, onde as cinzas e outras particularidades que aqui não vou nem  referir. E pensei que, de mim, ninguém saberia porque nunca tinha pensado nisso. E, então, pensei.


Antes pensava que, se estivesse viva a assistir ao acto de morrer e de me ser dado destino, se calhar preferia que me despachassem para dentro do forno e que, depois, tivessem a delicadeza de espalhar as minhas cinzas in heaven. Imaginava-me absorvida pelas raízes dos pinheiros e isso agradava-me.


Mas depois pensei que, afinal, se calhar não. Em cinzas não sei se sobra coisa que se aproveite. E, então, resolvi que enterradinha, transformada em paparoca de bicheza e depois em matéria orgânica ou sei lá quê que ainda alimentasse outra bicheza que me levasse para outras paragens, átomos meus vivos por aí, capaz de ser melhor. Eu nas asas de uma borboleta, eu na plumagem de um pássaro, eu nos olhos misteriosos de um gato branco, eu nas flores do alecrim. Agrada-me a ideia. Resolvi, então, e comuniquei ao meu marido. Não ligou. Abomina estas conversas. Nessa altura, calhou ligar-me a minha filha e logo lhe comuniquei: 'escuta, quero que conheças as minhas disposições fúnebres'. E disse-lhe que, então, é assim: Para já nada dessas cenas de irem despedir-se, beijinhos misturados com choros e toda a gente a dizer que gosta muito de mim. Nada disso que ia logo perceber que estava tudo a despedir-se e capaz de me dar também para o sentimento. Quero é que me façam rir. Lembrem-se de cenas divertidas, daquelas que, quando se fala nisso, me desato logo a rir, ou contem anedotas. Quero morrer a rir. E, se não der muito trabalho e não for muito caro, gostava que as despedidas de quem quiser despedir-se (coisa de que não farei questão já que não estarei lá para retribuir a simpatia) fossem breves, sem funfuns nem gaitinhas e que, de lá seguisse só a família para o cemitério da aldeia a que pertence a nossa casa in heaven. É um cemitério pequenino que dá gosto. Não será preciso aquelas longas caminhadas como as do Alto de São João, por exemplo. Será coisa breve, chegar, baixar a urna, tapar e já está. Coisa sem dramas. 

A minha filha ironizou: 'Olha... eu a pensar que ias dizer como é que querias dividir os ouros e essas coisas e afinal isto...'.

Acho que lhe disse que essas coisas resolvam eles. Mas fiquei a pensar se não será melhor deixar já essas coisas estipuladas para evitar quaisquer atritos. Também tenho que pensar nisso.


E agora que estou a escrever e depois de ter visto o vídeo abaixo, pensei que era boa ideia o caixão ser de pinho, coisa muito simples, sem macaquices. Eu a transformar-me em nada dentro de um pinheiro é ideia que me agrada bastante. 


Falta-me ainda pensar na pedra. Sei que deve ser o mais simples possível mas gostava que contivesse um epitáfio disparatado, que fizesse rir quem fosse para ali com ideias tristes. Tenho que pensar nisso.


Depois, nestas coisas, ao fim de uns quantos anos, chamam a família para que decidam o que fazer aos ossos. Uma coisa desagradável. Parece que o morto sai das trevas para atentar a vida aos vivos. Mas é assim, nada a fazer. Não sei se, quando for eu a finada, dará para pegarem nos ossos e os enterrarem in heaven. Mas isso deve ser um bocado tétrico, a menos que venham numa caixa fechada e não se veja nada. Por isso, para evitar a impressão que deve fazer a perspectiva de poder dar de caras com uma caveira, o melhor seria queimar as ossadas e levarem as cinzas para as espalhar in heaven.

Agora estou a pensar se não seria possível pedir ao padre que em vez de se pôr com encomendas de almas, conversas muito datadas, sem qualquer ponta de gracinha, não seria possível ter música da boa e alguém a dizer um ou outro poema. Até podia ser o padre, um que notoriamente nunca tivesse lido um poema na vida, com sotaque cerrado de Bijeu (ie, Viseu), para a coisa ficar hilariante e toda a gente ficar a tentar esconder o riso. A minha alma haveria de se rebolar a rir.


Pronto. Parece-me bem, assim. 

Não estarei cá para poder aligeirar o ambiente e simplificar processos pelo que me agrada pensar que posso deixar o trabalhinho das decisões já adiantado.

Sei que esta conversa pode parecer sinistra mas, depois de uma pessoa ir passando por elas, vai encarando com maior naturalidade. E é natural e, portanto, não vale a pena lamentos e outras inutilidades. Nada de cenas, nada de dramas. Tudo na boa, para a minha alma ir pregar para outra freguesia na maior boa disposição.


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Peço agora a vossa atenção para o vídeo abaixo que é bem interessante

Capturing the Haunting Beauty of Korea’s Pine Trees

For Koreans, the pine tree is a deeply personal cultural symbol, believed to connect the souls of those who have passed with the sky. So when photographer Bae Bien-U was looking for an iconic image to represent Korea’s identity, the pine tree was a natural fit. Through his unique black-and-white photographs, Bien-U’s work reflects the haunting and ethereal qualities of his country’s pine tree forests. His work inspires reflection and emotion, while celebrating the splendor of Korea’s natural world.


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terça-feira, junho 13, 2017

Naquele dia





Naquele dia, acordou com um leve formigueiro na ponta dos dedos. Esfregou as mãos. Passou.

Quando se levantou, espreitou o rio. Tão azul. O céu também tão limpo, tão azul. Lá ao fundo um veleiro. De volta ao quarto, olhou-se ao espelho no corredor. Parou intrigada a ver-se. Qualquer coisa lhe parecia diferente. É o sono ainda, pensou, e fechou os olhos com força tentando forçá-los a acordar. Quando os reabriu não se viu bem.

Foi até à casa de banho, lavou a cara. Quando voltou a ver-se ao espelho já quase se reconheceu. Apanhou o cabelo. Pesou-se. Quando saíu de cima da balança reparou que não tinha reparado no peso. Olhou-se de lado. Mais magra. Tomou banho. Alguma coisa parecia não estar certa.

Foi até à cozinha. Nua. Comeu uma fruta, bebeu um sumo. Tocou com uma mão na outra onde tinha sentido o formigueiro. Normal. 

Nua ainda, foi até à janela. Depois afastou-se um pouco do vidro temendo que a vissem. A seguir sentou-se na cadeira de balouço da varanda. Olhou as pernas. Passou a mão pela pele tentando perceber se teria que se depilar. Não. Apenas uma leve penugem, macia, clara, inofensiva. 

Foi até ao computador e escreveu como se estivesse vestida: dois mails profissionais e um post circunspecto. Depois espreitou os mails pessoais. Centenas. Abriu um ao acaso e respondeu. 

De volta ao quarto, soltou o cabelo, perfumou-se, escolheu uma lingerie nude transparente, depois umas calças brancas, justas, e uma blusa de seda turquesa com flores em rosa vivo e outras transparentes. Escolheu os brincos, uma pulseira. Foi até ao espelho e penteou-se. Passou uma sombra nos olhos e um gloss em tom rosado.

Depois calçou uns sapatos altos em branco. Estava pronta.

Contudo, ao dirigir-se à porta sentiu, de novo, que havia alguma coisa estranha. Olhou-se ao espelho mas o grande espelho em talha dourada do hall mostrou uma outra mulher.

Pegou no telemóvel e escreveu: não vou trabalhar, parece que não me reconheço

Descalçou-se, foi de novo até à janela e pensou que não se lembrava se tinha enviado a mensagem mas também já não se lembrava onde tinha deixado o telemóvel.

Dirigiu-se, então, ao computador e escreveu:
De noite fugiu-me a alma para a casa onde um dia julguei poder inventar o amor. De madrugada, quando as gaivotas apareceram, acho que consegui trazer o corpo de volta mas a alma parece ter ficado por lá. Acordei sem asas, um formigueiro na ponta dos dedos. Olho os meus olhos e não lhes encontro o brilho. Terá também ficado por lá. Estava nua quando acordei mas lembro-me bem de andar, por lá, com um vestido branco, comprido, transparente, bordado em baixo, com botões à frente que alguém tinha desabotoado de alto a baixo. Os botões eram pequenas borboletas em madrepérola. Nunca antes tinha visto tal vestido. Quando acordei, nua, destapada, rocei com a perna num objecto. Era uma pequena borboleta, pequena como um botão de madrepérola. Não estou a sonhar. Serei uma sombra, um vestígio daquela outra que vagueia pela casa onde as memórias se acolhem e onde em vão grito por um nome, mas a sonhar não estou.
Depois despiu-se, deitou-se de novo e dormiu durante toda a manhã. Sonhou que tinha perdido o vestido, que alguém a tinha tentado aquecer com uma echarpe em pelo branco. Acordou sentindo uma qualquer coisa, uma estranheza que não conseguiria definir. Talvez se sentisse observada mas a verdade é que não viu ninguém.

Aos pés da cama, um tule branco, bordado.


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Este texto tem continuação.

O próximo capítulo chama-se: Sem rasto.

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sábado, setembro 12, 2015

Os dias do abandono


Para A.





Separei tranquilamente a roupa branca dos tecidos de cor e pus a máquina em funcionamento. Queria ter a certeza chã dos dias normais, embora soubesse bem demais que persistia no meu corpo um movimento frenético noutro sentido, um relâmpago, como se tivesse entrevisto no fundo de uma cova um horrível insecto venenoso e todas as partes de mim própria continuassem tomadas ainda de um impulso de recuo, agitando os braços, escouceando. Tenho de reaprender - disse para comigo - o passo tranquilo dos que pensam saber para onde estão a ir e porquê.

(...)


Tomei um duche, arranjei-me cuidadosamente, pus um vestido que me ficava bem e fui tocar à porta de Carrano.




Senti-me observada pelo óculo, demoradamente: imaginei que ele estivesse a tentar acalmar as pulsações do coração, que quisesse apagar do rosto a emoção que a minha visita inesperada lhe causava. 

Existir é isto, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que fremem sob a pele, e não há outra verdade que se possa contar.



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Os excertos (não sequenciais) pertencem a Os Dias do Abandono do livro Crónicas do Mal de Amor de Elena Ferrante.

Fotografei os troncos de árvores aqui, in heaven

Joana Gama interpreta Für Alina de Arvo Pärt

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E permitam que vos convide a seguir até ao post abaixo onde, num outro comprimento de onda, sugiro que a nossa Presidenta, a Srª Dona Cavaca, siga os passos da Madama Sarkozy, a versátil Carla Bruni. E a seguir ainda tenho a Cate Blanchett em Sì
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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